sábado, 31 de março de 2012

Madrugada


muitas vezes de madrugada
não estou acordado nem adormecido
na neblina do pensamento que não consegue
se por bem em pé
imagino onde estou
sei que estou em casa mas não me lembro
onde é a porta do quarto
ou como se sai para a rua
confundo a casa em que moro
com outras de outros tempos
só posso perceber onde não estou agora
mas não onde estou
talvez seja esta minha matriz emocional
um desenraizamento que dura uma vida
um ser para o que não passa
mas não para o que me faz possível
firme completo sereno

                                                                   Igor Zanoni


sexta-feira, 30 de março de 2012

O meu amor


o meu amor vive preocupado
com todas essas coisas
que acontecem o tempo todo
ele é tão doce tão terno
mas eu vivo só do meu lado
em minha vida sé percebo
o que é diverso
e sigo em uma densa concentração
do que nem sei bem dizer
como meu amor terá em mim
um porto um refúgio
quando encontrará em mim
a mesma doçura?

                                              Igor Zanoni

Casa


1
os muito velhinhos
quando perdem o siso
desejam demais voltar para casa
mas não a casa onde agora moram
mas aquela casa de meninos
aos antigos laços aos velhos gestos
por isso já não encontram
seu lugar no mundo que passa

2
 há momentos terríveis
quando não se sabe mais onde se está
mas sim onde não estamos
são momentos de pausa
da memória e do conhecimento
quando impacientes miramos o cogito
e dele não temos resposta

                                              Igor Zanoni 

quarta-feira, 28 de março de 2012

Cansaço


mesmo da vida se cansa
meu avô velhinho dizia:
quero muito morrer
depois que sua mãe e sua avó
moreram
não é melancolia
a partir de certa idade
estabelecemos outro nível de vínculo
com o mundo
eu mesmo sei que o melhor do mundo
são meus filhos menores
e minha neta
o resto quase não importa
não vou proclamar a república
nem declarar a democracia que esperamos
de bom também tem a literatura russa
hoje achei um livro de Puchkin
quero daqui a pouco tomar banho
comer um mingau de aveia
e ler tranqüilo
até vir o sono

                                                     Igor Zanoni

terça-feira, 27 de março de 2012

Aquarela


1
quando alguém vê
uma pequena aquarela
passa a perceber outras visões
da sua vida
seus olhos começam a brincar
e cria sobre o mundo
uma fantasia recorrente
quando você vai ao Largo da Ordem
na feirinha de domingo
pode ver quadros de amadores
semelhantes a essa hipotética aquarela
mas cuidado! mesmo os amadores
não podem ser muito ruins

2
uma pessoa singela pode não ter
idéias definidas sobre os grandes
assuntos da vida
exceto que na vida
não há grandes assuntos
apenas nossa vida comum
sempre tão difícil para todos

                                                 Igor Zanoni

sábado, 24 de março de 2012

Corpo fechado


o que alguém sente
não importa
ele não diz e ninguém pergunta
ouvir é difícil
cada palavra tem seu eco próprio
em cada alma
falar é por isso perigoso
finge que faz isso e aquilo
finge  que ouve e que conversa
até os surdos e os mudos
conversam com seus sinais
mesmo meu avô
que era cego
lia seu jornal todo dia
mas há sempre os que carregam
uma enorme dificuldade
abrir-se é abrir o corpo
e o corpo fechado
não pode ser ferido por ninguém  

                                                            Igor Zanoni

Casa dos outros


A casa da vizinha de frente, a dona Cecília, era sempre fechada, em parte porque o seu filho doidinho quando achava uma brecha saia correndo pela rua. Para onde? Nem ele sabia. Devia ser uma angústia viver fechado. Dentro de casa a mãe tinha sempre os olhos nele, um homem já, meio gorducho, com uma barba rala. Eu ia até lá para telefonar, porque nessa época não tínhamos telefone. A garagem vazia era iluminada por um nicho de Nossa Senhora, com uma vela votiva sempre ardendo. Qual seria a promessa? Que Eduardo não fugisse? Ele mal pronunciava uma sílaba, mas nos olhos se percebia um ardor de vida que poucos mais ajuizados têm. Nunca vi seu pai. De tanto ficar fechada a casa acumulou um cheiro ancestral de frituras, cera de assoalho, velas queimadas. Acho que nunca ali dentro bateu um ventinho, um raio de sol. Sentia-me mal ali dentro, quando a meninice me fazia fugir daquela solidão e daquele mofo. Mas ficava minha indagação, minha curiosidade, sobre aquelas vidas encerradas, na cidade cheia de sol. Por isso quem ia telefonar para minha mãe era sempre eu, voluntário de primeira hora. Talvez eu já fosse fascinado pelos paradoxos e inquietudes que acompanhei e vivi minha vida inteira. Sem eles não valeria a pena viver, sem percebê-los não compreenderia ninguém.


