No Reino dos Céus

No reino dos Céus ninguém mais

Trabalhará com Uber

O salário-mínimo triplicará

E o SUS funcionará maravilhosamente

As igrejas não serão mais necessárias

Nem o Congresso ou o STF

As pessoas andarão desarmadas

E as mulheres não mais serão estupradas

A Polícia distribuirá sopa aos sem teto

E os traficantes se cansarão de suas maldades

Todos terão picanha no almoço e na janta

As cidades serão seguras e calmas

O trânsito não será mais violento

Não se ouvirá mais falar em guerras

E rumores de guerra

Os Estados Unidos e Israel serão pacíficos

Assim diz o Evangelho

Quem lê entenda!

 

                                                       Igor Zanoni 

Vasta massa esquecida

Tão logo vem a morte

Fechar os olhos dos seres

Perdem-se no infinito olvido

Ali estão para sempre esquecidos

Soldados surpreendidos nas batalhas

Camponeses ainda presos ao arado

A vasta massa proletária das oficinas

Nas quais foi engolida

Sem memória sem história

Quais foram seus desejos suas vidas

Sua fome

Pouco sabemos

O nome de filósofos reis grandes generais

Flutuam como uma nata

Sobre esta vasta multidão

Que afunda pelos séculos e milênios

Sem uma palavra

Quase sem vestígios

 

                                                      Igor Zanoni 

Meu pai

Enquanto eu não assumi minha própria vida

E parti ansioso para o mundo

Meu pai foi uma sombra que me permitiu dar

Meus primeiros passos com certa segurança

Quase tudo que fiz lhe devo

Ao dar a mim muito do meu rumo

Tanto do que vivi até meus vinte anos

Teve ele por trás com suas ideias e preferências

E também com suas limitações

Ainda hoje lembro minha vida descuidada

De menino e de jovem

Mas com meu pai por perto para o bem e o mal

Agradeço não ter tido nunca

Um pai muito difícil de lidar

 

                                                           Igor Zanoni

  

Vizinhança

É sempre bom conversar com um vizinho

Mesmo sem ter nada muito importante

Para dizer

Ativamos assim a função fática

Nosso contato urbano e cálido

O ambiente cotidiano é formado

Desde já pela vizinhança

 

                                             Igor Zanoni 

Não por mal

1

Você me diz que achava

Que eu fazia por mal

Mas descobrira que era só

O meu jeito

Puxa

Eu nunca achei que você

Fizesse por mal

Sempre pensei que era

O jeito da madeira

 

2

Em alguns domingos de manhã

Eu vou à capela do bairro

Não por devoção

Mas para verificar se Jesus

Ultimamente passou por lá

 

                                                           Igor Zanoni 

A Rota da Seda

 

Tão logo a física desprezou

O livro de Gênese

E anunciou motivos puramente físicos

Para o nascimento do universo

O pontual Kant escreveu que se assim era

O universo também haveria um dia

De colapsar

Pouco mais tarde quando o capitalismo

Triunfou na Europa

Mas logo mostrou sua inerente ciclotimia

Muitos escreveram sobre o seu colapso

Quando há uma crise diziam:

É a crise final?

Sim amigos vivemos a crise final

Este é um tempo de crise

Mesmo que a Bolsa suba

Por isso a China a seu modo

Constrói o socialismo

E o estende ao mundo

Com a nova Rota da Seda

  

Perdas & Danos

Nós somos muito diferentes

Eu não caibo na sua vida

Quem perde com isso?

Sou uma pessoa gentil

Não ando por aqui

Com seu instinto de predador

 

                                              Igor Zanoni 

Conversar

Nem sempre uma simples conversa

É viável

Atrás de uma frase há pressupostos

Brotem do pensamento ou da vida

Uma frase pode ser uma sentença

Difícil conversar com quem é sentencioso

Quando há divergências se condena o outro

Por não ser muito compreensivo

Ou por ser tolo até ignorante

Melhor quando há desacordo

Levar mais leve a relação

Brincar deixar para lá

As pessoas são difíceis

 Quem é uma pessoa fácil?

 

                                                  Igor Zanoni 

Ser humano

É evidente que não posso atribuir

Tudo que experimento

Particularmente a mim mesmo

Antes me surpreendo tanto

E com frequência penso

Ora, então isso é ser humano?

É tão próprio de mim

Como ser humano!

