segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Anúncio de inverno

Anúncio do inverno

talvez a cidade anuncie
em seu desinteresse e arcaísmo metódico
a próxima glaciação
os dias já em fevereiro se encurtam
o por do sol é coberto de nuvens preto e branco
o que vai bem aos olhos dos que não podem ver cores
e o frio tira o ânimo do corpo bom
que deseja ao passar pela terra
que a terra possa ser agradável e cálida
entre os saldos de verão procuro
a esperança de que ainda restem neste início do ano
dias quentes como leite morno

                                                                      Igor Zanoni

Precocidade


Precocidade

Um professor notou que as alunas da escola em que trabalhava usavam muitas pulseiras coloridas de várias cores e demorou a saber o motivo. As pulseiras significavam desejos que as meninas concediam aos meninos que conseguiam roubar uma delas, cuja cor significava o tipo de prêmio a que estes tinham direito. Eram desejos sexuais, que iam desde um beijo na boca a uma relação de sexo oral. Estas meninas eram muito novas, com onze ou pouco mais anos de idade, demonstrando a precocidade com que eram inseridas no saber sexual. Como já se disse, o sexo é a diversão mais barata e gostosa a que um adolescente pode aspirar. Mas esse comportamento bastante desinibido, é claro, não é ode todos os adolescentes ou pré-adolescentes. Grande parte deles, nas faixas sociais da classe média, pratica sexo e têm mesmo filhos precocemente, mas a maior parte (quem sabe?) ainda é protegida por um mundo de aspirações infantis que inclui a educação, a diversão controlada pelos pais, a amizade preferencialmente com adolescentes do mesmo sexo e o brinquedo com estes, o mundo familiar bastante tradicional  em vários sentidos, como o da religiosidade. Como no tempo em que Freud descobriu o caráter passional dos seres humanos, o sexo ainda é um motivo de grandes frustrações, neuroses e dificuldades emocionais de toda ordem, e a melhor solução para isso não necessariamente é uma vida sexual ativa desde cedo ou sem mediações de valores éticos e de responsabilidade para com o parceiro. Como disse Cristopher Lasch, a falta dessa responsabilidade cria sofrimento e tristeza. Se o homem é um ser desejante, também há uma grande manipulação da enxurrada midiática que recebemos todos os dias ressignificando beber cerveja ou ter um carro.  Ou comprar um brinquedo, ou ter um amigo, ou praticar bem um esporte, a lista é infinita. Esse deslocamento do desejo sexual ou sua reafirmação metafórica é capaz de criar tantos indivíduos neuróticos e incapazes de realizar desejos como uma educação sexual muito repressiva. Quem ganha pouco não pode aspirar ao tênis que se sabe melhor e mais bonito. Essa é a porta para a drogadição, a violência. Por isso o sexo deve ser pensado dentro de uma economia política que envolve distribuição de renda, padrões de consumo, relações de sociabilidade mercantil e outras. Apenas ter um parceiro, com freqüência muitos, e atingir o orgasmo com certa freqüência não tem nenhum efeito liberatório sobre uma vida emocional reprimida e difícil. No ser humano nada é apenas natural ou biológico, mas passa pelo crivo cultural e, portanto, por valores e significados éticos.  O importante é que a educação ou o sujeito possa perceber os sentidos em que sua vida está involucrada ou encalacrada. Na minha juventude, a liberação sexual era buscada numa sociedade muito repressiva em vários aspectos além do sexual, e muitos de nós buscavam novas expressões religiosas, culturais e outras ao lado de uma vida sexual mais satisfatória. Havia uma vontade de mudar o mundo, não havia? Muitos se envolviam com política, ou com a problematização da educação, do uso do meio-ambiente, e outras áreas.  Muitos passaram neste período a fazer terapia, a se tornar terapeutas ou ler obras sobre terapia. A Igreja respondeu com os livros de Michel Quoist, os cursilhos para jovens e vi muitos amigos jovens dentro de uma participação na vida social e cultural mais lúcida que a minha. Eu não tive educação sexual em casa, mas fui embalado na vida caseira como uma cigarra no casulo até o momento de cantar, mas não posso dizer o sofrimento que isso me causou. Nem a forma abrupta e autodidata com que a vida sexual começou, envolvendo sentimentos difíceis de manejar. Se isso for ainda verdade, o que acho que é,  precisamos pensar o desejo como sexo, dinheiro, cultura, políticas públicas para as questões sociais e assim por diante.

