segunda-feira, 30 de maio de 2016

Memória



Nossa memória é construída pela afeição mais que por eventos positivos, pelo tempo efetivo vivido de um ou outro modo, e magnificamos fragmentos de nossa vida até podermos para nós mesmos chamá-la vida e sentir que ela valeu a pena ou pelo menos valeu o que pensamos. Quando nos vem à cabeça a adolescência, esse período tão significativo e cálido, mesmo quando difícil e sofrido, o importante é o tempo passado junto com os que amamos e o que fizemos junto deles, mesmo que para outros tudo pareça uma pequena fantasia. Lembro por exemplo de férias no Rocha, na casa de minha madrinha, em um pequeno condomínio, de tardes jogando bola com primos em um terreno ao lado do Laboratório Silva Araújo, e de ir com meu tio e meus primos ao Recreio dos Bandeirantes no final de semana. Meu tio jogava bem futebol de areia, para mim muito cansativo, torcia pelo América, o que é uma forma de protesto social, era bancário e trabalhava também em um laboratório. Minha madrinha era muito bonita, era professora e no quarto em que eu dormia com meus dois primos ela guardava algumas estantes de livros com muitas traduções de clássicos. Como aprendi a ler muito cedo, passava bom tempo lendo aquela biblioteca. Ali descobri Henri James, por exemplo, do qual li A Herdeira. Meu tio era gentil, mas parco em palavras, fumava muito e tinha úlcera. Minha madrinha fazia para ele sopa de aletria com leite, suponho que fosse boa para alimentá-lo nas suas condições de saúde. Amo estas poucas férias, não foram férias na Disneylândia nem na Austrália, mas eu amava todos eles, nem sei o motivo, o motivo não existe ou não importa, mas eu me sentia muito bem e me divertia.


                                                                    Igor Zanoni

sábado, 28 de maio de 2016

Presença


viver ou morrer não são coisas
que se possam desejar ou esquecer
lembro uma bela mocinha
encantada com tudo o que cabia
em sua juventude
lembro sua força seu sorriso inquisitivo
não sei se me amou como eu queria ser amado
ou se a amei como ela
deveria ser por mim amada
não se escolhe muito bem amar ou não amar
mas há uma energia
como chamá-la? que nos empurra e nos traz
há os sons há os colos preferidos
as zangas que não evitamos
os passeios e roupas novas
a obrigação de seguir por aqui ou por ali
se não queremos nos perder
se sentimos que pode haver um sentido
e quando nos vamos daqui ou dali
abraçamos os que nos acompanharam
dizemos obrigado gostei de sua querida presença
agora eu me vou é pena?
não sei se alguém sabe
nem há tempo para pensar nisso


                                                                  Igor Zanoni

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Volúpia



pela janela ouvi um cão distante
um desusado sentimento de paz
cercava os pés
água marinha conchas
barcos secando suas redes
o dia é raro que seja
essa distensão do espírito
da janela o bairro
se movia entre automóveis
pessoas que saem fazendo das suas
ou apenas assam uma carne
senhoras entram em missas
ligam televisores
meu piá saiu de bike
eu graças ao bom Deus
ganhei um tempo para não pensar em nada
caiu do céu
aproveito para não pensar em nada
apenas deixar que corra no corpo
essa serena volúpia
de preguiça
e de ah deixa prá lá


                                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Sonho




em períodos muito cansativos
o real é incompreensível
ou quando dele nos aproximamos
parece inadmissível
por nossos medos e escrúpulos
silenciamos e fugimos
não queremos estar tão presos
não queremos estas armadilhas
em que nos colocamos
escapamos para o deserto
mas também o deserto tem suas luzes
e suas ilusões
frente à solidão e à inércia
encontramos ainda um recurso
um poderoso filtro
então sonhamos
neste momento você também saiba
eu sonho
e não me perco completamente


                                                         Igor Zanoni

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Conosco

 

vivendo em nossas pequenas poças
com os sentimentos
que após todo o tempo
criaram um resíduo
de desconhecido e de medo
movemo-nos com tanto peso
em tanta obscuridade nos absorvemos
no alto há a lua
como poderíamos reter na superfície sua luz
devolvê-la ao cosmo
como poderíamos nos tornar
um cosmo brilhante
deixar o passado e o futuro
em silêncio tranquilo
estarmos todos conosco


                                                    Igor Zanoni