                                                          Igor Zanoni
                                               

sexta-feira, 23 de março de 2012

Reviver


 
não gostaria de viver de novo
a minha vida
 não apenas episódios dela
a morte de minha esposa de meu irmão
de meus pais
mas como pude entender e atravessar
tanto luto
toda angústia que me foi dada
como um baú de males
que tinha de decifrar
mesmo sem nada ocorrendo
na superfície que o olhar do outro
pode atingir e suportar
minha vida foi densa
difícil cansativa
por isso entendo a busca budista
de uma iluminação que nos livre
da vida
e nos coloque na clara luz
inefável felicidade
o coração sereno
nenhum pertencimento
generosidade paciência perfeitas

                                                             Igor Zanoni

quinta-feira, 22 de março de 2012

Poeta


eu não sou um advogado
sou um poeta
não dou conselhos sobre nada
não sou um doutor
não sou um professor
as coisas que digo escapam de mim
quando já não consigo sentir-me
tão só e aturdido
não sei pensar muito bem
pensar é difícil
não sou um filósofo
sou um poeta

                                                                      Igor Zanoni

terça-feira, 20 de março de 2012

Contas


ao deitar falamos
quando as coisas estiverem melhores
ou quando essas dívidas acabarem
faremos isto e aquilo
mas logo vem a tentação de comprar
umas cortinas novas para ajeitar a sala
ou os filhos já precisam de novos agasalhos
e logo não sabemos como pagar todas as contas
se o telefone atrasa eles cortam a linha
ficar sem água e luz impossível
melhor não pensar em quando melhorar
Jesus que era o melhor dos homens
era um mendigo
não digo que somos pobres
vira a boca
mas sempre espremidinhos
vamos ver como isso vai dar tudo certo
só cai esse tédio do ido e do vivido
e do que será

                                                                        Igor Zanoni

                                                        

sábado, 17 de março de 2012

Olhar


não há cortina indevassável
diante do olhar aflito
ele pede para ser visto
o que a boca não pode dizer
ele grita
ai de quem quer calá-lo
são tristes as mulheres
que transidas de dor
afogam-se em silêncio
no banheiro
tristes os que no seu coração
velam suas dores
e partem para uma direção
que ninguém pode seguir
ai dos olhos que vejo
sem poder dizer
por eles como são doídos

                                                           Igor Zanoni

quinta-feira, 15 de março de 2012

Escolha


naquela época quando adoecia
guardava o leito por vários dias
dizia-se assim às visitas:
ele não pode descer, está acamado
ou: ele pede desculpas,
mas está com uma terrível dor de cabeça
tomava chá com torradas
e quando ficava mais forte uma canja
ou traziam um arroz aguado e muito cozido
mamãe sempre era meu anjo
ao lado do leito
eu sentia ausências e tonturas
dormia muito
era impressionável difícil
com o parecer do médico na mão
meu pai achava que eu jamais seria
o que sonhava para mim
era áspero me interpelava
como se adoecer fosse uma escolha

                                                       Igor Zanoni

Tiago


Tiago me mostrou há tempos um cd do Dream Teather, que eu não conhecia ainda. Achei o som sofisticado, mas não gostei, não entendi. Depois vi como ele ouvia o cd por muitas semanas, sempre o mesmo cd, avaliando, degustando, entendendo. Tiago gosta de música, é uma pessoa muito inteligente e como muitos de nós um pouco obsessivo. Voltei a ouvir o cd mas achei o som muito progressivo, muito rebuscado, continuei não gostando. Um dia vi um álbum que o Tiago não tinha e dei de presente, mas ele não ficou muito satisfeito. Disse que os álbuns são muito diferentes, que não gostava de todos, e que para eu não perder dinheiro devia deixar que ele mesmo comprasse seus cds.  Mais tarde comecei a ouvir mais o Dream Teather, com cuidado, e amei. Mas estou longe de saber o que o Tiago ouve na banda, temos apreciações musicais muito diversas, a minha muito pouco cultivada. Pensei estar dividindo um gosto com ele, mas ele estava ouvindo já com o mesmo rigor o Liquid Tension of Experiment.


