quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Simples de coração


1
a conquista da paz interior
a busca de Deus
o desejo de fazer o bem aos outros
o amor ao próximo
o cultivo da virtude
a sagacidade da sabedoria
a integridade pessoal
a coerência de propósitos
são todos desejos confusos
derrotas na história dos homens
que nem sabem lamentá-las

2
nada mais difícil de amar
que os simples de coração

                                                                Igor Zanoni

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Descrença


quisera crer nas auras e nas vibrações
no poder dos fluidos no magnetismo
na cura pela água nos mantras e nos tantras
no alinhamento dos chacras
e na influência benigna dos planetas
no pensamento positivo na neolinguística
no equilíbrio como tendência inerente á natureza
nas plantas medicinais na cura pela prece
quisera crer na santidade dos santos
e na benevolência de todas as Marias
quisera crer nas inteligências extraterrestres
na progressiva revelação de Deus
quisera crer na crença como método
no ômega-3 no óleo de peixe
quisera comer abobrinha como quem reza

                                                          Igor Zanoni

domingo, 10 de novembro de 2013

Dona Judith e dona Anair


1
Aos quinze anos ganhei de minha professora na escola sabatina, dona Judith Emma Schuck, um exemplar de “Entre a água e a selva”, de Albert Schweitzer, contando sua experiência como médico no Congo Francês. Muito mais tarde pude indagar o significado desse gesto. Como adventista, Dona Judith dificilmente poderia avaliar a singular e importante teologia que o autor desenvolveu, ou seus escritos sobre a civilização moderna e a ética. Talvez, como alemã, tivesse orgulho daquele que foi um dia considerado “o maior homem do mundo”. Talvez tivesse orgulho semelhante ao que tinha por Bach, cujas árias entoava em cultivado soprano na pequena igreja da rua Joaquim Novaes em Campinas, para pessoas que não podiam agradecer seu dom. Talvez se julgasse uma desbravadora da cultura em nossa latitude, o que não poderia evitar dado o esmerado apreço pela cultura da Europa central. Muito mais tarde, em outro contexto na vida, pude perceber como fui feliz em conhecer dona Judith.

2
Dona Anair, como todos nós, pode ser vista sob vários prismas, mas me alegro sobretudo com a resignação, que é um talento estóico e epicurista, como assinala Albert Schweitzer em Cultura e Ética, com que cuidou sempre da casa, do marido, dos filhos e dos netos tendo como apoio algumas qualidades nem sempre fáceis de encontrar, como uma fé cega, um grande interesse pelo que pode lhe cair ás mãos, como um prêmio pela entrega do dízimo na paróquia, e sobretudo seu humor malicioso. Esse humor lhe permitiu dar dois reais ao seu José, pedindo que jogasse nas cobras e lagartos.

                                                                           Igor Zanoni

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Metafísica


a angústia a solidão o abandono
alguns dos temas considerados por Heidegger
entre os fundamentais da metafísica
não pertencem à natureza humana
nem a nenhuma desordem pessoal
diante das quais psiquiatras solícitos aviam receitas
iludidos de que podem resolvê-la
antes são requisitos para que nossas sociedades
divididas  fascistas destrutivas
criem indivíduos com os quais possam contar
ou punam aqueles com os quais não podem
esses sentimentos são inerentes
à lógica do poder e do dinheiro
à aceleração do tempo que exige 
de um jovem de vinte anos estar atento
 para um adequado e promissor futuro
que não perca um ano da vida
que não se perca entre os fracassados
que aprenda a sabedoria exigida
e tenha sem pausa para pensar
o pensamento voltado para quanto precisa ganhar
o que deve ter e onde deve morar
o que deve desprezar e o que deve admirar
este é um projeto pessoal que se constrói
para raramente dar certo
há também as histórias que nem podem começar
a fábula já falou de todas elas
da ralé dos marginais do zé povinho da malta
proletários internacionalizados
da história nada edificante do século
todos farinha do mesmo saco
angustiados solitários abandonados
que não precisam ler sobre Sócrates
para examinar sua vida
eles sabem o que vivem
a seu modo caótico e subterrâneo