 

                                              Igor Zanoni 

A felicidade dos convertidos

As pessoas que erraram por esse mundo

Confuso e sem Deus

Pessoas que sentiram perdidas

E desiludas

Sem caminho sem rumo certo

Muitas deles se converteram a uma fé

De que os mais cultos podem rir

Mas que de algum modo fez sentido

Deu esperança organizou as relações

Ainda que as tenha convencido

De inúmeras convicções insossas

E insensatas

Inscreveu seus nomes na eternidade

Deu à palavra do pastor uma inconteste

Autoridade

Assim levam suas vidas com uma estranha

Felicidade

 

                                                       Igor Zanoni 

Dreams

Meus sonhos foram invadidos

Pela covid, dengue, influenza

E agora pela gripe aviária

Antes foram aviltados pelas figuras

Que infestam a política e a religião

Tudo que posso fazer é tomar

Todas as vacinas possíveis

Afastar-me das igrejas

E votar sempre no menos ruim

Sempre existe um

 

                                                        Igor Zanoni 

Nave

Ela passa singrando a sala

Como uma nave

Em um mar sereno

Não posso desviar meus olhos

Tudo nela é calma e beleza

Como alguém pode se distinguir tanto

Do comum das pessoas?

Todavia talvez não tenha

Muita consciência de si

Essa consciência eu a tenho

Alguém belo e jovem

Passando por minha vida

Sem que eu possa desviar-me

 

                                                          Igor Zanoni 

Tempo mau

Tão logo o tempo mau

Vem espreitar minha vida

E me sinto incapaz de agir

O sono me pune

Os sonhos se turvam

Acordo no meio da noite

Não posso fingir que nada

Acontece

Não tenho como esquecer

O que vivo

Cumpre viver a vida

Esperar que o mal passe

 

                                                               Igor Zanoni 

Que fase

Todos sabemos

A lua tem quatro fases

Os atletas também têm períodos

Melhores e piores

A praia tem marés

Nossa vida às vezes

É muito boa

Noutras precisamos dizer:

Que fase!

 

                                          Igor Zanoni 

Sylvia e Alejandra

Ah essas poetas suicidas

Sylvia Plath e o gás da cozinha

Alejandra Pizarnik  e cinquenta comprimidos

De seconal

Moças brilhantes e tristes

Anos de clínicas psiquiátricas

Eletrochoques e injeções de insulina

Eu as amaria com ternura

Mas poderia partilhar sua dor?

Leio seus versos

Seus escritos seus diários

Deliro com elas

E herdo parte do que foram

 

                                                    Igor Zanoni 

Madrugada

Como a torneira da cozinha

Pingando na madrugada

O barulho é mínimo

Mas na casa silenciosa

Parece explosões incessantes

O sono não pode vir

Você já tomou Rivotril e Melatonina

Inútil

O olho aberto fixa o teto do quarto

Toda a casa centra-se no barulho

Amanhã você poderá consertar tudo

É tão fácil resolver

Esses pequenos problemas

Mas agora só é possível suportá-los

Suportar o insuportável

Um barulho tão pequeno

Como o sono faz falta!

Você não consegue sorrir

De suas pequenas enormes dificuldades

 

                                                       Igor Zanoni 

Pepe Mujica

Pouco é suficiente

Desde que a pobreza não nos aflija

Uma cela não torna um homem só

Quando tem na mente uma amiga

A doença não nos levará ao céu

O céu esteja conosco desde já

Um pequeno sítio em que se sinta bem

Vale por um latifúndio de vida sã

 

                                                   Igor Zanoni 

Divaldo Franco

Quando não há sol de brigadeiro

E vem as nuvens negras

É hora de buscar o guarda-chuva

De tornar à casa acolhedora

De manter calma quando a tempestade

Nos assusta

Quando estamos assim recolhidos

E ilhados

Bom é preparar um chá bem quente

Manter uma conversa amena

Com a mulher

Quem sabe ler um livro espírita

No qual tudo é fantasia consoladora

Há momentos assim nos quais precisamos

De consolo e fantasia

 

                                                          Igor Zanoni 

A vida mutável

Nunca diga: isso não acontecerá comigo

A vida oscila

Sobre nós passam os governos

As pandemias

A alta no custo de vida

O emprego insatisfatório

Nossas variações de humor

E tantas outras intempéries

Olhe para seus vizinhos

Não muda nada entre eles?

A vida que se abrevia

O casamento que se desfaz

A saúde que falha

Eu não tenho conselhos a dar

Para as vicissitudes do mundo

O acaso nos colhe

Nosso conhecimento das coisas

É tão imperfeito

Façamos o possível para evitar o caos

Mas isso sempre será pouco

 

                                                               Igor Zanoni 

Metafísica

Ele vira para mim e diz com ar metafísico

Cara, você já pensou nessas coisas?

A gente dá duro a vida toda

Trabalha luta com o dinheiro

Cria filhos e aí um dia o que acontece?

