Emanuel

Quando o Senhor estava conosco

Nem sempre o compreendíamos

Nós o seguíamos por seus caminhos

Mas nem sempre sabíamos

Onde estes caminhos iam dar

Nem sempre estávamos seguros

Ele era a um tempo claro e obscuro

Lutava conosco mas havia com Ele

Uma luta difícil de partilhar

Quando afinal se foi não acreditamos

Então voltamos passo por passo

E relendo nossa Escritura que Ele amava

E cuja leitura corrigia

Refizemos em nossa vida a Sua vida

Como um povo antigo para o qual

Havia um novo começo há muito anunciado

Então compreendemos o que vivemos

À nossa maneira talvez

Com uma certeza e clareza nossa

Do que havia antes e depois

De sua vida turbulenta

Se é que estamos ainda em Seus caminhos

Se é que não contamos muita estória

Para acalmar o coração

E assim forjamos mitos e dogmas

 

                                                                     Igor Zanoni 

Os pássaros

Os pássaros são intempestivos

Uma pomba-rola bateu em minha cabeça

Levei um susto hitchcockiano

 

                                                             Igor Zanoni 

Um lugar bom e possível

Há tantos à minha volta

Que amo ou preciso ver

E tornam minha vida possível

Sei com certeza que conto

Com todos eles

Há também tantos que não conheço

Mas criam o ambiente mais geral

Do bairro da cidade do país

Em que mergulho a cada dia

Muitos me afligem

Mas outros são um grande povo

Com o qual tenho tanto em comum

Guardo em meu coração

A esperança de que todos nós

Possamos formar em dia próximo

Com cada coração

Um lugar bom no mundo

Para que o mundo seja para todos

Um lugar bom e possível

 

                                                                Igor Zanoni 

Privilégio

Claro por ser uma mulher

Já me atraiu

E era jovem

Com a beleza comum

Nos jovens

Mas também se movia

Com vigorosa calma

Sorria e uma flor se abria

Mais que tudo possuía

Um brilho próprio

Um privilégio das preferidas

 

                                                                  Igor Zanoni

  

Aliança

Meu santo favorito é o padroeiro

Das causas perdidas

Quando tudo falha

E o mundo parece inóspito

Peço sua proteção

Ele pouco me ajuda

Mas no silêncio da madrugada

Converso como se ele

Estivesse ao meu lado

E damos tratos à bola

Sobre o mundo a finitude

A solidão o abandono

A angústia o desespero

Meu santo é existencialista

Um tanto pessimista

Só assim nos aliamos

Apenas como bons amigos

É verdade

Nós não cremos em milagres

 

                                                   Igor Zanoni

 

  

Serva de Deus

Esta senhora provocativamente discreta

Toda de preto

A saia abaixo do joelho

Meias de lã

Sapato baixo

O longo cabelo grisalho

Em um coque no alto da cabeça

Torna-se uma excitada serva de Deus

No espaço do culto dominical

Da sua igreja no bairro

 

                                                          Igor Zanoni 

Quando os velhos se divertem

Quando envelhecem

Muitos ganham o privilégio

Da ociosidade

Tornam-se mais sós

O mundo prescinde mais deles

E lhes dá no limite

O bônus de uma pequena

aposentadoria

Ou de não pagar pelo ônibus

É verdade que eles não têm

Muitos lugares para ir

Têm a missa essa gratuita

Antessala do céu

Há também o privilégio do SUS

E dos remédios gratuitos 

Que não existe em todo os países

Ir ao postinho é uma viagem frequente

Os velhos tomam muitos remédios

E rezam muito o terço

É uma vida sem muita graça

Mas na real

A velhice é coisa de pobre

Os velhos ricos sempre

Se divertem

 

                                                                Igor Zanoni 

De santos e milagres

Os milagres que um santo

Fez em sua vida

Conforme atesta a igreja

Não importam muito para mim

Não mudam meu próprio

Sitz im leben

Santos fazem milagres

Ou milagres fazem o santo?

Um milagre leva à oração

Pedindo por outro milagre

Quando surge na vida

Um impossível

Os devotos têm um panteão

De santos

E há os santos favoritos de cada um

Os que falham menos

Mas há sempre milagres

Que nenhum santo faz

Então nos sentimos abandonados

Na vida

 

                                                                    Igor Zanoni 

Flechas de São Sebastião

Não posso pedir perdão

Pela minha insônia

Ou me arrepender

De minha tristeza

Tudo isto transcende

Minhas possibilidades

O alcance das minhas orações

São Sebastião colecionador

De flechas

Livra-me das dores

De todo mundo

Santa Rita dos Impossíveis

Ao menos por minha fé

Livra-me dos meus padecimentos

 

                                                                   Igor Zanoni

  

Vapor barato

Minha alegria é barata

Um dia quente de sol

Já me deixa feliz

As moças na fila do posto de saúde

As crianças no caminho da escola

Velhos amigos atrás do seu balcão

Mostram que tudo segue

Apesar dos efeitos colaterais

E contraindicações

Da própria vida

O youtube anuncia desastres

Em algum lugar um idiota matou

Um idiota foi morto

O Nobel da Paz foi dado a uma pilantra

Mas não em minha rua

Que os mortos enterrem os mortos

Prefiro minha alegria barata

 

                                                                                  Igor Zanoni 

Armadilha

Depois de uma briga séria

Nunca há uma reconciliação completa

Passa-se a desconfiar do outro

Sempre se encontram para isso

Bons motivos

O amor se torna ressentido

O orgulho substitui a entrega

Passa-se a ser suscetível

Por quase nada há outra briga

Às vezes séria

É possível sir dessa armadilha?

