quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Inferno


1
papai era cirurgião-dentista, maestro formado pela Escola Nacional de Música, clarinetista com passagem como spalla pela Orquestra Sinfônica Brasileira na sua mocidade, oficial do Exército e teólogo autodidata nas horas livres. eu gostava muito naquela época do Concerto nº1 de Paganini, um dos poucos discos em casa, e admirava muito a virtuosidade com que fora escrito. papai comentou talvez casualmente e decerto acreditando no que dizia, que Paganini havia vendido sua alma ao Diabo em troca de sua arte. mais tarde ele repetiu um comentário semelhante quando eu examinava um álbum de Cândido Portinari. disse que quando o pintor  morreu, seu quarto cheirava a enxofre. eu era então aluno na escola dominical da Igreja Batista que havia no Castelo, onde recebera minha primeira Bíblia. logo, um alvo fácil de comentários como aqueles, ainda mais por minha confiança em meu pai, e até hoje tenho dificuldade de ouvir Paganini ou me encantar com Portinari, mesmo deixando há muito qualquer frequência a igrejas e percebendo as fragilidades da sabedoria de papai.
2
meu pai saía bem cedo para o quartel, com um ônibus que passava recolhendo os oficiais. minha mãe e eu costumávamos ficar na janela da sala e nos despedíamos com acenos. uma dessas vezes mamãe se despediu com um “Vá com Deus!”, e eu secundei com um “Vá com o Diabo!”. minha mãe me repreendeu mas não com aspereza. eu não desejava mandar mesmo meu pai para o inferno, mas queria saber como era a sensação de fazer isso com alguém. mas não me senti melhor nem pior, e perdi qualquer crença no Diabo e no inferno. desde então cultivei aos poucos e com seriedade minha fé, muito particular e individual.

                                                            Igor Zanoni

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