                                                                                                                   Igor

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Anil


Anil
o anil que nossas avós usavam
para quarar a roupa branca no quintal
o horizonte a esperança
o humor varonil
risonho e límpido
anacrônicos ainda soam nos hinos pátrios
antes dos jogos de futebol

                                                        Igor Zanoni

O dia em que mataram J.F.Kennedy


O dia em que mataram J.F.Kennedy

Era uma sexta feira ao por do sol. Estávamos reunidos para o culto que dava início ao sábado, lembro que cantávamos e papai, que era músico, tentava harmonizar nossas vozes. Eu cantei sempre muito mal e sentia dificuldade, o resto da família, na época, mamãe, Alex, Felippe, Ivone e Tintim no berço, não se saia melhor. papai era sério, um pouco severo. Frei Giuseppe, um dos frades jesuítas holandeses naquela Cáceres pequena de 1963, com sua batina imaculadamente branca, o cabelo bem curto, o óculos de ouro, bateu leve na porta da entrada e cochichou com papai algo. Vi algo no rosto de papai que ele quis esconder e eu não tinha noção do que era, ou a que sentimentos correspondia, mas voltamos ao culto e eu com a voz alterada cantei com esforço o hino, na melhor interpretação de minha vida. Depois papai se fardou para passar a noite em prontidão no Segundo Batalhão de Fronteira em que servia. Soube depois que o presidente dos estados Unidos havia sido baleado. Evidentemente, passei naquele momento por uma identificação com meu pai, muda, por cima das palavras e das coisas, feita como por uma telepatia sentimental. De alguma forma fui destinado para sempre por momentos como esse. Em vários momentos, como filho mais velho, tive esses insights de identificação silenciosa. Lembro de nossa primeira casa em Campinas, vindos do Rio onde nasci, essa é minha primeira lembrança, eu tinha quatro ou cinco anos  e Felippe que estava engatinhando, ficou com a mãozinha presa no batente da porta. Ele gritou mas eu não voltei a abrir a porta, porque papai havia pedido para fechá-la. Papai abriu num pulo a porta e me pediu para ir com ele levar Felippe, cujos dedos eu havia esmagado, ao hospital. Foi feita uma cirurgia recompondo a mão de meu irmão e eu assisti com papai a cirurgia dentro da sala. Até hoje meu irmão tem as marcas na mão, mas ela ficou boa. Não me lembro de ter ficado zangado com papai, achei que fiz o que devia, ajudar meu irmão como papai fez, e junto com ele. Este também foi um momento de identificação. Nele pude agir como se fosse meu pai, sem sentir muito claramente nada confuso nem explícito, apenas a sensação de fazer o que devia ser feito, como em uma iluminação sobrenatural. E no entanto tão humana. Lembro da casa de fundos, na rua Teodoro Langard, no Bonfim, atrás de um armazém, perto de meus amigos de infância remota,de  André, Fulvinho lembro o rosto, os nomes, os brinquedos que tínhamos. Aprendi ali a andar de bicicleta, sozinho, escalavrando a mão esquerda no muro até sangrar. Era uma bibicleta de freio no contra pedal, bem pequena. Como papai era militar eu tinha muitas armas de brinquedo, algumas bem realistas. Com elas matei imagináriamente muita gente, mas nunca papai. Em toda a minha vida, apesar da distância que se foi interpondo no início da adolescência em diante, jamais critiquei ou respondi mal a papai. Ele sempre esteve ao meu alcance, mas apenas em meus remotos primeiros anos como um ícone.

                                                                                            Igor

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Vidas paralelas


Vidas paralelas

vidas paralelas exigem reconhecer
a todo momento as distâncias
o modo de mantê-las
dolorosas indecorosas
sugerir aproximações
e depois abandoná-las  
incluem um repertório de táticas
para fazer o mal de forma exata
traçar destinos com medidas precisas
que se vão conhecendo devagar
até se instalarem em todos os momentos
todos os gestos e pensamentos
cansa esse rigor mortal
dobram os sinos por quem está aí
mas na verdade já se foi

