quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Encontro


podemos partilhar nossas vidas
com outras pessoas
mas para isso é preciso
que elas desejem
partilhar suas vidas conosco
quando as duas coisas
por felicidade acontecem
vivemos todos um encontro
bem como sua antítese e complemento
o desencontro

                                                                            Igor Zanoni

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Costura

Mamãe estudou e aperfeiçoou a vida toda suas habilidades em corte e costura. Costurava com moldes, como aprendeu com outra exímia costureira, dona Leontina, esposa do mecânico de papai, seu Wilson. Até sair de casa eu nunca usei roupa comprada fora. Ela fazia para mim golas do tipo que o Ronnie Von usava, e calças justas como as do Roberto Carlos. Era uma mulher moderna. Aprendi muitas dessas habilidades com ela, pois hoje ainda sei cerzir, chulear, pregar um botão ou fazer costuras simples. Não sei o que aconteceu com os seus moldes, acho que minha irmã Ivone herdou. Aprendi a decorar as roupas que ela fazia, com pintura em tecido, strass e purpurina. Como passasse muito tempo com ela, aprendi outras artes como cozinhar o trivial, matar e depenar um frango, fazer uma farofa para recheá-lo e cortá-lo em pedaços sem osso. Também comecei a ir ao cinema com ela, para ver a Imperatriz Sissi e os filmes de Alain Delon, que na época achávamos o homem mais bonito do mundo. Papai às vezes cozinhava, uns vatapás com creme de arroz ou bacalhau ao forno que comíamos em ocasiões festivas como o Natal, bebendo uns goles de Casal Garcia. Mas o dia a dia era com mamãe. Depois soube que papai ia ao cinema sozinho ver filmes de James Bond. Foi uma decepção gosto tão raso. Mas mamãe nunca conseguiu, embora tentasse, aprender inglês. Não se recordava do vocabulário e das regras gramaticais. Na época havia um casal na igreja que havia vivido nos Estados Unidos e ensinava a língua aos irmãos. Eu não me preocupei com isso porque também não gostava de inglês. Meu forte era o francês. Quando comecei a faculdade li Descartes, Hume, Kant e outros em francês, sem problemas. Já meu querido Marx li nas edições castellanas da Siglo XXI e a tradução do Capital de Wenceslao Roces. O melhor da vida são essas pequenas coisas que nunca esquecemos. È o nosso luxo pessoal.

                                                                      Igor Zanoni

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Mundo


o mundo tem nome diferente
em cada lugar
viver tem sentido diverso
em cada boca
cada um percebe seu próprio
lugar no mundo
diverso até do seu vizinho
se há algo que muda somos nós
mas ainda mais muda o mundo


                                                           Igor Zanoni

Família


não há nada menos ambíguo
que ideias pré-concebidas
e que se deseja realizar
sobre e na família
acredito que é preciso
ser delicado
nessa trama imprecisa
de desejos e arrepios
olhar com cuidado o filho
a mulher
ser sereno quando alegre
ou quando triste
não traçar muitas perspectivas
o sábio disse que os filhos
partem de nós
mas possuem seus próprios
interesses e desejos
ainda menos clara á a esposa
se nós mesmos somos obscuros
outro sábio disse que é preciso
duvidar de tudo
eu aprendi a duvidar desde logo
de mim mesmo

                                                   Igor Zanoni

Senso estético


Seu Luís, meu falecido sogro, era  um homem com um senso estético para viver a vida. Inquieto, fumava muitos maços por dia de cigarro, acordando para isso inclusive várias vezes à noite. Nunca deixou de ter êxito no que fazia. Teve a maior e mais aparelhada sorveteria de Maringá, montou um escritório de contabilidade grande e moderno, com máquinas elétricas de escrever, depois comprou uma picape e saia pelo Brasil recolhendo mudas de orquídeas e bromélias, em um tempo em que o Brasil era grande e não havia o Ibama, chegando a ter um dos maiores orquidários de plantas nativas. Fazia por hobby difíceis diagramas de palavras cruzadas que mandava para jornais, conhecia marcas boas de uísque e amava a música. Suas filhas estudaram muitos anos de piano, e seu maior prazer era chama-las para tocar para as visitas. Depois um dia a vida de desandada que estava terminou de desandar, mas nunca soube o que acontecia de fato com ele. Foi um poeta de atividades, um reinventor do inventado, um homem inconcluso, que ninguém acompanhou, muito menos sua família. Era extremado, pegadiço, exagerado. Sua família o mantinha a distância, e talvez por isso tenha tido outra família. Ao todo deixou seis filhas e um filho. Alguns o amaram, outros o aborreceram, mas sempre singular, nunca permitiu meias opiniões sobre si. Diante dele se optava pelo oito ou oitenta. Não deixou bens e seu túmulo ficou próximo da sua família de origem, longe das que criou.

