sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Alma

minha alma possuía
um alto pé direito
e pelos corredores de tacos encerados
havia a cada passo cômodos silentes
nos quais não podia entrar
e nem queria
diante da janela de meu quarto
havia uma rua quieta
e contendo o coração eu desmaiava
  tão jovem e sem itinerários
em solene apreensão eu perguntava
quem seria o dono
de tão vasta mansão
tão imensos sótãos e porões
nos quais eu tive de inventar sozinho
um breviário para a vida
ainda hoje inconcluso
entre suas contas e inquieta meditação


                                                                        Igor Zanoni

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Vixe Maria


que concha tingiu teus olhos
azul preciso e necessário
água marinha cavalo marinho
propícia inerência
pertencimento
origem feliz se revela
no meio do caminho
quantos queriam ver o que eles vêem
a pena do pavão de krishna
a vixe maria mãe de deus

                                                          Igor Zanoni

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Comida cara


cortando minha barba o clementino comentou que perto das lojas americanas da emiliano perneta agora há uma lanchonete que vende um cesto pequeno de coxinhas também bem pequenas por dois reais. ele não explicou por quê me disse isso, mas, professor sempre professor, comecei a conversar sobre o preço da alimentação fora de casa e que muita gente em curitiba almoça um crepe de queijo ou uma tal cesta de coxinha quando está no trabalho. o newton havia me dito que muita gente almoça também as refeições grátis servidas no templo hare krishna, mesmo quem aparentemente não precisaria fazer isso. o templo serve cada vez mais refeições, li no seu site que a moçada que mora ali acorda às quatro e meia e só vai dormir depois da meia-noite. uma pessoa que almoça sempre no templo disse que faz isso porque “compensa bastante” e fica “bem em conta”. este é, como se dizia, o “estado da questão”.


                                                                  Igor Zanoni

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Semente


um verso budista diz que assim como uma semente de gergelim é repleta de óleo, assim a vida é repleta de sofrimento. mas o sofrimento é uma percepção de sua própria vida à qual uma pessoa pode sempre dar conteúdo novo e ativo, re- significando e redirecionando-a. em um homem ímpar nesse sentido como francisco, a crise existencial que nele se gestava, até se abrir em longa enfermidade e depois em uma cura, implicou muitas perguntas, tentativas práticas de seu encaminhamento até uma serenidade obtida apenas próxima da sua morte. a igreja buscou apropriar-se desse itinerário criando a lenda de que francisco recebeu os estigmas da cruz, mas francisco não foi jesus nem duplicou a vida deste como modelo, o que seria impossível pois tinha sua própria vida, seu próprio sitz in lebem. tinha sua própria história permeada de suas perguntas e da busca de sua liberdade, e entendia jesus, como todos nós, de sua própria e particular maneira. apenas francisco pôde sofrer de sua própria, inconclusa e aberta maneira, de modo criativo e sem resignação. a vida não é repleta sem mais assim desse sofrimento, tanto que se reconheceu muito tarde a dimensão da figura ímpar de francisco diante de seu tempo, que a igreja logo percebeu e buscou neutralizar.   


                                                               Igor Zanoni

Intimidade


em nossas relações há muito mais de mistério do que julgamos. quem de nós pode pretender que conhece a fundo o seu próximo, ainda que, durante anos, tenhamos convivido diariamente? mesmo aos amigos mais íntimos só podemos transmitir fragmentos da nossa vida e experiência interiores. não nos é possível revelar todo o nosso ser, nem outros seriam capazes de apreendê-lo. peregrinamos juntos na meia-luz que não permite distinguir nitidamente os traços um do outro. só de tempos em tempos, através de incidentes que nos toquem de perto, ou graças a uma palavra proferida entre nós, subitamente ele se torna visível a nosso lado, como que sob a luz de um clarão. então vemo-lo tal qual é...temos de conformar-nos com o fato de constituirmos um mistério um para o outro. conhecer-se mutuamente não quer dizer que se saiba tudo, um a respeito do outro, mas que se tenham amor e confiança recíprocos, e uma fé mútua. a criatura humana não deve ter a pretensão de querer violar a alma do seu semelhante.


                                                           Albert Schweitzer

                                                           (Minha infância e mocidade)