domingo, 29 de dezembro de 2013

Sobre a luz


Naquele tempo, havendo escuridão no terreno em volta da casa, ao se acender a manga da lamparina de querosene, inumeráveis formas de insetos cobriam as paredes em volta da cozinha aberta para o quintal, e me maravilhavam suas formas e disposição, sua quietude, em tudo obedientes à luz como nós mesmos, em volta da mesa, obedientes ouvíamos o pai falar e nos servíamos do que mamãe preparava. Mais tarde, andando nas ruas da pequena cidade para fugir ao calor e ao tédio, sentíamos as aleluias nos assediarem perto dos raros postes, provocando sempre as costumeiras irritações e reclamações. No verão, mesmo durante o dia as ruas cobriam-se de içás, que os meninos caçavam para as mães torrarem nas frigideiras, iguaria esperada todo ano na dieta monótona, quebrada todavia ainda por talos de erva doce e jatobás enjoativos mas não desprezados. Este era o logos, e mesmo sendo criaturas comuns, como todas as outras no mundo podíamos manifestá-lo.

                                             Igor Zanoni 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Bondade


o amor mais sublime 
busca algo do outro
nós só vivemos para o outro
e o outro só pode ser reconhecido
se pode se dispor para nós
o sacrifício nada mais faz
que tornar sagrado o desejo
não há nenhum amor ou bondade
em atirar pérolas aos porcos
a bondade deve ser
uma ciência sofisticada

                                   
                                                          
                                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Ponta Grossa


1
Ponta Grossa faz limite
com essa região ignota
de gentios sem fé sem lei e sem rei
que é o mundo
mesmo que seja preciso
peregrinar por ele
alguém de lá conserva intato no coração
o patrimônio espiritual
a ética o transcendente
ser de Ponta Grossa

2
as moças de Campo Largo
casam com os rapazes de Ponta Grossa


                                                                        Igor Zanoni

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal



                                                      Para Adilson Volpi

A quase totalidade dos fiéis, infantilizados em suas igrejas cristãs por padres e pastores, acreditam em um Cristo que nasceu desde o Céu pronto, com um propósito definido que ele conhecia, o de redimir a humanidade de seus pecados. Embora creiam que ele foi ao mesmo tempo um homem, não percebem muito bem que nesta condição ele viveu em um ambiente cultural e religioso denso e polêmico, no qual conviviam diversas visões intelectuais, políticas e sociais, que ele teve de entender estas visões e escolher para si a que melhor convinha para sua própria consciência e valores. Assim, vinculou-se a certas interpretações do cosmos e de Deus, que entendeu criativamente e mesmo para muitos de forma herética e perigosa, a ponto de não lhe restar senão assumir um ideal de auto sacrifício e uma consciência messiânica de si mesmo. Mesmo assim, foi pouco entendido diversas vezes, e mesmo à luz da crença na sua ressurreição e na efusão espiritual que se seguiu, os relatos disponíveis nos evangelhos, em Paulo, nos Hebreus, por exemplo, são notáveis pelas formas como pôde ser compreendido e dar origem a diversas concepções de ação missionária e de futuro do homem e do mundo. Por outro lado, ainda hoje se podem estudar as várias percepções sobre Jesus Cristo de inúmeros teólogos e missionários. Ele foi um ser excepcional e controvertido, sobre o qual cabem poucos dogmas, se é que cabe algum. Nesta condição nasceu para cada um de nós, se somos ou não cristãos, como uma promessa, mas também como um problema, a promessa e o problema de sua e de nossas próprias vidas

                                   Igor Zanoni

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Destino


1
para qualquer pessoa
os dias nunca são iguais aos outros
o humor nunca é o mesmo
as perspectivas mudam
e mesmo sentimentos arraigados
sofrem mudanças
para qualquer um o melhor é dizer
que há sempre algo novo sob o sol

2
ninguém pode comprometer-se 
com uma decisão mesmo a mais banal
e sensata
sempre há muitas pessoas com as quais vive
e diante das quais não tem liberdade
a menor decisão envolve
grandes contextos afetivos e alianças cotidianas



                                                                 Igor Zanoni

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Grande Amor


descobri que não é preciso o grande amor
qualquer amor me conduz e apraz
não preciso de grandes ficções
a vida comum já é bastante rica e complexa
um filho pode ser seu maior amigo
um amigo pode precisar ser seu filho
é impossível manter as relações como se deseja
as carências podem não ser as que você pensa
o desejo pode ser muito mais obscuro
do que gostaríamos ou nos obrigamos
as grandes receitas da vida
são as de fazer bolo ou peru de Natal
o que vem pode não parecer tão bom
mas é o que está aí e com isto temos de lidar
para ele não há receita em parte alguma

                                                        Igor Zanoni

sábado, 21 de dezembro de 2013

Perguntas


como se chega ao céu
como derrubar o capitalismo
onde se encontra a felicidade
como jurar amor eterno
como manter a esperança
ou não perder a fé
ou tantos amigos caros
como não ser excessivo ou insuficiente
como se contentar com o que se tem
qual a simplicidade necessária
ou o ardil cheio de sabedoria
como entender os clássicos
como amar os pobres de espírito
como explicar o que se pensa
como ser você mesmo
o que é ser autêntico
se a autenticidade não está no sangue
qual é o caminho
o que se entende mesmo por verdade ou vida?

                                                                   Igor Zanoni

                                                            

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Menino olhando a chuva


o sentimento de olhar a chuva
através do vidro da janela do quarto
quantas tardes? a casa silenciosa
os irmãos onde estão? nem penso
mamãe fechada no quarto
meu pai no quartel
 a síndrome da chuva
silenciosa extática
formando o barro na rua entre a bosta
das vacas e dos cavalos
nem pensar na casa da outra margem da rua
o essencial a chuva
impensável de outra maneira
olhos líquidos
quantas tardes? em que vida?