                                                              Igor Zanoni

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Felicidade


estranho essa insistência das pessoas
em serem felizes
muitas vezes com alto custo
quando a história da humanidade
é uma sucessão de tragédias
e os homens mais admirados
serem sábios sofridos
como Jesus Gandhi ou São Francisco
sofridos mesmo sábios
estranho seu apego a si mesmas
quando a morte é o destino inelutável
o gosto que tem pelo mundo dos relojoeiros
quando a vida está todo o tempo
quebrando molas e eixos
deixando à mostra o coração de rubi
que até os relógios costumavam ter

                                                    Igor Zanoni

Primordial


não há uma verdade essencial
originária e inerente
toda verdade existe dentro de situações
e do modo como as vemos
por isso as nossas verdades
são a outra face das nossas mentiras
e as mentiras bem podem ter
no nosso mundo
um lugar fecundo e crucial
quem busca um sentido primordial
não pode encontra-lo
fora da maneira como é concebido
e toda sabedoria é uma forma
de ignorância
o sábio disse: só sei que nada sei
o melhor caminho é investigar-se
e levar outros a praticar consigo
bebendo mas sem se embriagar

                                                                       Igor Zanoni

Concepção


Pelo menos desde a concepção, uma pessoa está ligada a uma sociedade e a um Estado. Ainda que morra ao nascer, receberá um registro civil e um atestado de óbito, sua causa mortis será investigada e passará às estatísticas oficiais, talvez lhe deem um túmulo e uma lápide. Sua morte afetará o que se sabe sobre a medicina e as condições de vida de sua classe e dos serviços públicos de saúde. Haverá despesas a pagar, pela família, e os funcionários entrarão no orçamento da União ou do município. Se essa pessoa viver mais, estará obrigada a se alfabetizar, tomar vacinas, seu peso e sua altura serão acompanhados, será batizada e terá desde cedo certa maneira de ver o mundo. Sua influência sobre sua vida será pequena e dependerá dos pais e irmãos, talvez da avó, que se encarregarão do seu cuidado diário. É importante por isso que os pais tenham emprego e renda adequada, que não maltratem os filhos e sejam prudentes em seus relacionamentos. Isto dependerá da performance da economia de seu país e de sua região, da dívida pública e da honestidade dos políticos, de fatores mais imponderáveis como a segurança no emprego e na renda, bem como na vida. Todos nos pertencemos e tudo em nossa vida dependerá de causas que só controlamos muito pouco.


                                                   Igor Zanoni

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Laços


os laços na família têm um norte cego
o sustento por um homem às vezes habilidoso
em sua profissão
mas que não presta contas
suas falhas acontecem movendo de cá para lá
vizinhanças clientes o mínimo carinho
o tempo vai formando um carma
que é o inconsciente coletivo de todos ali
quando as coisas ficam perigosas
alguém toma outro rumo ou toma as rédeas
salva o que pode pede ajuda à Virgem
os filhos recebem impactos diversos
diferentes percepções os levam pela vida
se alguém é forte e aguenta as pontas
a família se torna forte
e entre mortos e feridos todos se safam
como por milagre
de quantos dramas uma rua é feita?
sabe-se um pouco uns dos outros
ninguém é invulnerável ou alheio
é difícil viver
é pior viver uma só vez