                                                                             Igor Zanoni

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cinzas


gosto de quarta-feira de cinzas
porque pelo menos como ritual
as pessoas se humilham e se confessam
todavia quem tem uma noção mais clara
dos seus pecados?
os pecados se resumem a não matar
não roubar não ser gay
quando alguém sondará suas profundezas?
quantas virtudes fazem um pecado
quando um virtuoso agradou a Deus
ou amou os que estão em volta?
confesse reze terços
faça aspersões de água benta
quanto mais tosco o diabo
desses que vivem na periferia do inferno
mais estará destinado
aos santos sem sensatez


                                                             Igor Zanoni

Condição


quando era jovem não havia o fardo
da preocupação com o dia de amanhã
os dias apenas passavam
bastando a cada um o seu cuidado
nunca me preocupei com a pobreza
ou com a difícil procura do trabalho
essas coisas não aconteceriam
havia tempo para cada coisa
e podia pensar não no futuro
ou na política
não era tão rico nem tinha ideologias
mas com ócio e rigor
cuidei do que veio
estudei amei tive filhos fiz análise
não era isso que as pessoas faziam
na minha condição?

                                                                    Igor Zanoni

sábado, 10 de março de 2012

Pétala


amo mais a página que a pétala
não tenho a paz dos jardins
e dos caminhos no campo
a nós foram roubados
o mundo e a cidade
restou-nos a alavanca da cabeça
e o segredo do quarto
sem ordem sem compromissos claros
mas vital escolho o que me diz
um dia estivemos aqui
relembre os poetas que cantaram
seu tempo
e depois morreram
basta isto a um homem e a uma rosa

                                                             Igor Zanoni

Cariocas


em Curitiba faltam catarinenses
essa gente loura de cidades minúsculas
Joaçaba Luzerna São Miguel d’Oeste
que sabem surfar e fazer cerveja forte
chalés suíços onde se come um ótimo salsichão
gaúchos há bastante
expulsos para cá e para lá neste Brasil
já sem fronteiras para onde correr
cariocas um ou outro
é que eles não se adaptam
um amigo carioca foi preso na festa de São Francisco
porque conversava com umas crianças de rua
passaram esses brucutus que brutalizam
essa cidade de cenários falsos
deram chave de braço tiraram os documentos
disseram: ah! é um carioca safado

                                                                            Igor Zanoni

sexta-feira, 9 de março de 2012

Quântico

 
1
tudo que você queria saber
sobre manter o autocontrole
e alcançar o equilíbrio dinâmico
você pode aprender no nosso curso
sobre homeostase quântica
onde você esclarecerá dúvidas
sobre os seres extraterrestres
 e de outras dimensões
a relação entre Deus e o universo
a física das partículas no nosso dia a dia
a teoria das cordas e a arte da harmonia
em nosso ser e em nosso ambiente
e muitos outros assuntos discutidos
por especialistas em Física Holística
e Alquimia Pós-moderna
como a simplicidade da teoria da complexidade
não basta crer irmão
é preciso ser cientista
   
2
há evidências em que não quero crer
mistérios que não quero explicar
e problemas que não me interessa resolver

3

para mim o melhor é considerar a vida
como um jogo de azar
um pôquer fechado por exemplo


                                                                 Igor Zanoni

Condomínio


o autoproclamado comitê do lixo
grita como russos de Gorki
sobre a adequação das sacolas plásticas
que algum morador está usando
descumprindo as normas referente
ao uso de sacos de 100 litros
colocados na rua próximo à hora
do lixeiro passar e não antes
para que os catadores não revirem
seu interior à procura de restos aproveitáveis
de modo lúcido e claro
as suspeitas recaem sobre os moradores
da casa 2 e da casa 5
os quis por serem mais arredios
às regras de confraternização gerais
tais como comprar automóveis novos
a cada ano e fazer churrasco
nos fins de semana comprometendo
toda área livre com automóveis e brindes
dos convidados
sempre acabam sendo os suspeitos  
eu não vou entrar na jurisprudência do assunto
que me foge a lucidez para isso
por isso passo cumprimento humilde
e com alívio ganho a rua


