domingo, 29 de dezembro de 2013

Sobre a luz


Naquele tempo, havendo escuridão no terreno em volta da casa, ao se acender a manga da lamparina de querosene, inumeráveis formas de insetos cobriam as paredes em volta da cozinha aberta para o quintal, e me maravilhavam suas formas e disposição, sua quietude, em tudo obedientes à luz como nós mesmos, em volta da mesa, obedientes ouvíamos o pai falar e nos servíamos do que mamãe preparava. Mais tarde, andando nas ruas da pequena cidade para fugir ao calor e ao tédio, sentíamos as aleluias nos assediarem perto dos raros postes, provocando sempre as costumeiras irritações e reclamações. No verão, mesmo durante o dia as ruas cobriam-se de içás, que os meninos caçavam para as mães torrarem nas frigideiras, iguaria esperada todo ano na dieta monótona, quebrada todavia ainda por talos de erva doce e jatobás enjoativos mas não desprezados. Este era o logos, e mesmo sendo criaturas comuns, como todas as outras no mundo podíamos manifestá-lo.

                                             Igor Zanoni 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Bondade


o amor mais sublime 
busca algo do outro
nós só vivemos para o outro
e o outro só pode ser reconhecido
se pode se dispor para nós
o sacrifício nada mais faz
que tornar sagrado o desejo
não há nenhum amor ou bondade
em atirar pérolas aos porcos
a bondade deve ser
uma ciência sofisticada

                                   
                                                          
                                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Ponta Grossa


1
Ponta Grossa faz limite
com essa região ignota
de gentios sem fé sem lei e sem rei
que é o mundo
mesmo que seja preciso
peregrinar por ele
alguém de lá conserva intato no coração
o patrimônio espiritual
a ética o transcendente
ser de Ponta Grossa

2
as moças de Campo Largo
casam com os rapazes de Ponta Grossa


                                                                        Igor Zanoni

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal



                                                      Para Adilson Volpi

A quase totalidade dos fiéis, infantilizados em suas igrejas cristãs por padres e pastores, acreditam em um Cristo que nasceu desde o Céu pronto, com um propósito definido que ele conhecia, o de redimir a humanidade de seus pecados. Embora creiam que ele foi ao mesmo tempo um homem, não percebem muito bem que nesta condição ele viveu em um ambiente cultural e religioso denso e polêmico, no qual conviviam diversas visões intelectuais, políticas e sociais, que ele teve de entender estas visões e escolher para si a que melhor convinha para sua própria consciência e valores. Assim, vinculou-se a certas interpretações do cosmos e de Deus, que entendeu criativamente e mesmo para muitos de forma herética e perigosa, a ponto de não lhe restar senão assumir um ideal de auto sacrifício e uma consciência messiânica de si mesmo. Mesmo assim, foi pouco entendido diversas vezes, e mesmo à luz da crença na sua ressurreição e na efusão espiritual que se seguiu, os relatos disponíveis nos evangelhos, em Paulo, nos Hebreus, por exemplo, são notáveis pelas formas como pôde ser compreendido e dar origem a diversas concepções de ação missionária e de futuro do homem e do mundo. Por outro lado, ainda hoje se podem estudar as várias percepções sobre Jesus Cristo de inúmeros teólogos e missionários. Ele foi um ser excepcional e controvertido, sobre o qual cabem poucos dogmas, se é que cabe algum. Nesta condição nasceu para cada um de nós, se somos ou não cristãos, como uma promessa, mas também como um problema, a promessa e o problema de sua e de nossas próprias vidas

                                   Igor Zanoni

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Destino


1
para qualquer pessoa
os dias nunca são iguais aos outros
o humor nunca é o mesmo
as perspectivas mudam
e mesmo sentimentos arraigados
sofrem mudanças
para qualquer um o melhor é dizer
que há sempre algo novo sob o sol

2
ninguém pode comprometer-se 
com uma decisão mesmo a mais banal
e sensata
sempre há muitas pessoas com as quais vive
e diante das quais não tem liberdade
a menor decisão envolve
grandes contextos afetivos e alianças cotidianas