                                                         Igor Zanoni

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Ensaio sobre a cegueira


Impressiona desde já no livro de Saramago a contenção e precisão da linguagem, sobre uma história longa, cujos lances dramáticos nos avassalam, sem perda de vigor e de intenção quanto ao que se deseja dizer. A parábola é, contudo, de fácil compreensão: em um mundo transtornado pela cegueira, já não podem vigorar os antigos e bons velhos usos e costumes, e há uma perda de si. Precisamente daí, dessa dupla escuridão, pode brotar alianças e condutas que levam a descobrir, no fundo obscuro de cada um, a própria identidade e liberdade. Quando se chega a esse clímax, a cegueira de cada um é superada, e se pode ver novamente em um mundo que é necessário reconstruir, mas cujos materiais a rudeza da experiência limite atravessada demonstrou com uma precisão geométrica. A reconstrução do ver passa todavia por amargas relações com os outros, que nos colocam e se colocam de forma trágica embora implícita nos códigos da cegueira, aquela em que nós vivemos, leitores, personagens, autor, os que não cabem nessa classificação. Embora se conheça o viés marxista de Saramago, a parábola exige que não se dê nomes precisos ao caos relacional que provoca a epidemia de cegueira. Crise econômica, instabilidade crônica do capitalismo nos últimos cinquenta anos,  o dinheiro, a propriedade privada, o egoísmo que move a política e a economia, a crescente insegurança em vários níveis. Não basta, não é um livro didático centrado em crítica da economia política.  Trata-se antes de um agravamento do mal estar nas sociedades modernas, imbricado é claro no seu funcionamento material, mas que vai além dele. A cegueira é uma analogia com a obscura visão que podemos ter do mundo, e o silêncio que carregamos sobre nós mesmos, e logo sobre nosso lugar nesse mundo.


                                                Igor Zanoni

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Humano


de uma pessoa sabemos menos
que de nós mesmos
se é possível confiar nas aparências interiores
que formamos de nós
por imperativo de lógica e coerência
por uma indefectível autoestima
assim descobrimos um dia que nosso pai digamos
 teve outra família
que temos irmãos que desconhecemos
e nossa história pessoal se tumultua
além do que já a tumultuamos
sem perceber que tudo o que aprendemos
nos torna mais humanos
que o primeiro pecado respondeu
pelo primeiro perdão
mas temos pressa em encontrar
os sentidos que nos vão faltando
 sempre mais ou sempre menos
quando o melhor seria despir-nos
de razões que interessam muito à organização
ensandecida do mundo
mas não ao pouco que de dele e de nós
podemos salvar e amar

                                                                   Igor Zanoni

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Kryptonita


nós partimos do pressuposto
nunca discutido
do sentido da nossa vida particular
mas virando uma esquina
a coisa toda muda
e com o coração aos pedaços perguntamos
onde foi que eu errei?
a paisagem se transtorna
buscamos conexões
paramos de sair de casa
ou continuamos a fazer o de sempre
como brinquedos autônomos
sinistros
às vezes gritamos outras choramos
por que ninguém vê o que acontece?
há na rua o rumor de sempre
lembra a estática de um rádio agora
sinto muito meu bem
como eu poderia ajudar?
dê-me pistas dê pistas ao seu coração
mesmo o Super Homem foge
de sua kryptonita
qual é a sua kryptonita?

                                                                                 Igor Zanoni

Nacionalismo


meu pai explicava que um neném
apesar da aparência preguiçosa e frágil
era um ser forte resistente
naquela época lutava-se no Brasil
contra as diarreias de verão
os vermes em sua fauna polimorfa
o bicho barbeiro as picadas de cobra
a lepra o fogo selvagem a tuberculose
era uma luta desigual
e nos meses mais quentes a desidratação
conduzia caixõezinhos brancos pequeninos
ao campo santo
mas as mortes de hoje não havia
lutava-se contra a natureza
era uma luta em que se podiam traçar
estratégias e táticas
nessa época se afirmava o desenvolvimento
acreditava-se no nacionalismo
até hoje se lê nos autores da época
a busca de independência e autonomia
era uma visão mítica
mas hoje não é mais tempo de mitos
e as crianças e os homens e mulheres todos
declararam-se outras guerras
que pouco entendemos
e nas quais pouco se sabe lutar
exceto os insanos