                                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 8 de março de 2012

Casa


se você se sente oprimido
no às vezes cruel ambiente do lar
saia a cidade é enorme
há mil cafés convidativos
pessoas interessantes com algo a dizer
paisagens que te farão pensar
não se iluda sozinho na sala
sua vida não será resolvida
nem conversando protegido
em uma igreja ou psicólogo
o negócio é bater pernas
deixar que os mortos enterrem os mortos
saia desse lugar onde desandou sua vida
convide para caminhar com você
esse mundo que não se acaba
de compreender
a vida é difícil mas viver é importante
disse Renato Russo

                                                                       Igor Zanoni

terça-feira, 6 de março de 2012

Espírito

 
deixado a si o espírito se acaba
como a chama de uma vela
no deserto do quarto
ele precisa descer a rua
ou subir o morro
ler o jornal tomar o café
precisa encarnar-se
nos gestos cotidianos
sentir-se desafiado por eles
há pessoas que não se sentem
incomodadas com o mundo?
elas podem sumir
seus nomes sejam apagados
nem lápide tenham
elas sopram o espírito que bate
para que não incendeie
suas vidas pacatas
elas têm medo de si
quem começa por aí
já se sabe como acaba


                                                                  Igor Zanoni

Sobrenatural


1
os arqueólogos encontraram um túmulo
que segundo a tradição é o de Jesus
ao lado de sua mãe, Maria Madalena
e de um rapazinho que seria filho
desta com o Mestre
nada mais natural
mas não é no sobrenatural
que as pessoas creem ?

2
outros arqueólogos acharam um verme
com características que os vertebrados
depois desenvolveram
esta seria a origem do homem
nada mais natural
mas não é no sobrenatural
que as pessoas creem?

3
olhando para a frente um cientista
disse que a humanidade precisará dos recursos
de outros planetas
talvez para aumentar o agrobusiness
talvez para colocar todos
em equilíbrio financeiro

                                                                       Igor Zanoni

Feira das Profissões


1

como se diz em um curso de inglês,
há alguns erros mas continue praticando
nos vemos de novo

2

as profissões não dominam
completamente um sujeito
eu mesmo já vi dentistas interessantes
advogados pessimistas
professores lacônicos
padres que cantavam de fato
e pedreiros que trabalhavam
arrumados e de sapatos engraxados


                                                                     Igor Zanoni 

segunda-feira, 5 de março de 2012

Fundamentalismo


Certo grau de fundamentalismo deve existir em toda crença, não só religiosa, porque ele pode apoiar a razão e mantê-la funcionando. No catolicismo ele existe mesmo nas suas formas mais racionais e intelectuais, sob o adágio “creio porque é absurdo”. Mas ele não pode  desandar num supersticioso rancor contra outras formas de ver e entender o mundo e o lugar do homem nele. De vez em quando leio teólogos. Nestes últimos dias andei relendo o grande Pietro Ubaldi, espantando-me outra vez com sua disposição em ver como se pode entender a fé usando concepções da física moderna e da biologia. Esse cientificismo não o fez perder a mais tradicional fé na Eucaristia. Ele conciliou tudo  isso com o mais puro franciscano que foi,  naquela tradição que na minha modesta preferência é a corrente que mais admiro no catolicismo. Mesmo o mais humilde, em termos escolares, dos fiéis envolve sua fé em fórmulas e ritos ao mesmo tempo existenciais e, para os outros, pouco inteligíveis. Conheci uma moça que se chamava Macedônia, porque seu pai, procurando um nome sacro para a mais nova filha, abriu o livro de Atos e leu quando Paulo não sabia o rumo a tomar e em sonhos um anjo indicou: “Passa à Macedônia”. Ela se ria do seu nome, mas respeitava a fé dos seus pais. No início dos antibióticos, a nova maravilha fez muita gente salva nos primeiros dias por eles ganhar nome de remédio, às vezes complicados. Meu pai mesmo deu ao seu segundo filho o nome de Alexander, em homenagem a Fleming. São orientações da vida, que servem para guarda-la, tomara que não a ponham a perder.

                                                     Igor Zanoni  



Meio amargo

 
amores amargos
nos deixam com um único tema
quando todos se esqueceram do assunto
ele retorna na conversa
não há dermatite pior
coça coça coça
depois um belo dia passa
e perguntamos:
para que tudo isso?
Senhora Nossa!