                                                                       Igor Zanoni

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Problemas


1
o maior problema do homem comum talvez seja  que “ meu perfil não se encaixa no mercado”, como disse ao se aposentar precocemente o goleiro Fábio Costa. sorte sua poder se aposentar. os demais tem de seguir tentando se encaixar à custa de sua autenticidade  e saúde.

2
muitas coisas precisam ser tiradas da cabeça e deixadas onde estavam ou ainda estão.

3
alguém disse no início da República que “um país se faz com homens e livros”, mas o maior fracasso brasileiro é o da escola, pública ou privada. o país demonstrou que não pode fazer em massa pensadores, aliás nem deseja. construiu ao invés um rude modelo de criar intelectuais bambas em matemática e redação em inglês, essa forma ao mesmo tempo moderna e inatual de saber javanês, para lembrar Lima Barreto.

4
Oswald de Andrade pôs a questão: “ tupy or not tupy”,nos primórdios do nosso modernismo. muitos comemoram o chamado pós-modernismo, eu lamento o neo-anacronismo que deve necessariamente apagar Oswald da nossa escola.


                                                                       Igor Zanoni

domingo, 15 de dezembro de 2013

Convicções


as convicções mais íntimas
elaboradas em silêncio
na usina dos nervos
não podem ser explicitadas
nem compartilhadas
por isso é difícil saber do outro
conhecer os gestos que seriam precisos
a fala é sempre equívoca
ainda que o silêncio não convenha
conversar é tarefa interminável
mesmo a bondade é difícil


                                                                    Igor Zanoni

                                                            

sábado, 14 de dezembro de 2013

Agradecidos


1
não é necessário ou talvez possível a muitos de nós obrigar-se à fé ao filho de um Deus que trouxe a superação da morte corporal ou à escatologia de uma vitória sobre o mal que concerne a nossas vidas e aos muitos poderes do mundo. não é justo conosco, em nossas muitas dificuldades, a obrigação de superá-las em um espaço da alma que reproduzirá conflitos míticos, no espaço de igrejas sem coração elevando-nos a uma transcendência ineficaz e autoritária. não precisamos de mais um poder em nossas vidas quando precisamos de liberdade e amor verdadeiros, pelo menos da autonomia pessoal ao busca-los, e de fazê-lo com uma alegria genuína e originária. mas não é possível ignorar a vida desse homem, do que disse e fez, de sua inestimável importância e grandeza. ele nos amou, nos elevou, nos indicou dimensões que não conhecíamos, que a humanidade não conhecia. em cada momento de sua vida ele morreu para esse mundo que hoje expira, e ressuscitou na utopia que construiu com sua vida, sua grande perspicácia e as dimensões de fé e tradição de sua cultura. mesmo que essa fé e esperança não nos pertença hoje, a lição da transcendência, da severidade crítica, de busca de apresentar-se aprovado em seu itinerário existencial, é um legado que não podemos ignorar nem tomar sobre o ombro de modo simples e ingênuo, ou curvado sob a culpa. ele não nos trouxe culpas, mas caminhos para a redenção, ainda que não do modo como fomos ensinados e nos sentimos forçados a aceitar sob grandes sofrimentos inúteis e falsas esperanças em instituições e homens indignos de nós.

2
aos que nos amam ou amamos é preciso sobretudo sermos agradecidos.

                                                    Igor Zanoni 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Contrição


devo me obrigar à contrição
para deter o insensato impulso do mundo
eu o senti como Ulisses ouviu as sereias
mas antes amarrando-se ao mastro
não fui tão sábio
a sabedoria não vem pronta nem em gotas
nós a preparamos por muito tempo
até que sobrevenha com impacto
não serei mais um combatente
em uma guerra infinita e já perdida
escolho agora meus próprios combates
contando com meu ser tão frágil
e às vezes caótico
serei tantas vezes o companheiro 
que não esperam
trarei como puder a paz e o bem
com a relutância com que São Francisco
se obrigou à sua estranha santidade


                                                                          Igor Zanoni 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Comunidade


1
embora não sejam felizes, e acumulem preocupações e decepções, muitos simplesmente não podem mudar sua vida, e a defendem com convicção e veemência. criam associações com um seleto grupo para firmar este caminho difícil como o bom caminho, e criam seus próprios ritos e comunhões, ladainhas e práticas, exatamente para que nada na vida mude e sejam modelos para os outros nas suas vidas insensatas
2
no almoço de domingo ela lembrou dos almoços na casa de seu pai, como era austeros e havia muito respeito. certamente era nostálgica do respeito pelo qual luta até hoje, uma luta com certeza perdida, como deve bem saber
3
 Jesus disse que se não anunciássemos ativamente o reino dos céus, as próprias pedras gritariam, não ouvimos essas pedreiras, quebrando nossos telhados de vidro?
4
os essênios, os helenistas, o quarto evangelho, os gnósticos judaicos e o próprio Jesus afirmaram que o verdadeiro templo é a comunidade dos fiéis, na qual o Senhor estaria presente sempre que dois ou três se reunissem em seu nome. certamente por isso não há uma instituição com nome de igreja que possa ser levada a sério, ainda que pastores e ordens educacionais fiquem ricos, padres se emocionem com a castidade da virgem e se reze e cante como nunca na história 

                                                                  Igor Zanoni

domingo, 8 de dezembro de 2013

Amigos


1
às pessoas tristes, tristíssimas, que não podem ser consoladas, poderíamos desejar ao menos calorosos bons pêsames

2
roberto tem uma solução radical para todos os problemas do mundo: cortar as mãos dos ladrões. ele tem uma encenação detalhada a respeito, uma declamação expressiva, mas não explica, nem desenvolve, nem se deixa questionar

3
quando éramos novos, Geraldo foi preso por estar com um pouco de brown. ele era pintor, mas na cela só encontrou uma camisa de algodão rude, agulha e um retrós vermelho. bordou várias figuras na camisa, vacas, cadeiras, e outras que não me lembro. também me escreveu: aqui está tudo certo, como dois são um e um separados. usei a camisa muito tempo, mas o tempo levou tudo, menos essa lembrança