                                                                        Igor Zanoni

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Apenas para meus olhos


ela era assim um tipo todo seu
de figura
quase tão linda que os homens
viravam o pescoço conferindo
seu estimado potencial sexual
quando surgia logo fazia
uma presença
particular notória
assim como há doutores
de notório saber
todo mundo desejaria de presente
na noite de natal
tão delicada gentileza
apareceu do nada meu
apenas para os meus olhos

                                                   Igor Zanoni

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Segredos

Segredos

segredos se guardem
e não se exponham
quem puder ver em nós
o que somos
verá sem que mostremos
é tão natural
pessoas se encontrarem
e sem entender por que
serem tão cruciais
uma para a outra
o tempo é a sua matéria
os sonhos
os arrependimentos
o tempo voraz
a fotografia instável


                                                      Igor Zanoni

Transporte

Transporte

Mesmo com a pequena atenção dada ao transporte público nas metrópoles brasileiras, ele é imprescindível para torná-las habitáveis. Quando ele falta, como em uma greve de motoristas e cobradores, as ruas se congestionam e o trânsito deixa de fluir, ainda mais do que todos os dias. Embora complementar ao transporte privado, o transporte público permite que o primeiro exista e funcione. A importância dada ao automóvel particular tornou as cidades desnecessariamente monstruosas, imensas manchas quentes sem verde, onde a chuva não penetra, e provoca inundações e desabamentos. Não temos sequer uma alternância entre quadras de edifícios e trânsito modernos e quadras onde paisagens antigas, ecológica e culturalmente, sobrevivam. Em Tóquio, por exemplo, há essa alternância, e se conservam quadras com jardins, negócios pequenos tradicionais ou mais novos e edifícios como templos. Quando se vai a uma cidade brasileira com um centro histórico, quando ele é bem preservado, inclusive por razões econômicas, também se observam pequenos negócios, construções antigas e se pode caminhar e encontrar bares e restaurantes noturnos. Um problema é que esses edifícios antigos são mal preservados, quase só guardam de original a fachada, com um oco atrás, e a memória da cidade é um mal cuidado disfarce de preocupação com o lazer e a cultura. Os parcos recursos das prefeituras vão junto com a abertura de frentes para a expansão imobiliária e de vias para automóveis particulares, numa destruição contínua de relações de sociabilidade, memória, história e meio ambiente.  


                                                           Igor Zanoni

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A confiança dos brasileiros


Na semana em que quase duzentas pessoas morreram em Salvador no auge de uma greve da Polícia estadual, o Ipea noticiou um aumento do índice que mede o grau de confiança dos brasileiros. Nesta mesma semana a greve atingiu com menor intensidade o Rio e ameaçava outros estados. Ao mesmo tempo, servidores federais se preparavam para uma paralisação em fevereiro e uma dura negociação de salários e condições de trabalho, bem como sobre mudanças na previdência desses servidores, no início de março no caso de as negociações não caminharem. Estas notícias me fizeram indagar para que serve ou em que sentido é tomado o grau de confiança dos brasileiros. Note-se que estamos em meio a rumores de que a crise europeia e americana ameaça agora mais fortemente a América Latina, e o crescimento previsto do produto no Brasil foi revisto para baixo, enquanto os alimentos aceleravam a inflação de janeiro.  A confiança dos brasileiros é apenas uma medida do seu otimismo em face de aumento de salários e dos postos de trabalho? Mas o desemprego ainda é enorme, o subemprego muito maior, e os salários patinam em patamares de mil reis, pouco mais ou menos, para a maioria das categorias urbanas. O quadro de greves (hoje se iniciou uma greve total dos ônibus na RMCuritiba) é assustador, demonstrando insatisfação com os postos de trabalho. A renda, por outro lado, é um bom índice de confiança ou de otimismo no futuro?Ninguém ouve as notícias sobre o drama climático do hemisfério norte, decorrente do aquecimento global, ou as inundações em Minas e São Paulo, seca no Sul do Brasil, por motivo idêntico? Quais são esses brasileiros pesquisados, tão alvissareiros? Pessoalmente, minha desconfiança só aumenta, com a situação complexa do país e do mundo, e com os índices estranhos que os jornais divulgam.