 

                                            Igor Zanoni 

Milagre

Sentado na penumbra e no silêncio

Do fundo da capela

Ouço o padre contar suas estórias

Fala de santos e da Virgem

De milagres e de sacramentos

Sua fala é onírica e cheia de maravilhas

Embala os fiéis que nunca verão em sua vida

Algum milagre ou maravilha

E com piedade tomam a eucaristia

Como se o próprio Cristo

Fizesse agora parte de seus corpos

Singelos mortais sofridos

Para eles este é um milagre suficiente

O maior dos milagres

Que transforma suas vidas no bom combate

 

                                                              Igor Zanoni 

Ruptura

O passado não deve ser um lastro

Condicionando tudo que viveremos adiante

É preciso ver o hoje como ruptura

Mas o desenho desta se faz pelos contornos

Daquele passado

Não desejamos qualquer ruptura

Como não desejamos qualquer futuro

Hoje vivemos em angústia

Lutando como podemos

Contra um mundo poderoso

É o que nos coube no nosso contexto vital

Nossa vida é breve

A história é pesada

Mas não desejamos um hoje condenado

Ao fracasso

Adiante adiante mesmo que nos custe

Viver no limite da nossa força

E da nossa lucidez

 

                                                          Igor Zanoni 

Desesperançados

Se já não cremos no Reino vindouro

Ou na ressurreição de Jesus

Onde colocaremos nossa esperança?

É fácil ser pessimista no mundo

Teremos de rever nossa concepção do Senhor

Viver a vida como decisão pessoal

Aqui e agora

Em favor nosso e do outro

Será doloroso esse realismo

Viver como filósofo e como militante

Voltados para o dia de hoje

 

                                                                Igor Zanoni 

História banal

Uma moça do bairro

Normal banal

Bonitinha como os jovens costumam ser

Para ele se tornou

A última Coca-Cola do deserto

Ia à igreja amava sua família

Ela se tornou logo a beldade de todos

Até aí nada de extraordinário

Mas como o tempo passa

Deixando marcas no rosto e no corpo

Seu período áureo passou

E agora vive uma vida

Digamos sem sobressaltos

Nem muito interesse

O amor não passou é verdade

Mas há amores sinistros

Com rumos inconvenientes

Eles foram felizes?

O que viveram foi suficiente?

Acho que não

Acho antes que eles foram

De uma enorme preguiça

 

                                                                       Igor Zanoni

  

Capela

Na capela há sempre na cruz

Nosso Senhor Jesus Cristinho

Com suas santas chagas sangrentas

Os fiéis chegam sentam-se

Assistem à missa

Olham demoradamente a imagem

Será que esperam que algum dia

Ele ressuscite para os seus?

Acho que eles aguardam sim

Mas no fundo não esperam

 

                                                       Igor Zanoni 

O consolo da beleza

Nossa vida não tende

A um equilíbrio benigno

A um centro tranquilo

Após nossas tormentas

A alma não é um pêndulo

Que se move voltando sempre

Ao seu lugar natural

Há quem passe a vida toda

Com perguntas que não pode

Responder talvez nem formular

E sofre ah como sofre

Benditos são os que amam a arte

Porque ela supera a razão

E traz a cada infeliz

O imenso consolo da beleza

 

                                                         Igor Zanoni 

Paixão

A paixão faz adoecer

Um engano amoroso assim

Pode viver para sempre

Perder-nos em sonhos

Evocações insensatez

Naqueles dias eu me agarrava

A árvores

E alucinava nas ruas

Nada me curava a melancolia

Disse em desespero ao doutor

Doutor me salve

Eu tenho fé

Perdoe essa minha falta de fé

E agora tanto tempo depois

Me sinto quase salvo

 

                                                         Igor Zanoni 

Passeio pelo bairro

Se você estiver em casa

Sozinho & entediado

Não ligue a televisão

Esqueça o celular

Saia pelo bairro tome sol

Veja os vizinhos

Converse com qualquer um

Mesmo que lhe seja um desconhecido

Dê bom dia aos cachorros

Vá ao posto de saúde

Tome uma vacina que você esqueceu

O barbeiro também gosta de conversar

Não esqueça o Pilates

Dê um pulo à capela

Com seu ambiente escuro e de contrição

Compre no hortifruti comida para o almoço

Há tanta coisa a fazer no bairro!

Sobretudo seja gentil com todos

Todos precisam de gentileza

E de uma pessoa que conhece as coisas

 

                                                                Igor Zanoni 

Sentimentos

Ficam todos em um baú

Só nós podemos ver o que tem dentro

Mas eles todo o tempo remetem

Ao nosso dia

Ao modo como nos movemos

Quando achamos que nos esquecemos

De algum deles

Ele surge no sonho

Como pesadelo ou uma noite bem dormida

 

                                                                   Igor Zanoni