                                                                       Igor Zanoni

sábado, 7 de dezembro de 2013

Tarefas


para mim sempre foi compensador buscar
ser uma pessoa compreensiva e razoável
mas este é um ideal de pai árduo cansativo
poucas vezes alcançado
não tenho uma vocação para o auto sacrifício
não sou o guia genial dos povos 
o homem providencial
não posso atender às altas expectativas
que tantas vezes me impuseram
e eu mesmo assumi
eu também surto me perco me entristeço
tenho um agudo sentimento do mal
sei da nossa solidariedade no mal
não acho o prazer e a felicidade
uma boa meta na vida
nunca vivi por mim apenas
tive na vida poucos momentos de paz
a paz é uma vocação exigente
poucos podem busca-la
não posso pedir a ninguém que me poupe
mas aos poucos é necessário para mim
buscar outras margens
e dar certas tarefas por concluídas


                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Marcas no caminho


não sei se saberemos
não ir por aqui ou por ali
teremos de descobrir o que nos cabe
distinguir com dificuldade tarefas
evitar colocar para nós problemas inúteis
com sorte teremos à frente
um longo e estreito caminho
tentaremos não nos perder de nós
e caminhar juntos
de mãos dadas
nem sempre lutaremos o bom combate
ou entenderemos o que se passa
mas deixaremos no caminho
as nossas marcas

                                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sol


1
todos apreciamos o sol e sabemos da importância da vitamina D. mas constitutivamente temos limites físicos e psíquicos para apreciar o sol. os gatos e os cães, por exemplo, fazem isso muito melhor do que nós. meu gato deita-se de costas no quintal bem ao meio dia, com as patinhas bem abertas e os olhos cerrados. para ele, com todos os seus pelos compridos, felicidade é um dia tórrido.

2
muitos querem ir a algum lugar na vida
mas na praça Rui Barbosa
pode-se pegar um ônibus
para qualquer lugar de Curitiba

3
muitos simpatizantes dos mais despossuídos organizam cooperativas de catadores de papel ou de reciclagem do lixo. conheço freiras piedosas que passaram muito tempo de suas vidas vivendo entre esses escolhidos. mas há formas modernas e mais interessantes de lidar com essa infecção urbana que são os bairros onde se depositam os lixões. há outros modos de separar e reciclar o lixo e se livrar do chorume, manter pessoas no meio dele é separá-las definitivamente da cidade e preservar sua não cidadania. falar aos marginalizados e ouvi-los requer mantê-los nas bordas de nossas vidas? os piedosos e solidários também segregam?


                                                               Igor Zanoni

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Juízo


curiosidade não é conhecimento
nem conhecimento é sabedoria
muitos tem a consciência  boa
sua ascensão é irresistível 
e exercem fascínio e poder sobre outros
mas no Dia do Juízo o Senhor lhes dirá:
afastai-vos de mim
não vos conheço
apartai-vos para a gueena
lá haverá fogo e ranger de dentes!

                                                       Igor Zanoni

Instituto Pinel

Instituto Pinel

no antigo Instituto Pinel, em Curitiba, hoje funcionando com outro nome, muitos amigos foram internados e eu mesmo fui atendido por um bom tempo. internava-se ali apenas quando uma pessoa não podia proteger-se e corria risco. ela ficava um tempo, era medicada, fazia sessões de psicoterapia individual e também sessões nas quais interagia com os demais 
sob tratamento. a vida ali era dinâmica, dentro do tempo de descoberta de um sentido pessoal 
e coletivo que não podia deixar de ser gratificante e necessário. na fragilidade que envolvia a todos, percebia-se um novo ser coletivo, mais por ser formado que por ser identificado. muitos tinham dificuldade de sair á rua, de cuidar-se em aspectos básicos, mas evitando uma duvidosa aura de doença, os médicos levavam todos a que se ajudassem no cotidiano. assim, os internos organizavam expedições coletivas ao supermercado, compravam coisas necessárias a partir de lista de compras e orçamentos, dividiam as despesas e se apoiavam ao atravessar o bairro. naquela época se reconhecia o papel limitado de psiquiatras e medicação, cada um reaprendia seus valores e formas possíveis e dinâmicas de perceber a vida e toma-la a seu encargo. a vida era menos quadrada, os problemas de todos eram de certa forma menores, ou mais compreendidos e reconhecidos, e a cooperação um princípio fundamental para muitos que até ali haviam vivido isolados e com pouca ou nenhuma esperança. não era a época de descobrir o sentido da vida, ou de nem pesar no assunto, nem de proteger-se em espaços fechados como esta ou aquela instituição e perspectiva existencial. havia mais abertura e aventura, nós sentíamos nas dificuldades uma gravidade alegre e a graça do tempo.

                                                                            Igor Zanoni

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Salomão


1
durante a vida uma pessoa define sem perceber muito bem certas expressões faciais, hábitos mentais, maneiras de cumprimentar, convicções que gosta de dividir porque as julga fruto de uma sabedoria adquirida pela experiência meditada, a forma como gosta de se vestir porque expressa tanto a si mesmo. assim, as pessoas ao viverem perdem progressivamente graus de liberdade, reduzem-se, esquematizam-se, caricaturam-se, pensando que se transformam em seres maduros e responsáveis, que descobriram na vida o bom combate e o bom caminho.

2
Salomão escreve nos Provérbios que não se deve ser muito frequente na casa dos amigos, para que não aconteça deles se cansarem de nós. é costume se dizer: “ apareça em casa!”, mas seria melhor recomendar: “desapareça mais!”.

3
a direção comunica e pede compreensão e colaboração, mas a chefia ordena no uso das suas atribuições regimentais. muitos dançam conforme a música, mas às vezes é melhor trocar o disco.