                                                                    Igor Zanoni

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Pessoas confusas


há pessoas que se sentem confusas
porque suas ideias sobre sua vida
não bastam para lhes dar
a vida que esperavam
mas não sabem bem o que esperavam
ficam irritados com este e aquele
começam a beber
ou procuram uma outra pessoa
com a qual começam de novo
o processo de construir uma vida
que desta vez sim
lhes dará o que não sabem
que esperam mas esperam
alguma luz no céu
um raio na escuridão
ou viajam mudam de ramo
tornam-se vegetarianas
ou recomeçam a fazer churrascos
guardam ou esbanjam dinheiro
afastam-se de quem amam
ou reaproximam-se sem saber
se amam ou quanto amam
ponderam telefonam
oh como é triste ter expectativas!
melhor ter paciência
o rio corre no seu ritmo
mas é preciso aprender a viver
para isso é preciso começar
pelas coisas amenas e suaves
que se consegue fazer
nunca pelas grandes e insinuantes
decisões
que nos deixam a pé em uma esquina
de madrugada
no frio sob a chuva tristes tristes
tão confusos

                                                            Igor Zanoni

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Palavras


as palavras mais importantes
são “obrigado” e “desculpe”
quando não souber o que dizer
diga uma delas
ou as duas ao mesmo tempo
quando pensar ou não pensar bem
no assunto tenha certeza
o melhor é agradecer e se desculpar
na alegria e na tristeza
nosso vínculo essencial cabe
em “obrigado” e “desculpe”

                                               Igor Zanoni

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Sistema


é difícil um exame objetivo do sistema por sua extrema viscosidade, que faz com ele se amolde à nossa pele e adentre o corpo, nervos e cérebro, espírito e matéria. além disso, por se situar sempre em terreno pantanoso, tornando também pantanosa nossa fala e nossa situação como examinadores que pretendem uma veleidade de autonomia e lucidez. em certas regiões ele se ergue em prédios automáticos e auto suficientes, em outras cobre ilhas e paraísos artificiais onde só penetram quem tem certas senhas secretas e chaves guardadas em bancos neutros e aparentemente inodoros, mas que exalam em certas ocasiões, que se vem alongando e repetindo, um cheiro nauseabundo e adocicado de matéria, vidas perdidas, desesperadas. noutras o sistema guarda um charme de ternos bem cortados e únicos, próprios para fotos glamourosas mesmo de pessoas idosas e gordurosas às quais se dedica o futuro da medicina. algumas vezes o sistema fala como uma mulher suave, em outras como a grande meretriz, que seduziu os trabalhadores na construção da grande Babel com promessas de liberdade e fartura. seus dilemas são irresolutamente discutidos em fóruns também secretos, onde se decidem as mesmas decididas decisões já antecipadas pelos que tem juízo de saber que nada será feito por qualquer espaço além daquele reservado por si mesmo ao sistema, não só completamente internacionalizado mas extra terrestre, extra galáctico. nós só contamos com nossas vidas mas como anódinos animais propiciatórios  a damos em silêncios nos altares como se nossa carne fosse apetecível a quem só come turfas, e escargots.

                                                                   Igor Zanoni

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Wando


afinal o cantor Wando
cumpriu seu destino
e morreu do coração
dezenas de mulheres depositaram
em seu túmulo suas melhores calcinhas
no mesmo momento paradoxal
em que baianos eram lançados
em uma guerra sinistra e confusa
e um velho filme reestreia na tevê:
“Apertem os cintos, o salário sumiu”


                                                          Igor Zanoni

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Declaração de fevereiro


um povo não pode ser objeto
de uma política gerencial
porque esta é uma contradição
nos termos
uma pessoa não pode ser administrada
como uma potente usina elétrica
porque uma pessoa tem uma energia
maior e mais sofisticada
do que qualquer usina elétrica
a gerencia é um processo
que oculta o poder de quem o exerce
nós não queremos segredos
queremos o poder
toda a história é a história
da derrota de projetos carinhosamente
pensados
custosos em vidas infâmias blasfêmias
nós não queremos de novo uma derrota
viemos aqui para vencer