                                                                 Igor Zanoni

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Natal antigo


Natal antigo

Ainda era criança quando morreu Péricles, o inesquecível criador do Amigo da Onça, sempre na última página de O Cruzeiro, que era a primeira que líamos, toda semana Na verdade ele se matou, pois apesar de seu humor corrosivo, era uma pessoa capaz de se sentir solitária em um Natal, quando todos em volta pareciam ter realizado o mito da criança e da família feliz. Mudou o Natal ou mudei eu? Pessoalmente, passei Natais ótimos e péssimos, e passá-los sozinhos é mesmo arriscado. Mas o envolvente clima de dezembro, quando as férias coincidiam com viagens ao Rio, em casa de meus tios- como o também inesquecível tio Pedro, bancário do finado banco Boa Vista, comunista e torcedor do América- ou com a visita de meus avos maternos, sempre esperada por mim. Minha avó era muito bondosa, mas gostava continuamente de me evangelizar e perguntar se eu sabia de cor tal ou qual versículo da Bíblia. Eu não era tão mal nisso, pois uma vez ganhei um concurso bíblico na igreja, o que me valeu uma coleção chamada Enciclopédia Curiosa, que falava exatamente de mil curiosidades inúteis para uma criança, mas engraçadas. Na época a cultura inútil era muito cultivada. Mas eu preferia meu avô, o vô Felippe, que havia sido policial federal- tinha um emblema oculto no forro do paletó- e também campeão brasileiro de bilhar francês, jogado com três bolas com as quais se manejava um taco preciso numa mesa sem caçapas. Fazia jogos de exibição em clubes chiques, e em um bilhar famoso em Campinas tinha amigos a um passo do gangsterismo. Eu o acompanhava sempre, pois embora também evangélico, meu avô gostava de relembrar os velhos tempos, e se tornou para mim com isso uma pessoa muito mais divertida que meu pai. Na noite de Natal, ou em ocasiões como meu aniversário, cantava velhos hinos do Cantor Cristão, o ainda usado hinário batista. Sua voz era a de um velho, um pouco grossa pelo cigarro e meio rachada, mas cantava com sentimento e beleza. Papai era formado na Escola Nacional, era maestro e tocava clarinete, mas o Natal musicalmente era do vovô. Estou falando da minha família, que mudou muito, e da qual hoje sou acho o mais velho - pelo menos mais velho entre meus irmãos. Mas à parte o amor por meus irmãos, que vivem um pouco distantes e vejo infelizmente pouco, ganhei tardiamente, quando minha vida tinha perdido todo limo de tanto rolar,a família de minha mulher Rosana, seu filho –nosso filho-Mateus Passo o Natal com a família que formei com meus filhos, noras e candidatas a nora, minha neta, e com a família toda da Rosana , tradicional, muito religiosa e muito acolhedora também. Todos os anos fazemos uma festa animada em cooperação. Cultivar amigos e familiares é um dom, não algo automático ou que todos façam. Muitas vezes sem isso estaríamos sós, perigosamente sós. Do Natal a televisão e os jornais registram o lento crescimento das vendas e do emprego, as perspectivas de investimento estrangeiro para o próximo ano, as pesquisas eleitorais do próximo ano. Na Igreja Batista que minha nora Alessandra freqüenta, assisto no final do ano o clima comovido da Cantata e das orações, e o pastor sempre reitera seu pedido de que entreguemos o coração a Jesus. Na Igreja Católica, da família da minha mulher, o clima é menos emocional, talvez porque a igreja ainda viva um clima muito confiante e pouco ecumênico, da única verdadeira representante de Deus na terra, esta terra que está derretendo enquanto isso. Mas o culto é concorrido, canta-se bastante, batem-se palmas, lembrando que o Natal a festa é para Cristo. Como cantava vovõ,  “ um menino nos nasce-e-u...” . Às vezes estamos mais animados, noutras menos, mas as crianças correm pela casa, ganham presentes, os vizinhos se reúnem nas ruas, soltam-se fogos, enfim, os Natais mudam conosco, e é importante que não mudemos muito, não demais, senão a graça acaba.
                                                                                                    Igor

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Graciliano Ramos


Graciliano Ramos

quando tive pela primeira vez um episódio de depressão que durou de forma aguda alguns meses e mais branda muitos anos, confundindo-se com outros episódios, não achei graça nenhuma. espantei-me com o quanto se pode de repente sair do rumo, mudar expectativas e caminhos, sair dos velhos trilhos, ter de repensar a vida toda, em seus três tempos. nessa época tive a sorte de encontrar no sebo que eu, estudante pobre, o que aliás é um pleonasmo, frequentava,obras de Graciliano. senti minha cabeça arder com a leitura de Insônia, Infância, Angústia e tudo o mais dele. acho que Graciliano foi o Dostoiévski nosso, socialista, triste, encalacrado entre a vida política, o trabalho de funcionário e o viés existencialista . pouca gente hoje fala de Graciliano. há um tempo houve uma coqueluche, justa, de Machado de Assis. quase ao mesmo tempo uma de Guimarães Rosa, também justa, mas por que não uma de Graciliano? É claro que se filmou Vidas Seca, São Bernardo, com a bela Isabel Ribeiro, filmou-se também Memórias do Cárcere, mas para mim isto foi pouco. a depressão não é tão pós moderna? o que incomoda em Graciliano? sua exigente expressividade, às vezes quase tosca e agressiva, ao falar de seu pai por exemplo?   acredito que a depressão tem muitas formas de surgir na vida social e individual. talvez a de Graciliano seja dolorosa demais para a nossa contemporaneidade truncada entre a violência, a pobreza material e ética, e outros dilemas de nosso final de mundo.
               Igor

Vocação


Vocação

as pessoas não encontram de repente
sua vida e sua vocação
estas estavam sendo antecipadas
imperceptíveis suaves
e muitas vezes tão lentas
pelo medo de quebrar relações
ou a sua cara
mas há um tempo em que elas chegam
como um presente de aniversário
atrasado
ninguém se surpreende muito
há quem chegue mesmo a dizer:
essas coisas são bem dele mesmo
não me surpreendem

                                                                 Igor Zanoni