                                                                Igor Zanoni 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Pétala


a pétala exata há de criar para si
a textura a cor exatas
assim o céu preparava auroras
assim nos olhávamos nos olhos
a pele dolorida frente ao desejo
do mundo
à doce majestade do nosso corpo
a rosa exata tomará como princípio
esta pétala
talvez não estejamos aqui
é preciso que o mundo passe
que o céu e a terra passem
a esperança não se tornará para nós
senão esperança
mas a exatidão da pétala é exigente
a completude da rosa precisa desta exigência
a dificuldade das nossas palavras
deve ser dom paciente

                                                     Igor Zanoni


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Guadalupe


Pelo menos a alta madrugada os dois devem ter passado no terminal do Guadalupe, de onde partem os ônibus para as cidades tristes e pobres da região Metropolitana de Curitiba, bem em frente á igreja onde o padre Reginaldo Manzotti encena suas missas musicais e concorridas. Mas estavam ainda acordados de manhãzinha, talvez esperando a primeira condução. Não sei como a noite rolou, mas ainda dividiam uma garrafa de Jamel, uma das aguardentes mais em conta pelo custo-benefício. Talvez tenham dormido um pouco, a conversa aquietada como as brasas em uma fogueira, todavia ainda acesa. Mas havia ainda assunto por resolver, ou a energia precisava de um novo gás para que a noite não terminasse tão parecida com todas, e pudessem enfim se esconder em Campo Magro ou Campina Grande do Sul com certa sensação de completude na alma. Suas vozes aos poucos se alteraram, uma altercação antiga foi retomada, e se impuseram vias de fato. Levantaram-se como puderam, gritaram o que ninguém ouviu com nitidez, sequer eles, e o que estava com a garrafa quebrou-a com um gesto largo e circular no rosto do outro. A têmpora e o maxilar esquerdo deste começaram a vazar muito, mas havia tempo e disposição para mais. Lançaram-se um ao outro entre detritos de vidro, dentes, não sei o que mais, que esta estória é deles, e eu só consigo vê-la como um passante casual, mas sua sensibilidade, seu nervo, pertence a ambos.


                                                                Igor Zanoni


sábado, 23 de novembro de 2013

Céu


sempre admirei São Sebastião
crivado de flechas
Santa Luzia doando seus olhos
Santo Antão tentado nos deserto do Egito
o menino que cada vez mais pesava
no ombro de São Cristóvão
meu preferido foi sempre São Francisco
de palavras medidas exatas 
convidado a visitar a Terra Santa pelos árabes
gosto também de São Benedito
de Cosme e Damião
de Nossa Senhora Aparecida
dos santos pretos fortes
o céu deve ser sobretudo divertido
nele há de entrar os ciganos
os palhaços a bailarina
 os padres terão de tirar suas sotainas
e os cachorros ao relento
encontrarão afinal seu lar

                                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Espera


1
não esperamos o sentimento
não meditamos no que ocorre
e não relaxamos no premente tempo
antes antecipamos o que caberia fazer
as ações que de nós se esperam
os aliados que devemos mobilizar
estamos em uma guerra e um general oculto
nos dá ordem de fogo
nós obedecemos mas como não somos soldados
ficamos confusos e perdidos

2
ela diz que tem dormido sempre cedo
e que suas pernas doem
que precisaria descansar bastante
antes de tirar umas férias
que amanhã terá o dia todo
um curso de Excel
e espera o vencimento do cartão
para comprar um sapato confortável
eu escuto quieto esperando 
que ao menos essa quietude
 seja abrigo e conforto


                                                Igor Zanoni

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sabedoria



1
Na adolescência amadurece a sabedoria duramente adquirida na infância. Assim, quando cometemos uma grande bobagem nesta quadra da vida, e queremos a todo custo e sem sucesso à vista corrigi-la, os amigos logo dizem que o melhor é não mexer mais na m... feita. Isto revela um precoce ceticismo sobre a capacidade de mudar a nós mesmos e o que passou. Revela também a necessidade de às vezes engolirmos a nós mesmos com casca e tudo.

2
Conheço uma psicóloga com uma vida dedicada a pessoas humildes que precisam de uma compreensão de si mesmas e de uma orientação mínima que raro se encontram em qualquer instituição como igrejas e escolas. Trabalha em conselho tutelar no seu município, atende emergências de madrugadas, como fruto de sua vocação. Suas palavras são sempre simples e consoladoras. Quando surgem disputas sobre religião, por exemplo, afirma que o melhor é retirar de cada uma delas o que têm de bom, e que o melhor é tentar fazer o bem para você e para os outros. Com essa sabedoria, só poderia ser uma pessoa bonita e engraçada, que todos amam.

                                                                     Igor Zanoni

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Motorista


vou deixar minha barba branca por fazer
meu cabelo sem pentear
concentrar-me no que importa
a desconcentração do cotidiano
consertar isto ou aquilo
ver o que é preciso pagar
dar uma boa olhada na moça que passa
tomar uma cerveja à tarde com um amigo
não pensar em projetos ilusórios
ser sereno silencioso
atento à condição da estrada
trabalhar quando for a hora
dormir quando precisar
estar em forma para daqui a pouco


                                                              Igor Zanoni 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Coração


Conheci uma professora primária, já de alguma idade, mas bastante disposta. Gostava de dar aulas, lia Superinteressante e não perdia o Jornal Nacional. Saía no final de semana, conversava com os vizinhos, era uma pessoa com boa índole e boa formação. Um dia, porém, sofreu um pequeno enfarte, que a deixou muito deprimida e acamada por muitas semanas. Visitei-a muitas vezes, mas ela já falava pouco e, sobretudo, do que era importante no momento. Gostava de passar a madrugada, subitamente iluminada e vazia, ouvindo programas religiosos. Descobriu um outro modo de viver e novos problemas na vida, menos para serem resolvidos pela reflexão que pelo exercício paciente da atenção ao que ocorria. Descobriu aos poucos novos sentidos e novas consolações. Parece que muitos têm essa personalidade de reserva, oculta, sensível e acessível. Felizmente não somos só o que pensamos ou queremos.   