                                                                         Igor Zanoni

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sobre a frequência à Igreja


A Igreja já há algum tempo enveredou por uma teologia e uma estrutura medievalistas, expressas na relevância dada à hierarquia, ao culto de Maria e dos santos, a valorização do sofrimento como via redentora, a luta contra quaisquer veleidades progressistas a favor do casamento não indissolúvel, o preconceito contra o aborto, a homofobia, a ojeriza diante dos movimentos sociais. Eu passei a me preocupar com a Igreja no pontificado de Paulo VI, o papa angustiado, e no de João XXIII, com seu sorriso acolhedor e humano tão propício à comunhão e ao diálogo entre as correntes cristãs e não cristãs, à reforma do culto, a preocupação e a ação contra a pobreza em suas diversas formas. A Igreja por lutas internas bárbaras se modificou, pegando uma carona nas ideologias conservadoras do final do século XX. Na Idade Média, a cristandade ocidental articulou uma sociedade e um poder que passavam por dentro da Igreja, sofisticou-se teologicamente fazendo uma opção intelectual por jesuítas, dominicanos e  outras ordens para as quais Francisco de Assis nada significava senão ignorância e voto à pobreza em um mundo que se devia intelectual e materialmente conquistar. Francisco que interpretou como ninguém em sua época os valores comunitários da igreja primitiva. Isso levou a rupturas que extrapolaram o terreno da Igreja, lançando as bases da Reforma, sua contraparte da Inquisição e Contra-Reforma, do preconceito científico e do obscurantismo. É isso que temos de volta, desde João Paulo II. Entretanto as pessoas frequentam muito mais as cerimônias católicas que há algumas décadas atrás, talvez porque o mundo haja lançado a maior parte das pessoas em uma falta de segurança e de esperança inéditos desde o século das Luzes. Vejo, entretanto, também cheia sempre a Igreja das Mercês, franciscana, muitos templos e centros budistas sérios e responsáveis, as igrejas evangélicas crescem não apenas na vertente pentecostal, mas também nas tradicionais Igrejas Presbiteriana, Batista, Metodista e muitas outras. Os partidos políticos se esfarinham, os governos e a política se desacreditam, o mundo parece dar razão a visões apocalíticas mesmo que midiaticamente venham dos maias(!), mas as pessoas se procuram, que pena em grande parte em uma Igreja que optou por uma ideologia do século XIII, mais ou menos, no que ele produziu de não tão bom.


                                                                     Igor Zanoni

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Adeus

 
com excessivo vagar
deixo o que criei em minha vida
há entulhos que não fazem sentido
escadas soltas que já não levam
a andar nenhum
roupas que uso mas desprezo
faço o que detesto
e o que amo não consigo fazer
tão minha é essa indecisão
entrar á noite em salas vazias
e esperar no frio
um dia que não amanhece por si
tão torto em bifurcações infindas
quando irão as baratas
acabar com a cozinha
quando meus livros
serão por fim devorados
pela traça e a falta de assunto?
é preciso ser mais preciso
conciso onde buscar a necessária
exatidão e dizer adeus
ao que já disse no coração
adeus?

                                                    Igor Zanoni 

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Corpo


toda a esculpida sinuosidade
da espinha que sustenta a cerviz
os ombros dos quais os braços
são instrumentos da mente
que ao mesmo tempo criam
e o doce colo o abdômen
onde nasce o fogo da respiração
e da nutrição
até o contorno dos quadris e da pélvis
fontes do desejo e da vontade
que comunicam às pernas
e aos pés pequenos e firmes
assim este corpo ali
caminha gracioso por onde os olhos vêem
e os sentidos dos sentidos
traçam uma trajetória no mundo
cuja natureza geme as dores do parto
dos seres humanos que um dia chegarão
se assim puderem
se dela depender

                                                                  Igor Zanoni
 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Diferente


há um prazer secreto
em ser diferente
do que toda gente
pensa que é
ser diferente
como toda gente
não é ser sozinho
não é nada disso
isso não é vício
é só um jeito que tem
toda gente quando sente
brotar no coração
uma semente
como na mente brota
a mais consequente
das inconsequências

                                                 Igor Zanoni

Oito anos


ai que saudade que eu tenho
do leite que eu bebia
na aurora da minha vida!
aquelas duas polegadas de nata pura
aquela cor amarelada
boa para a manteiga e o queijo de coalho
boa pra menino crescer sadio
naquele capim gordura
entre bostas e lodaçais!
há quem cedo se interrogue
sobre Deus e a metafísica
como era mister tempos d’antanho
eu queria só beber meu leite
bruto guloso feliz
ai quando eu tinha oito anos!