                                                      Igor Zanoni

domingo, 4 de março de 2012

“Isto é só o fim...”



Nossa economia mundializada já perdeu há décadas sua funcional “destruição criadora” de que falava Schumpeter, a capacidade de se renovar dinâmicamente em suas estruturas produtivas, técnicas e de mercado, oferecendo ao público a glamorosa figura do empresário inovador. Ela se aliou à destruição do planeta, a guerras e regimes intolerantes se resolvendo numa crescente militarização da sociedade, à corrupção e ao desrespeito por valores culturais que mantiveram estáveis por séculos sociedades ao redor do globo. Ele finalmente se reduziu a mostrar a face crua do dinheiro como o valor mais precioso. Só se expande através de ciclos de endividamento que se resolve em depressões e regressões políticas e sociais contra as quais a mobilização social nada pode fazer. Tem a seu lado interesses de estados colados a grandes e poucos bancos e indústrias que dominam as decisões. Agora mais que nunca contrato é contrato, não se perdoam dívidas, os bancos aos quais se deve são pagos pela finança pública, antes funcional ao desenvolvimento econômico e social. Essa é a ideologia, acabou a social democracia, acabou o progressismo e o reformismo, para quase todos o fim está próximo. “Isto é só o fim, é só o fim...”


                                                                 Igor Zanoni

sábado, 3 de março de 2012

Time

 
eu sempre torci por time pequeno
é difícil é para poucos
a maior conquista é não ser rebaixado
títulos são raros inexpressivos
jogadores melhores saem ainda no juvenil
vive-se como historiador
de façanhas d’outrora
quando o capital ainda não havia assumido
essa forma avassaladora no esporte
torcer por time pequeno
é uma opção política
é uma ação afirmativa
nossos craques ninguém conhecem
morreram de cirrose
os jornais amarelos falam de placares
que ninguém esperava
quando nem Pelé assegurava
uma esmagadora vitória
porque do lado de cá havia
Roberto Pinto Dicá Nenê Afonsinho
viva os heróis brasileiros
mas agora somos figurantes
no bloco do grupo D

                                                     Igor Zanoni

Sonho

Sonho

1
acordo e percebo
a foto de minha mãe no quarto
e já não sei se a sonhei
ou se a estou sonhando agora
entre o sonho e a vigília
há um gradiente de estado mental
não uma distinção de natureza

2
não percebemos em nosso corpo
senão o que dói
em mim sofre sempre a alma
encerrada nas singularidades
do que é e não sei porquê


                                                          Igor Zanoni

sexta-feira, 2 de março de 2012

Vizinho


Eu tenho um vizinho exemplar. Era bancário do Bamerindus, formado em contabilidade, pegou um PDV com a compra do banco pelo HSBC, quitou a casa e pegou umas aulas como bico na FAE, uma escola privada de economia e negócios. Na FAE ele aceitou fazer um mestrado de final de semana em outra faculdade privada em Santa Catarina, que emendou com o doutorado. Depois houve diversos problemas internos no trabalho e ele pegou umas aulas na PUCC, no departamento de Economia. Trabalhou muito, um exemplo para os colegas, numa escola que paga pouco e exige muito. Ele e sua mulher não podiam ter filhos, mas com esforço e paciência fez um longo tratamento e ganharam uma filha significativamente chamada Victória, hoje com 14 anos. Depois veio o Breno, com seis anos atualmente. Aumentou seu trabalho e sua renda dando consultoria na Associação Comercial e sempre militou no Conselho Regional de Economia, ganhando visibilidade. Acabou convidado para ser o novo chefe de departamento de economia na PUCC. Trocou o carro velho por um Vectra novinho, depois comprou um Renault enorme. Nos finais de semana vão aos cultos na igreja batista do bairro. E os feriados e férias propriamente ditas passam em um apartamento comprado na praia, em Caiobá.  Tudo isso faria dele um herói para mim, pois fez muitas coisas que eu não faria por faltar-me gosto e estômago. Mas o que me impressiona no miúdo do cotidiano é vê-lo estacionar os dois carros na garagem pequena do sobrado no nosso condomínio. Além de tudo, ele dirige bem, não bate o carro, não bebe, é controlado e está casado já há uns vinte e cinco anos com a mesma mulher, que cuida de tudo para que o guerreiro lute e descanse depois. Que paciência a dos dois!


                                                                    Igor Zanoni