                                                                       Igor Zanoni
                                                  

domingo, 17 de novembro de 2013

Convidado


se o amor ainda existe
ele voltará como um convidado inesperado
colocaremos de novo a canção
descobrindo nela novos delicados
sentidos toques 
como sentirei seu corpo ao abraçá-lo
sempre promissor acolhedor
companheiro
as palavras pertencem ao mundo
tomamo-las daqui e dali
como parece adequado
mas se a porta volta a se abrir
as palavras devem ser caladas
ceder aos gestos a um tempo novos e cotidianos
aos nossos pequenos planos
e às nossas suaves ilusões


                                                                        Igor Zanoni

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pós-modernidade

Pós-modernidade

Eu nunca entendi muito o conceito de pós-modernidade. Lyotard, o primeiro a desenvolvê-lo, nos anos setenta, seguido de muitos, bastante diversos, que na época eram chamados apenas de “novos filósofos” e não de filósofos ou pensadores pós-modernos, ligava-o ao fim da crença no progresso e ao colapso das “grandes narrativas”. Mas a crítica e a descrença no progresso burguês e no papel civilizatório do capitalismo vêm de muito antes, remontando pelo menos a Marx, Nietzsche e Freud, três interlocutores de Foucault, a meu ver um dos mais necessários pensadores do século XX, ao lado de Deleuze, cuja compreensão demoraria muito tempo a acontecer segundo o próprio Foucault. Mas alcança toda a escola de Frankfurt e muitos pensadores atuais com raízes no marxismo, como Zizek e Meszaros, entre outros. Por outro lado, muitos regimes políticos comandam nações que tem se projetado e equilibrado os pratos do poder internacional apostando no progresso e na força da produção mercantil desenvolvida em termos de um capitalismo com centros de decisão internalizados, exemplo notório da China, e em menor medida de outros países emergentes, como o próprio Brasil. Grandes narrativas como o marxismo estão vivas pelo menos em todos os autores acima, e não deixam de inspirar, pelo menos em certa medida, estes países. O capitalismo não é uma grande narrativa morta, mas que precisa ser combatida de forma mundial e organizada para a sobrevivência da humanidade e do planeta. O socialismo ainda é seu melhor crítico, ao mostrar que o capitalismo não pode ser salvo de seu poder destrutivo. Se fosse uma narrativa morta, não haveria tanto interesse em fazer da teoria convencional sempre renovada na aparência, mas não na essência, em economia e outras ciências sociais, um modelo por exemplo para as escolas brasileiras, uma erudição copiada e socialmente inconsequente dando mais status ao status quo. Afirma-se que o pós-modernismo é diversificado, às vezes que é quase inefável, pois quem se dissesse pós-moderno já não o seria. Então do que estamos falando? David Harvey e Habermas, entre outros, falaram de um tempo pós-moderno, sem serem pensadores pós-modernos por isso, mas o precisaram nas estruturas de reprodução do capital e na sua restauração, o que é mais sério que falar da nova condição das pessoas como consumidoras e não mais produtoras, ou apostar na criatividade possibilitada pela tecnologia  e outros temas confusos, prato de resistência de tantos “pós-modernos”.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Simples de coração


1
a conquista da paz interior
a busca de Deus
o desejo de fazer o bem aos outros
o amor ao próximo
o cultivo da virtude
a sagacidade da sabedoria
a integridade pessoal
a coerência de propósitos
são todos desejos confusos
derrotas na história dos homens
que nem sabem lamentá-las

2
nada mais difícil de amar
que os simples de coração

                                                                Igor Zanoni

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Descrença


quisera crer nas auras e nas vibrações
no poder dos fluidos no magnetismo
na cura pela água nos mantras e nos tantras
no alinhamento dos chacras
e na influência benigna dos planetas
no pensamento positivo na neolinguística
no equilíbrio como tendência inerente á natureza
nas plantas medicinais na cura pela prece
quisera crer na santidade dos santos
e na benevolência de todas as Marias
quisera crer nas inteligências extraterrestres
na progressiva revelação de Deus
quisera crer na crença como método
no ômega-3 no óleo de peixe
quisera comer abobrinha como quem reza

                                                          Igor Zanoni

domingo, 10 de novembro de 2013

Dona Judith e dona Anair


1
Aos quinze anos ganhei de minha professora na escola sabatina, dona Judith Emma Schuck, um exemplar de “Entre a água e a selva”, de Albert Schweitzer, contando sua experiência como médico no Congo Francês. Muito mais tarde pude indagar o significado desse gesto. Como adventista, Dona Judith dificilmente poderia avaliar a singular e importante teologia que o autor desenvolveu, ou seus escritos sobre a civilização moderna e a ética. Talvez, como alemã, tivesse orgulho daquele que foi um dia considerado “o maior homem do mundo”. Talvez tivesse orgulho semelhante ao que tinha por Bach, cujas árias entoava em cultivado soprano na pequena igreja da rua Joaquim Novaes em Campinas, para pessoas que não podiam agradecer seu dom. Talvez se julgasse uma desbravadora da cultura em nossa latitude, o que não poderia evitar dado o esmerado apreço pela cultura da Europa central. Muito mais tarde, em outro contexto na vida, pude perceber como fui feliz em conhecer dona Judith.

2
Dona Anair, como todos nós, pode ser vista sob vários prismas, mas me alegro sobretudo com a resignação, que é um talento estóico e epicurista, como assinala Albert Schweitzer em Cultura e Ética, com que cuidou sempre da casa, do marido, dos filhos e dos netos tendo como apoio algumas qualidades nem sempre fáceis de encontrar, como uma fé cega, um grande interesse pelo que pode lhe cair ás mãos, como um prêmio pela entrega do dízimo na paróquia, e sobretudo seu humor malicioso. Esse humor lhe permitiu dar dois reais ao seu José, pedindo que jogasse nas cobras e lagartos.