                                                                 Igor Zanoni

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Grande Amor


descobri que não é preciso o grande amor
qualquer amor me conduz e apraz
não preciso de grandes ficções
a vida comum já é bastante rica e complexa
um filho pode ser seu maior amigo
um amigo pode precisar ser seu filho
é impossível manter as relações como se deseja
as carências podem não ser as que você pensa
o desejo pode ser muito mais obscuro
do que gostaríamos ou nos obrigamos
as grandes receitas da vida
são as de fazer bolo ou peru de Natal
o que vem pode não parecer tão bom
mas é o que está aí e com isto temos de lidar
para ele não há receita em parte alguma

                                                        Igor Zanoni

sábado, 21 de dezembro de 2013

Perguntas


como se chega ao céu
como derrubar o capitalismo
onde se encontra a felicidade
como jurar amor eterno
como manter a esperança
ou não perder a fé
ou tantos amigos caros
como não ser excessivo ou insuficiente
como se contentar com o que se tem
qual a simplicidade necessária
ou o ardil cheio de sabedoria
como entender os clássicos
como amar os pobres de espírito
como explicar o que se pensa
como ser você mesmo
o que é ser autêntico
se a autenticidade não está no sangue
qual é o caminho
o que se entende mesmo por verdade ou vida?

                                                                   Igor Zanoni

                                                            

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Menino olhando a chuva


o sentimento de olhar a chuva
através do vidro da janela do quarto
quantas tardes? a casa silenciosa
os irmãos onde estão? nem penso
mamãe fechada no quarto
meu pai no quartel
 a síndrome da chuva
silenciosa extática
formando o barro na rua entre a bosta
das vacas e dos cavalos
nem pensar na casa da outra margem da rua
o essencial a chuva
impensável de outra maneira
olhos líquidos
quantas tardes? em que vida?

                                                                       Igor Zanoni

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Problemas


1
o maior problema do homem comum talvez seja  que “ meu perfil não se encaixa no mercado”, como disse ao se aposentar precocemente o goleiro Fábio Costa. sorte sua poder se aposentar. os demais tem de seguir tentando se encaixar à custa de sua autenticidade  e saúde.

2
muitas coisas precisam ser tiradas da cabeça e deixadas onde estavam ou ainda estão.

3
alguém disse no início da República que “um país se faz com homens e livros”, mas o maior fracasso brasileiro é o da escola, pública ou privada. o país demonstrou que não pode fazer em massa pensadores, aliás nem deseja. construiu ao invés um rude modelo de criar intelectuais bambas em matemática e redação em inglês, essa forma ao mesmo tempo moderna e inatual de saber javanês, para lembrar Lima Barreto.

4
Oswald de Andrade pôs a questão: “ tupy or not tupy”,nos primórdios do nosso modernismo. muitos comemoram o chamado pós-modernismo, eu lamento o neo-anacronismo que deve necessariamente apagar Oswald da nossa escola.


                                                                       Igor Zanoni

domingo, 15 de dezembro de 2013

Convicções


as convicções mais íntimas
elaboradas em silêncio
na usina dos nervos
não podem ser explicitadas
nem compartilhadas
por isso é difícil saber do outro
conhecer os gestos que seriam precisos
a fala é sempre equívoca
ainda que o silêncio não convenha
conversar é tarefa interminável
mesmo a bondade é difícil


                                                                    Igor Zanoni

                                                            

sábado, 14 de dezembro de 2013

Agradecidos


1
não é necessário ou talvez possível a muitos de nós obrigar-se à fé ao filho de um Deus que trouxe a superação da morte corporal ou à escatologia de uma vitória sobre o mal que concerne a nossas vidas e aos muitos poderes do mundo. não é justo conosco, em nossas muitas dificuldades, a obrigação de superá-las em um espaço da alma que reproduzirá conflitos míticos, no espaço de igrejas sem coração elevando-nos a uma transcendência ineficaz e autoritária. não precisamos de mais um poder em nossas vidas quando precisamos de liberdade e amor verdadeiros, pelo menos da autonomia pessoal ao busca-los, e de fazê-lo com uma alegria genuína e originária. mas não é possível ignorar a vida desse homem, do que disse e fez, de sua inestimável importância e grandeza. ele nos amou, nos elevou, nos indicou dimensões que não conhecíamos, que a humanidade não conhecia. em cada momento de sua vida ele morreu para esse mundo que hoje expira, e ressuscitou na utopia que construiu com sua vida, sua grande perspicácia e as dimensões de fé e tradição de sua cultura. mesmo que essa fé e esperança não nos pertença hoje, a lição da transcendência, da severidade crítica, de busca de apresentar-se aprovado em seu itinerário existencial, é um legado que não podemos ignorar nem tomar sobre o ombro de modo simples e ingênuo, ou curvado sob a culpa. ele não nos trouxe culpas, mas caminhos para a redenção, ainda que não do modo como fomos ensinados e nos sentimos forçados a aceitar sob grandes sofrimentos inúteis e falsas esperanças em instituições e homens indignos de nós.