Nada, morre, some do mapa

Eu respondo irritado

Cara, quando você morrer

Vai tocar a música do Carruagens de Fogo

E alguém te entregará uma taça dizendo

Ao grande campeão

Apesar de tanta reclamação

 

                 (Ao amigo Edson)

 

                                                                                                                   Igor Zanoni 

O amor arredio

As canções costumam falar

De amor

Todos amam o amor

Que conduz à vida boa e feliz

Canções de boas-vindas ou despedidas

Irônicas ou poéticas

Há mil formas de cantar

O amor arredio

Mas todas elas se somadas

Não dão conta do seu tema

O amor é vasto inesgotável

Disperso em muitos momentos

Sempre se pode dizer

Toque de novo, Sam

 

                                                           Igor Zanoni

 

  

Um beijo desastroso

Muitas vezes me inclinei para um beijo

Que seria no momento desastroso

Um beijo tem antecedentes e consequências

Mas me parecia que não

Que existia só no momento

Na proximidade cálida de uma alma

Que me tocava e que eu tocava

No território da beleza e da intimidade

Com sua aura inconteste e amiga

Bastaria um minuto e o resto

Que se apagasse

Nele não queria pensar

Seria como um suicídio

Um instante de vertigem e de passagem

Para onde?

 

                                                                        Igor Zanoni 

Nada de demonstrações de amor

Ela não faz demonstrações de amor

Talvez não saiba se ama

Talvez na melhor hipótese

Não saiba que ama

Para ela devo manter essa relação

E tudo assim fica muito sem graça

 

                                                          Igor Zanoni 

Desejo

Conforme o que julgo ser

O mais íntimo e inconfessado desejo

Um dia eu irei não sei como ou quando

Cansei de manter erguidas as pontes

Quando você tem o dom da terra arrasada

Cansei de mirar no horizonte seus drones

Partindo meus esconderijos

Um dia como na canção sem fazer alarde

Pedindo de volta poucas coisas minhas

O disco de Pixinguinha o livro de Neruda

Assim irei digo já para que não se perca

Em minha decisão tão madura

Que tanto mal me faz

 Tivesse algum caminho, mas não tem

 

                                                Igor Zanoni 

Apaixonar-se

Algumas vezes eu me apaixonei

Foi como nadar rumo ao mar alto

Perder a noção de limites

Sentir-me ao mesmo tempo

Incontido e pequenino

Sonhando com a boa companhia

Que nem sempre posso ter

A solidão a tristeza o medo batem

E a excitação quando é momento

De não mais perder-me

Quando afinal me encontro

Na orla da vida

Como se a vida estivesse afinal ganha

 

                                                                           Igor Zanoni

 

 

  

Um encontro desagradável

Na rua você encontra uma pessoa

Que lhe parece desagradável

(a maior parte das pessoas

Não lhe agradam)

Pensa: ainda bem que não sou

Como ela

Mas outra pessoa passa por você

 E lhe acha desagradável

Pensa: ainda bem que não sou

Como ele!

 

                                                       Igor Zanoni 

Formigas no inverno

Quando o tempo esfria

As formigas somem

Que bom eu já estava cansado

De cobrir bem tudo que tivesse

Açúcar

Quando esfria para onde elas vão?

Naturalmente para seus formigueiros

Mas não há formigueiros em minha casa

Ou há? Preciso investigar

Mas no fundo não quero matar

Nem mesmo uma formiga

 

                                                          Igor Zanoni

                                                   

Rua

Quando saio à rua por algum motivo

Quase sempre vejo pessoas costumeiras

São as que vivem na e da rua

Carregando sacolas de muambas

Pedindo algo no comércio

Ou bebendo cerveja na esquina

Há também as que passeiam o cachorro

E as que saem para andar e ganhar fôlego

A rua é povoada por esses pedestres

Os demais moradores saem de carro

E pouco vivem do bairro

Quando o frio ou a chuva vem

Para onde vão esses pedintes

Transeuntes obrigados por sua miséria?

No outro dia uma casa abandonada

Foi invadida

E a polícia foi chamada

O rapaz (era um rapaz)

Ganhou muitos tiros e morreu na hora

O destino do pobre é a rua ou a favela

A polícia contém as invasões

 

                                                    Igor Zanoni 

Velhos amigos

Velhos amigos amantes da política

E de boas discussões

Agora se reduzem ao sofá

Assistindo a Globonews

Também gostam dessa proxy fajuta

De amizade

O facebook

Seria melhor aprenderem tricô

Fariam um casaco para o frio

Que o inverno logo chega

 

                                                                 Igor Zanoni 

Um jovem senhor

Ele é um jovem senhor

Deixou há muito o mau tempo

Do fim da adolescência

É atraente bom na sua profissão

Dinheiro não o incomoda muito

Todavia é uma pessoa difícil

Controladora pouco carinhosa

Como lidar com ele?

Temos sempre de ser cuidadosos

Não avançar nenhum sinal

A conversa nunca vai muito longe

Recusa qualquer ajuda

Acho que se sente triste

Como nasce em alguém

A dura tristeza?

Meu bem você parece o máximo

Mas guardo-me em silêncio prudente

 

                                                                          Igor Zanoni