domingo, 30 de setembro de 2018

Estórias

Guacira dizia que eu sempre vivia muitas estórias. era uma crítica, ela achava que minhas estórias eram fictícias ou que eu embelezava o que vivia. porém eu sempre pensei que entre a história contada e a vivida há um pacto, nenhuma é real no sentido vulgar do termo, tudo é invenção, uma quase história. Conceição Evaristo no seu belo Becos da Memória avisa logo de início que conta o vivido e o inventado, inventar é dar maior relevo ao vivido. Cony também escreveu um livro sobre seu pai que se chamava Quase memória usando o mesmo diapasão. contar estórias é um dom, há quem não saiba contar. isso é uma tarefa de velhos, que reúnem em volta de si as crianças mantendo com as estórias as lembranças do povo. já eu acordo de manhã e penso: então, qual a estória de hoje? e inventando crio ao meu redor um povo, meus amigos que me ouvem com seu carinho nesse mundo que preciso ganhar mais graça para ser real.


                                                      Igor Zanoni


sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Guloso


mamãe fazia ótimos sonhos polvilhados de açúcar e canela e recheados de goiabada, bem melhores que os da padaria. fazia muito doce, eu preferia balas de coco porque podia ajudá-la a dar ponto na massa quente esticando pela cozinha toda. mamãe fazia toda nossa comida, nunca teve empregada. eu amava seus pudins, o rim com batatas, o camarão no vapor. nas sextas eu a acompanhava à feira, para comer pasteis com garapa e comprar peixe, pois sexta era dia de peixe em casa. mas ela tinha um lado B, quando, às vezes, de manhã falava alto meio para nós e meio para as paredes: meu Deus, estou sem nenhuma ideia. o que vou fazer de almoço pra essa turma?

                                                             Igor Zanoni

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Queimaduras


a moça morava na casa de esquina de nossa quadra, na pequena cidade de fronteira em que papai servia o exército. era mulher de um cabo que nunca vi. em sua casa havia um espaço com uma árvore baixa onde ela prendia um quati manso que subia e descia os troncos. eu gostava de ver o quati, que era rápido e bonito. na cidade, pensando nisso, não lembro de gatos e cachorros, mas do quati e de bois e cavalos na rua, de um homem que tinha um pequeno veado no quintal, e das galinhas que mamãe criava. acho que a moça soube que seu marido a traiu, derramou sobre si o querosene de um lampião, muito usado naquela cidade sem luz elétrica, e pôs fogo. soube do acontecido por mamãe, achei horrível. nunca mais vi o casal, mas imaginei como a moça teria ficado feia para sempre, ela que era uma moça faladora e nova, até bonita. ganhei um enorme horror a queimaduras depois do acontecido.

                                                                  Igor Zanoni  

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Nossa Senhora das Dores


não guarde para si o tumulto do mundo
não adorne sua cabeça de dores
como uma sofrida Nossa Senhora
o que acontece não compõe uma coleção de selos
nem um álbum de figurinhas da Copa
aprenda a se desfazer da dor
mas não a jogue fora sem mais
se isto for para você possível
antes examine sua vida
seja uma pessoa reflexiva
seja uma pessoa analítica

                                                            Igor Zanoni

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

A paz


a paz é um sentimento ativo
não apenas alívio
quando o desejo foi extinto
e o que não era bom se quebrou
ela não é um saldo
sobre o que na fragilidade perdemos
nem uma conta de mais e de menos
a paz é o ápice a cumeeira
que alcançamos com força e doçura
dela olhamos para a vista do mundo
e como por milagre
já não temos medo algum
da enorme paisagem à frente 

                                                           Igor Zanoni