                                                Igor Zanoni

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Alfanje


há livros que compro
e guardo zeloso
mas sem ler
uma novela de Babel
uma antologia do conto russo
uma edição completa
dos poemas de Brecht
deixo para ler quando nada turvar
o meu espírito
como quem bebe champanha
em sua coroação
creio que vou lê-los no dia
 em que estiver à morte
fecharei a casa como se já
tivesse partido
farei um café forte
e me sentarei por horas
 à mesa de trabalho
ouvindo lá fora a indesejada
afiar seu alfanje

                                                          Igor Zanoni

Vento


eu já busquei a salvação
a revolução e a cura
hoje me basta
o vento que bate
e me leva daqui para lá
não em vão

                                                Igor Zanoni 

Maltrapilhos


Dois homens idosos subiam a quadra onde eu esperava o ônibus junto a outras pessoas. Eram magros, mal vestidos, calados. Um comia em pequenas dentadas uma maçã, o outro tomava um sorvete e carregava uma garrafa de aguardente barata. Depois de passarem, uma senhora comentou: Mas isso ninguém vê. Os políticos só veem o que interessa a eles. Uma moça respondeu: Isso é Brasil, não é? Eles estão doentes, deviam ser internados em um hospital para se tratarem. A primeira mulher voltou à carga: E se eles cruzam a rua e provocam um acidente? Eles põem em perigo a vida dos outros sem ninguém fazer nada. A moça: E depois, quem vai pagar as despesas? Pensei: Essa é uma caridade brasileira. Maltrapilhos e alcoolistas devem ser internados para deixar quem trabalha andar de carro em segurança.

                                                              Igor Zanoni

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Entre nós


Quando perguntado onde está o reino de Deus, alguns traduziram a resposta de Jesus como “ ele está no seu coração”. Outros, atentos para o dado elementar que o nosso coração se faz todo dia, como tudo que é da nossa vida e do nosso dia, traduziram como “ele está entre vocês”. Acho isso importante porque conheço muitas pessoas bondosas, piedosas ( por assim dizer mais cruamente), apegadas aos santos e aos sacramentos, à liturgia, às orações tradicionais e ao calendário da Igreja. Procuram não praticar senão o bem, na medida do possível, colaborar com os outros, mas sua fé é sobretudo intimista e legalista, chegando a achar que a solução para os males do mundo ainda é o terço e a água-benta. Muitos sentem a presença de deus em seu coração, anseiam por um desvelar exterior do seu reino, mas se atém aos conflitos intra e inter eclesiais e religiosos. A missa e a confissão é o cerne da vida deste cristão, supondo que seja cristão e católico romano. Todavia outros percebem que os atos cotidianos tecem relações entre massas humanas e homens individuais, e que o reino de Deus está distanciado desse inter-relacionamento. O reino entre nós significa sobretudo a centralidade do leigo, o trabalho e a oração conjuntos, nos agrupamentos para os quais a fé é meio de perceber o lugar do homem no mundo. Muitos relutam em adotar essa visão por achar que a política é suja, corrompida, e em larga medida é. Mas a política dos atos cotidianos, do passar os dias sob esta ou aquela condição, o cotidiano, a sexualidade, a saúde, a educação, o sentido do trabalho, tudo isto e muito mais é também uma questão política, e precisa da nossa atuação consciente, pensada, examinada. A política não se resume a eleições e como tirar algum ganho delas. A política começa entre nossas mãos, e entre essas mãos, penso, está o reino de Deus, que tem uma dimensão escatológica que começa todavia agora.

                                                    
                                               Igor Zanoni