                                                                           Igor Zanoni

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Metafísica


a angústia a solidão o abandono
alguns dos temas considerados por Heidegger
entre os fundamentais da metafísica
não pertencem à natureza humana
nem a nenhuma desordem pessoal
diante das quais psiquiatras solícitos aviam receitas
iludidos de que podem resolvê-la
antes são requisitos para que nossas sociedades
divididas  fascistas destrutivas
criem indivíduos com os quais possam contar
ou punam aqueles com os quais não podem
esses sentimentos são inerentes
à lógica do poder e do dinheiro
à aceleração do tempo que exige 
de um jovem de vinte anos estar atento
 para um adequado e promissor futuro
que não perca um ano da vida
que não se perca entre os fracassados
que aprenda a sabedoria exigida
e tenha sem pausa para pensar
o pensamento voltado para quanto precisa ganhar
o que deve ter e onde deve morar
o que deve desprezar e o que deve admirar
este é um projeto pessoal que se constrói
para raramente dar certo
há também as histórias que nem podem começar
a fábula já falou de todas elas
da ralé dos marginais do zé povinho da malta
proletários internacionalizados
da história nada edificante do século
todos farinha do mesmo saco
angustiados solitários abandonados
que não precisam ler sobre Sócrates
para examinar sua vida
eles sabem o que vivem
a seu modo caótico e subterrâneo

                                                    Igor Zanoni

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Parábolas


muitos sentem suas dificuldades
e mal sabem falar sobre elas
aliás falam e não compreendemos 
falam por parábolas e línguas de anjos
mas há muito os anjos deixaram este mundo
e nosso entendimento a cada dia
é mais turvo e confuso
talvez nos reste paciência para fazer-lhes
companhia sem julgamentos
 talvez aos poucos com isso venha
o sentimento de nossas próprias dificuldades
de como nos compreendemos 
do mesmo modo turvo e confuso 
de como todos nos tornamos 
para nós e para os outros
tristemente misteriosos 

                                                                  Igor Zanoni

domingo, 3 de novembro de 2013

Do nada para o nada


tomemos não por acaso
esse objeto arquetípico o automóvel
ele se liga ao aquecimento da Terra
ao poder global à violência envolvendo
as fontes de petróleo espionagens sofisticadas
à concorrência entre firmas e nações
liga-se também a inúmeros aspectos da vida das cidades
ao cotidiano dos pobres sua perda de tempo no trânsito   
aos latifúndios de combustíveis alternativos
à criação do desejo de possuir um automóvel
ter para isso renda poder fazer um financiamento
transformar seu itinerário sua concepção de lazer
de poder e de autoestima
aos prédios que buscam as nuvens
metade dos andares compostos por garagens
do tamanho dos apartamentos 
  a partir do automóvel criam-se zonas deterioradas
nas quais o Estado não gasta pois seus moradores
são só um problema e para esse tipo de problema
e muitos outros envolvendo o interesse público
existem outros procedimentos
tudo isso se envolve em nuvens
em imagens falsificadas do mundo
em imposições sobre o que ser e o que não ser
esta é uma questão já resolvida não por nós nem por Hamlet
o automóvel se transforma a cada momento é outro
como ele se move tudo se move e se repõe
refazendo todos os gestos mínimos toda intenção
nossa possibilidade de refletir e sentir
a vida nessa forma tornou-se há muito
uma contradição em processo
abrangente totalitária 
alegremente nos inserimos nos seus campos de concentração
o problema não é o automóvel como objeto
nem nenhum outro objeto
mas o poder que eles mobilizam
através do qual se extingue é claro nosso velho planeta
e com ele nossas perspectivas como espécie
já dilacerada violentada na qual poucos contam
o problema mora sobretudo no refazimento
dos seres humanos sua dispersão 
seu rosto vulgar e insensível
sua distância de si sua brutalidade
exceto quando se deprimem e se tocam atônitos
sem compreender o que ocorre
e obsessivos perguntam o que fazer
quais teriam sido ou são as opções
se é que chegam a perguntar sobre isso
ou antes se jogam do alto
do nada para o nada

                                                   Igor Zanoni

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Esotérico


1
abrem-se as cortinas do espetáculo divino
os anjos rufam as asas
para os améns as aleluias os dons
para o pastor eloquente que conduz
seu rebanho esperançoso de tantas graças
que a vida não pôde conceder
a casa própria a cura do filho um emprego
agora chegou o tempo do porvir
o homem que há vinte anos não falava
já começa a balbuciar como mais um renascido
e a velhinha que há cinquenta estava em uma cadeira
eis que se levanta pois afinal encontrou
o seu caminho

2
os que afirmam a existência dos discos voadores
veem-nos quase sempre ao pôr-do-sol
na brisa alaranjada da praia
comendo um sanduiche natural
ou no quintal de um sítio após o trabalho diário
passam em uma larga espiral como dizendo
nós estamos aqui
porém sempre me esqueceram
ou não sou um dos escolhidos para sua aparição
talvez porque deseje um disco voador redondo
com luzes à sua volta
o metal brilhante como carro zero
abrindo uma porta larga
 e estendendo uma rampa perguntando:
também tu queres ser um abduzido?

                                                        Igor Zanoni

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Conversas


há conversas que não têm lugar
faltaria ar
é claro há muito ar à nossa volta
mas nossos narizes nosso corpo
não ousariam
nosso desejo não conta
não é muito claro o nosso medo
não é claro porque optamos
pela inautencidade
o que pensaríamos estar em risco
pode-se ter segurança em uma cela
acontece de simpatizarmos com o carcereiro
assim nos trancamos em nós
e nos olhamos vaidosos no espelho

                                                   Igor Zanoni

terça-feira, 29 de outubro de 2013

As transformações do amor


quando um velho amor se mantém vivo
após velhas brigas que já não compreendemos
idas e vindas que lamentamos tanto
quando a história foi diversa da que queríamos
mas ainda não se concluiu
ele como por milagre se transforma
antigas mágoas tornam-se novos pressentimentos
os pesadelos transmudam em novos pesadelos
mas o cuidado redobra com o agradecimento
ainda que imperfeito e nem sempre bem reconhecido
e o desejo de posse torna-se a demanda
pela legalidade duvidosa de um usucapião