2
aos que nos amam ou amamos é preciso sobretudo sermos agradecidos.

                                                    Igor Zanoni 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Contrição


devo me obrigar à contrição
para deter o insensato impulso do mundo
eu o senti como Ulisses ouviu as sereias
mas antes amarrando-se ao mastro
não fui tão sábio
a sabedoria não vem pronta nem em gotas
nós a preparamos por muito tempo
até que sobrevenha com impacto
não serei mais um combatente
em uma guerra infinita e já perdida
escolho agora meus próprios combates
contando com meu ser tão frágil
e às vezes caótico
serei tantas vezes o companheiro 
que não esperam
trarei como puder a paz e o bem
com a relutância com que São Francisco
se obrigou à sua estranha santidade


                                                                          Igor Zanoni 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Comunidade


1
embora não sejam felizes, e acumulem preocupações e decepções, muitos simplesmente não podem mudar sua vida, e a defendem com convicção e veemência. criam associações com um seleto grupo para firmar este caminho difícil como o bom caminho, e criam seus próprios ritos e comunhões, ladainhas e práticas, exatamente para que nada na vida mude e sejam modelos para os outros nas suas vidas insensatas
2
no almoço de domingo ela lembrou dos almoços na casa de seu pai, como era austeros e havia muito respeito. certamente era nostálgica do respeito pelo qual luta até hoje, uma luta com certeza perdida, como deve bem saber
3
 Jesus disse que se não anunciássemos ativamente o reino dos céus, as próprias pedras gritariam, não ouvimos essas pedreiras, quebrando nossos telhados de vidro?
4
os essênios, os helenistas, o quarto evangelho, os gnósticos judaicos e o próprio Jesus afirmaram que o verdadeiro templo é a comunidade dos fiéis, na qual o Senhor estaria presente sempre que dois ou três se reunissem em seu nome. certamente por isso não há uma instituição com nome de igreja que possa ser levada a sério, ainda que pastores e ordens educacionais fiquem ricos, padres se emocionem com a castidade da virgem e se reze e cante como nunca na história 

                                                                  Igor Zanoni

domingo, 8 de dezembro de 2013

Amigos


1
às pessoas tristes, tristíssimas, que não podem ser consoladas, poderíamos desejar ao menos calorosos bons pêsames

2
roberto tem uma solução radical para todos os problemas do mundo: cortar as mãos dos ladrões. ele tem uma encenação detalhada a respeito, uma declamação expressiva, mas não explica, nem desenvolve, nem se deixa questionar

3
quando éramos novos, Geraldo foi preso por estar com um pouco de brown. ele era pintor, mas na cela só encontrou uma camisa de algodão rude, agulha e um retrós vermelho. bordou várias figuras na camisa, vacas, cadeiras, e outras que não me lembro. também me escreveu: aqui está tudo certo, como dois são um e um separados. usei a camisa muito tempo, mas o tempo levou tudo, menos essa lembrança


                                                                       Igor Zanoni

sábado, 7 de dezembro de 2013

Tarefas


para mim sempre foi compensador buscar
ser uma pessoa compreensiva e razoável
mas este é um ideal de pai árduo cansativo
poucas vezes alcançado
não tenho uma vocação para o auto sacrifício
não sou o guia genial dos povos 
o homem providencial
não posso atender às altas expectativas
que tantas vezes me impuseram
e eu mesmo assumi
eu também surto me perco me entristeço
tenho um agudo sentimento do mal
sei da nossa solidariedade no mal
não acho o prazer e a felicidade
uma boa meta na vida
nunca vivi por mim apenas
tive na vida poucos momentos de paz
a paz é uma vocação exigente
poucos podem busca-la
não posso pedir a ninguém que me poupe
mas aos poucos é necessário para mim
buscar outras margens
e dar certas tarefas por concluídas