                                                    Igor Zanoni

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Parábolas


muitos sentem suas dificuldades
e mal sabem falar sobre elas
aliás falam e não compreendemos 
falam por parábolas e línguas de anjos
mas há muito os anjos deixaram este mundo
e nosso entendimento a cada dia
é mais turvo e confuso
talvez nos reste paciência para fazer-lhes
companhia sem julgamentos
 talvez aos poucos com isso venha
o sentimento de nossas próprias dificuldades
de como nos compreendemos 
do mesmo modo turvo e confuso 
de como todos nos tornamos 
para nós e para os outros
tristemente misteriosos 

                                                                  Igor Zanoni

domingo, 3 de novembro de 2013

Do nada para o nada


tomemos não por acaso
esse objeto arquetípico o automóvel
ele se liga ao aquecimento da Terra
ao poder global à violência envolvendo
as fontes de petróleo espionagens sofisticadas
à concorrência entre firmas e nações
liga-se também a inúmeros aspectos da vida das cidades
ao cotidiano dos pobres sua perda de tempo no trânsito   
aos latifúndios de combustíveis alternativos
à criação do desejo de possuir um automóvel
ter para isso renda poder fazer um financiamento
transformar seu itinerário sua concepção de lazer
de poder e de autoestima
aos prédios que buscam as nuvens
metade dos andares compostos por garagens
do tamanho dos apartamentos 
  a partir do automóvel criam-se zonas deterioradas
nas quais o Estado não gasta pois seus moradores
são só um problema e para esse tipo de problema
e muitos outros envolvendo o interesse público
existem outros procedimentos
tudo isso se envolve em nuvens
em imagens falsificadas do mundo
em imposições sobre o que ser e o que não ser
esta é uma questão já resolvida não por nós nem por Hamlet
o automóvel se transforma a cada momento é outro
como ele se move tudo se move e se repõe
refazendo todos os gestos mínimos toda intenção
nossa possibilidade de refletir e sentir
a vida nessa forma tornou-se há muito
uma contradição em processo
abrangente totalitária 
alegremente nos inserimos nos seus campos de concentração
o problema não é o automóvel como objeto
nem nenhum outro objeto
mas o poder que eles mobilizam
através do qual se extingue é claro nosso velho planeta
e com ele nossas perspectivas como espécie
já dilacerada violentada na qual poucos contam
o problema mora sobretudo no refazimento
dos seres humanos sua dispersão 
seu rosto vulgar e insensível
sua distância de si sua brutalidade
exceto quando se deprimem e se tocam atônitos
sem compreender o que ocorre
e obsessivos perguntam o que fazer
quais teriam sido ou são as opções
se é que chegam a perguntar sobre isso
ou antes se jogam do alto
do nada para o nada

                                                   Igor Zanoni

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Esotérico


1
abrem-se as cortinas do espetáculo divino
os anjos rufam as asas
para os améns as aleluias os dons
para o pastor eloquente que conduz
seu rebanho esperançoso de tantas graças
que a vida não pôde conceder
a casa própria a cura do filho um emprego
agora chegou o tempo do porvir
o homem que há vinte anos não falava
já começa a balbuciar como mais um renascido
e a velhinha que há cinquenta estava em uma cadeira
eis que se levanta pois afinal encontrou
o seu caminho

2
os que afirmam a existência dos discos voadores
veem-nos quase sempre ao pôr-do-sol
na brisa alaranjada da praia
comendo um sanduiche natural
ou no quintal de um sítio após o trabalho diário
passam em uma larga espiral como dizendo
nós estamos aqui
porém sempre me esqueceram
ou não sou um dos escolhidos para sua aparição
talvez porque deseje um disco voador redondo
com luzes à sua volta
o metal brilhante como carro zero
abrindo uma porta larga
 e estendendo uma rampa perguntando:
também tu queres ser um abduzido?

                                                        Igor Zanoni