                                                  Igor Zanoni

domingo, 27 de outubro de 2013

Velhos companheiros


o importante para os velhos companheiros
é o imediato reconhecimento
da antiga conversa que prossegue
quando estão juntos ou separados
é o sentido comum do que fazem
quando trabalham ou apreciam a vida
são os rostos que fácil sorriem quando juntos
o sentido comum das palavras e dos desejos
o ideal que distante ou impossível
manteve todos juntos durante tanto tempo difícil
e que move seu coração ainda adiante

                                                         Igor Zanoni

sábado, 26 de outubro de 2013

Ideais


em nosso tempo
não tivemos ideais
vivemos do que veio
da mão para a boca
esperamos o irresoluto
entardecer
o amigo raro extemporâneo
foi nosso o amor cotidiano
sem planos de viagem
sem poupança
sem abraços calorosos
as nossas lembranças não apontam
para um passado coerente 
ou inteligível 
os dias foram nossa fome
contida com freios
mas às vezes nossa parca razão fugia
e nos sentíamos então em casa
os relógios paravam
a fome fugia
e tudo recobrava
sua conhecida inutilidade

                                                       Igor Zanoni

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Pensativo


há pessoas pensativas
mas sem clareza
outras que se julgam claras
mas não têm generosidade
também há pessoas profundas
que queríamos ao nosso lado
mas é impossível
pois têm desejos que desconhecemos
ou não partilhamos
há tantos que julgam conhecer
o fundo de si e dos outros
são filósofos religiosos analisados
de quais pude me aproximar
com amor e alegria?  

                                                                    Igor Zanoni

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Freiras


1
rindo entre si ao comprar
meias de naylon na rua Riachuelo
as freiras lembram as crianças que já não são
mas que de certo modo continuam sendo
divertindo-se longe de um austero pai
e por ele mantidas nesse estranho estado

2
torço sempre pelos palestinos
os curdos os habitantes das fronteiras porosas
na África ou nos países ricos
que fazem com o mundo 
o que fazem com sua população
torço pelos ignorados humilhados
pelos miseráveis sem futuro
pelos desafortunados
pelos que herdaram antigas galés
antigas chibatas velhas promiscuidades
inúteis desnecessárias
mas que em sua renovada condição
são os reais representantes da humanidade

                                                                        Igor Zanoni

sábado, 19 de outubro de 2013

Quando os muitos anos passam


quando os muitos anos passam
deixam para nós sentimentos ambivalentes
em relação a quase tudo
o que fizemos parecem jogos perdidos
por uma criança que reclama
dos seus amigos
a correria em volta torna-se vã
pode-se compreendê-la e suportá-la
mas não correr também de novo
há pouca saudade nenhuma nostalgia
do tempo que nunca foi muito bom
mas ganha-se paciência
o prazer de ouvir os jovens
o dom de perceber suas situações
não há ninguém mais solidário
do que aquele que passou por algo parecido
mas agora precisa perder tanto fardo inútil
e voltar a gostar de um picolé de chocolate 


                                                 Igor Zanoni

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Genérico


medicamentos se tornaram genéricos
quanto nós mesmos
vítimas das mesmas síndromes
e dos mesmos laboratórios
do mesmo hambúrguer e insônia
da ideologia do mercado
e do resultado das próximas eleições
do mesmo jornal e das catástrofes climáticas
vede que nada disso vos surpreenda
quem estiver no campo não volte para casa
a rainha de Sabá se levantará do sul
e os sábios serão confundidos
então virá o fim

                                               Igor Zanoni

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Canaã


ao findar o labor desta vida
quando a morte a teu lado chegar
que destino há de ter tua alma?
meu amigo hoje tens uma escolha
vida ou morte
qual vais aceitar?
amanhã pode ser muito tarde
hoje Cristo te quer libertar
fraquejantes tão cansados
caminhamos em deserto abrasador
nossos pés sangrando estão
inda é longe Canaã?
inda é longe Canaã?
estará...inda longe...Canaã?
oh Canaã...

                                                             Igor Zanoni

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Difícil


se há algo difícil neste mundo
é as coisas darem certo
pertence à natureza do ser
à sua ontologia social
não deram certo para Sócrates
nem para Jesus Cristo
ou São Francisco
não deu certo para o próprio mundo
que às sacudidas
dá não seus últimos suspiros
mas suas últimas roucas tosses
por que dariam certo nossas pequenas 
aspirações
nossos amores
nossas modestas trajetórias profissionais?

                                                  Igor Zanoni 

domingo, 13 de outubro de 2013

Balconista


no domingo você compra
um frango assado na padaria
e troca um sorriso com a balconista
outro dia compra um chá e arroz integral
na loja de produtos naturais
e conversa sobre a vida com a moça
na farmácia busca uma aspirina
ouvindo conselhos sobre analgésicos
quando corta o cabalo e as unha
dá uma boa olhada na manicure
não há muito lugar de encontro na rua
mas é possível fazer amigos
comprando aqui e ali o necessário
por toda a parte há frangos assados
chá e aspirinas
e sorrisos amores de um minuto
velhas amizades construídas
sobre o mínimo cotidiano

                                                          Igor Zanoni

sábado, 12 de outubro de 2013

Ordem


1
beberia se eu pudesse 
mais cerveja e mais vinho
fumaria no quintal a erva
ouvindo as Polonaises
mas se eu pudesse
tomaria hidrato de cloral
ópio láudano
pedi a meu médico homeopata
mas ele disse não ser o caso
qual seria esse tal caso?