                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Marcas no caminho


não sei se saberemos
não ir por aqui ou por ali
teremos de descobrir o que nos cabe
distinguir com dificuldade tarefas
evitar colocar para nós problemas inúteis
com sorte teremos à frente
um longo e estreito caminho
tentaremos não nos perder de nós
e caminhar juntos
de mãos dadas
nem sempre lutaremos o bom combate
ou entenderemos o que se passa
mas deixaremos no caminho
as nossas marcas

                                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sol


1
todos apreciamos o sol e sabemos da importância da vitamina D. mas constitutivamente temos limites físicos e psíquicos para apreciar o sol. os gatos e os cães, por exemplo, fazem isso muito melhor do que nós. meu gato deita-se de costas no quintal bem ao meio dia, com as patinhas bem abertas e os olhos cerrados. para ele, com todos os seus pelos compridos, felicidade é um dia tórrido.

2
muitos querem ir a algum lugar na vida
mas na praça Rui Barbosa
pode-se pegar um ônibus
para qualquer lugar de Curitiba

3
muitos simpatizantes dos mais despossuídos organizam cooperativas de catadores de papel ou de reciclagem do lixo. conheço freiras piedosas que passaram muito tempo de suas vidas vivendo entre esses escolhidos. mas há formas modernas e mais interessantes de lidar com essa infecção urbana que são os bairros onde se depositam os lixões. há outros modos de separar e reciclar o lixo e se livrar do chorume, manter pessoas no meio dele é separá-las definitivamente da cidade e preservar sua não cidadania. falar aos marginalizados e ouvi-los requer mantê-los nas bordas de nossas vidas? os piedosos e solidários também segregam?


                                                               Igor Zanoni

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Juízo


curiosidade não é conhecimento
nem conhecimento é sabedoria
muitos tem a consciência  boa
sua ascensão é irresistível 
e exercem fascínio e poder sobre outros
mas no Dia do Juízo o Senhor lhes dirá:
afastai-vos de mim
não vos conheço
apartai-vos para a gueena
lá haverá fogo e ranger de dentes!

                                                       Igor Zanoni

Instituto Pinel

Instituto Pinel

no antigo Instituto Pinel, em Curitiba, hoje funcionando com outro nome, muitos amigos foram internados e eu mesmo fui atendido por um bom tempo. internava-se ali apenas quando uma pessoa não podia proteger-se e corria risco. ela ficava um tempo, era medicada, fazia sessões de psicoterapia individual e também sessões nas quais interagia com os demais 
sob tratamento. a vida ali era dinâmica, dentro do tempo de descoberta de um sentido pessoal 
e coletivo que não podia deixar de ser gratificante e necessário. na fragilidade que envolvia a todos, percebia-se um novo ser coletivo, mais por ser formado que por ser identificado. muitos tinham dificuldade de sair á rua, de cuidar-se em aspectos básicos, mas evitando uma duvidosa aura de doença, os médicos levavam todos a que se ajudassem no cotidiano. assim, os internos organizavam expedições coletivas ao supermercado, compravam coisas necessárias a partir de lista de compras e orçamentos, dividiam as despesas e se apoiavam ao atravessar o bairro. naquela época se reconhecia o papel limitado de psiquiatras e medicação, cada um reaprendia seus valores e formas possíveis e dinâmicas de perceber a vida e toma-la a seu encargo. a vida era menos quadrada, os problemas de todos eram de certa forma menores, ou mais compreendidos e reconhecidos, e a cooperação um princípio fundamental para muitos que até ali haviam vivido isolados e com pouca ou nenhuma esperança. não era a época de descobrir o sentido da vida, ou de nem pesar no assunto, nem de proteger-se em espaços fechados como esta ou aquela instituição e perspectiva existencial. havia mais abertura e aventura, nós sentíamos nas dificuldades uma gravidade alegre e a graça do tempo.

                                                                            Igor Zanoni