sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Aposta


a pele morna
os olhos que dizem
o que na boca hesita
talvez o momento
não é possível adivinhar
os indícios turvos
mesmo que da promessa
um pouco se duvide
algo não mais se contém
é nossa vez de tirar a carta
que aposta ao desejo
se pode propor?


                                                        Igor Zanoni

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Autorretrato


eu sou como todos vocês
me sinto sozinho
não sei quem sou
procuro o sentido de tudo
piso sempre na bola
dou mil bolas fora
sou inoportuno
sou distraído quando não devia
percebo tudo atrasado
comigo as pílulas não funcionam
o dinheiro é sempre curto
não sou esperto como tantos parecem
tenho amigos improváveis
perdoo com dificuldade
não desfaço assim meus laços
tenho ciúme dos amigos
poucos gostam do que eu faço
terminei de ler partes do Talmude
vou tentar o Alcorão
um dia não chegarei lá

                                                                   Igor Zanoni

Benção


bendita a cerveja que por algum tempo
nos livra da tolice do cotidiano
recria entre nós solidariedade
laços amorosos o riso
a seriedade dos nossos sentimentos indizíveis
sem ela haveria menos música no mundo
menos beijos e promessas
menos aspirantes a poetas
bendita a linguiça que a acompanha
o tira-gosto a pururuca
benditos os amigos que se reúnem
no tempo que lhes sobra
para descobrir no amigo o amigo
no amor o amor
o antigo pertencimento a um bando
que junto buscava a vida
com maior segurança
e mais fortalecido

                                                     Igor Zanoni

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Insegurança




não se pode dizer que o homem comum esteja melhor ou pior porque agora ele pode comprar uma pequena casa sem muita privacidade e que lhe custará o triplo ao ser financiada. ou porque agora ele pode comprar um carro modesto a longo prazo e a juros igualmente altos,
e só ter para ir uma praia sem conforto, poder beber cerveja e ir e vir numa estrada congestionada. tampouco se pode dizer que ele está melhor porque seus filhos estudam, em geral com um frasco de ritalina ministrada pela impaciente professora. as empresas quase todas oferecem um plano de saúde aos empregados, porque estes não podem faltar ao trabalho e o SUS não é nada confiável neste e em outros aspectos. o homem comum toma um ônibus lotado após esperar em filas intermináveis, sabendo que chegará em casa quase apenas para dormir. a televisão trata este homem com notícias viesadas e programas que o infantilizam. parece que ele não pode entender nada além disso, mas talvez ele esteja sendo submetido a um controle do que sabe ou do que não sabe, incitado a duvidar do que percebe e controlado na sua criatividade. alguém deve ter medo do homem comum, porque ele parece não representar nada mas por toda parte se preocupam com ele, e as avenidas e lojas ficam cada vez mais com câmeras e policiais, dizem que para protege-lo dos delinquentes. mas ele pode ser considerado delinquente a qualquer momento, o que impede isso? por que ele deve passar a vida em trabalho mal pago cuja contribuição previdenciária é desviada da Previdência, com certeza para se poder afirmar que há um déficit da Previdência, e portanto que é preciso cortar gastos, tendo em vista a inflação e o capital externo etc. etc. dizem ao homem comum que ele está ótimo, nunca esteve tão bem. mas ele tem uma moral que não é tão maleável assim, mesmo que muitas igrejas também se somem nestas múltiplas tentativas de torna-lo um cidadão feliz. ele pensa, mesmo que se vigie seus pensamentos e não possa expressar muitos deles, até porque não sabe muito bem como fazê-lo ou se envergonha diante dos que dão lições a torto e a direito. dizem-lhe que se faz tudo por ele, tudo pelo social, e ele ouve por toda parte: “realize os seus sonhos por apenas 7% ao mês”. por que o homem comum se sentiria tão bem assim?


                                       Igor Zanoni

Manifestantes


quando há manifestações populares, muito reclamam da sua falta de ideologia, de sua inconsistência política e do “vandalismo” de parcelas desses manifestantes. mas se olharmos o jornal vemos que há manifestações violentas, muito mais violentas que as que ocorrem no Brasil. em nosso país a violência delas aliás tem ocorrido muito mais por sua repressão, num país que não tolera dissensos. o sistema político não oferece confiança, as elites nunca primaram por padrões éticos e qualquer ideologia senão a busca de seus interesses. a convivência com os mais atrasados restos de nosso passado colonial, que promoveram ou avalizaram ativamente o desmonte da nação desde o final dos anos oitenta, é condição de manutenção e conquista do poder, mas que poder? qual o padrão ético e a ideologia desse poder? entre os manifestantes há uma heterogeneidade de visões sobre a política, de católicos, sindicalistas, estudantes que não escolheram ainda seu modo de vida mas sentem bem o que não convém e anarquistas que quebram carros de polícia e agências bancárias, entre outros. parece que em lugar nenhum do mundo as coisas estão quietas e população disposta a manter o difícil tempo de hoje, além de ter forte desconfiança do futuro. é preciso lembrar que quando camadas do povo se expressam, podem fazê-lo com escassa ideologia e com todos os seus preconceitos, mas também sabendo de sua própria vida e de sua dor. antes de condenar qualquer desses grupos, o exame do que ocorre deve ser menos apressado, inclusive por que em todo mundo parece que democracias se tornam mais cedo ou tarde ditaduras.    


                                                                   Igor Zanoni