2
o povo quando se manifesta
não precisa seguir uma ordem
um certo padrão democrático
antes dele a desordem se instala
pelas forças de segurança
e democracia ninguém nunca viu
o povo se manifesta como pode
com sua sabedoria e seus preconceitos
é claro que o povo como todo mundo
tem preconceitos
mas mesmo com eles um dia fará
a revolução

                                                    Igor Zanoni

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Saudade


1
não há muito tempo
o Biotônico Fontoura
e o Vinho Reconstituinte Silva Araújo
continham uma boa dose de álcool
o diazepan até 5mg era liberado sem receita
havia analgésicos à base de ópio
como o Ormigren e o Sedelene
ótimos para a enxaqueca e a insônia
ai que saudade do Elixir Paregórico
que minha mãe deixava ao lado do filtro
para minhas cólicas!

2
tio Pedro tinha vários problemas
era bancário morava no Rocha
sua úlcera não sarava
e acendia cigarro no toco do outro
mas lhe restava uma grande alegria
torcer pelo América do Rio
do qual não faltava um jogo

                                                  Igor Zanoni 

Xis


1
alguns dizem não
muitos dizem sim
mas a maioria diz “xis...”

2
na Igreja Evangélica Terceirizada
nós oramos para você

                                                        Igor Zanoni

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Armário


calculo que daqui para frente
não vou comprar mais sapatos
os meus devem durar
calças talvez
se eu engordar ou emagrecer
mas posso ajustar as minhas
na costureira
as camisas acabam mais rápido
talvez tenha de comprar uma ou outra
em um bom brechó
que já não se trata de gastar o que não tenho
nem de fingir finuras 
roupa íntima sim 
e meias ah as meias sempre rasgadas
vou investir em meias Lupo 
mais duráveis e sempre de bom tom

                                                                    Igor Zanoni

domingo, 6 de outubro de 2013

Sereno


ontem meu filho me visitou
deitou no sofá
estava cansado
tirou uma soneca
sentei-me na poltrona ao lado
e em silêncio não fiz nada
apenas esperei
não bem que ele acordasse
mas uma quietude do tempo
pertencente aos pais 
que na sua vida de todos os dias
recebem a notícia
de que um filho há de vir
não pude dizer qual de nós
estava mais sereno

                                                     Igor Zanoni

sábado, 5 de outubro de 2013

Lojas do bairro


Um sem-fim de lojinhas sobe e desce as ruas do bairro acompanhando seu desordenado progresso. Suas atividades se repetem sem muita imaginação: malharias e uniformes escolares, padarias que vendem aos domingos frango assado e risoto, farmácias, produtos naturais para todos os males, pizzarias, pequenos restaurantes, quitandas, lotéricas, dentre os quais se erguem já agências dos maiores bancos, como onipresentes elefantes brancos distribuindo benefícios aos aposentados e recolhendo juros da maioria endividada.  As lojinhas rendem pouco cada uma, e vivem graças a mulheres que se entediam nos balcões, às vezes bem jovens sonhando com o que fazer na vida, sem resposta, às vezes maduras com o brilho do agora vamos nos olhos e sonhos que me entedia imaginar. Aos domingos essas mulheres e moças vão à igreja, cada vez é maior o número daquelas com vestidos abaixo dos joelhos e cabelos longos. É a nova camada ascendente no bairro, convivendo mas não muito com as mocinhas que vão examinar sua gestação no postinho de saúde, e com as tele atendentes da muitas companhias  de serviços e perfumes da cidade, com suas calças jeans, suas preocupações com o futuro e com os filhos skatistas.

                                                  Igor Zanoni

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Balada de Nossa Senhora


depois de sua assunção aos céus
amparada pelos anjos
pois para ascender sozinha
poder não tinha
como mãe de Deus apenas
e não seu Filho
Nossa Senhora surge na terra
de que tem saudades
no seu amor beatífico e humilde
em aparições veladas segredos sacros
 sobre o futuro dos papas
e dos regimes ateus
agora nas novenas eternas
consola as senhoras pias 
de sua solidão caseira
ao meio dia na televisão
onde o padre jovem e garboso
com seu terno negro e sua gola branca
um pouco preocupado com o ângulo das câmeras
faz sonhar as senhoras que talvez vejam 
mais a criatura que almejam
que o Criador que lhes coube 


                                                                          Igor Zanoni

Periferia


a cidade nos compele a trabalhar
e a consumir
o trabalho é sua insegurança
e seu tédio
o amor é o usufruto do amado
enquanto convém
e a amizade é o usufruto do amigo
entre cervejas e o que nos faça
esquecer sem dificuldade
as dificuldades da vida
mas há os que fazem da arte
sua condição existencial
se algo vai salvar o mundo 
há de ser a beleza
há beleza também na criança no carrinho
empurrado pela mãe adolescente
ajudada pela avó nada velha
há tanta beleza no mundo já agora
que a polícia é canhestra e insípida 
proibindo moralizadora
bailes funk na periferia

                                                   Igor Zanoni

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Templo


quando você ora
em um templo em casa
ou na rua se súbito tem de apelar
meu Deus!
entra em um tempo
há muito frequentado
lembrar isso deve fazer você sentir
que não está sozinho
não apenas pela presença do Senhor
mas pela incontável presença
de outros homens e mulheres
também pela sua presença
que não está apenas à mercê
mas age e ora
em uma ação única
na qual você se põe todo
como pode como lhe ensinaram
como você pretensioso
pensa que agrada ao Senhor
e agindo ora para por toda a vida
orar agindo

                                                                     Igor Zanoni

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Irracional


é necessário partir do irracional
porque todo real é racional
mas não nos convém
e merece perecer
o irracional não abriga
moral antecipada
programas realistas
façamos nossa moral
a partir de nossa vontade
que é obscura
tanto quanto o real é caótico
e nós em sua periferia cotidiana
a luz só tem sentido
se estivermos na escuridão
na luz dos nossos dias cegantes
queremos óculos escuros
e olhar para o que temos de desrazão
se nela temos um melhor caminho
pois ainda cremos em caminhos
em escolha e liberdade
essa crença é irracional
mas também nosso frágil ponto de apoio
para reaver a vida

                                                                  Igor Zanoni