terça-feira, 21 de agosto de 2018

O não tempo


ao envelhecer, ganhei a percepção incômoda de que não tenho tempo a perder. assumi muitos compromissos, mas mais do que isso, aumentei o período dedicado a cada compromisso. se vou assistir um debate, cerco-me antes de informações sobre ele, leio textos o mais completamente possível, chego cedo, fico até o final e depois penso no que pude ouvir com muito cuidado. já não bebo como antes algumas cervejas pensando na vida. a própria vida se tornou mais urgente e opressiva. escolho muito se vou assistir um filme, ouço música fazendo outra coisa também. quando me aposentar duvido que tenha paciência para andar na praia como antes, sob o sol, apanhando coisas na areia. eu me planejo mais, diminuo pausas,  isso me dá uma impressão de que estou fazendo o que devo, que dispendo tempo apenas no que é útil. entretanto gostaria de pensar que preciso de mais silêncio, de andar mais à toa, de não me importar tanto com novidades, viver enfim uma vida condizente com minha idade. outro dia vi dois velhos conversando no ônibus do centro até o bairro, interessando-se muito pelo que o outro fazia ou sentia. senti que deveria imitá-los, ver mais as pessoas, ouvi-las, mas isso não pode se tornar uma exigência. as exigências matam. elas são importantes, mas devem ser limitadas ao que convém. andar, ouvir, sentir, tocar, quero tornar-me mais corporal, esquecer o que vem pela frente. a vida já foi quase toda, preciso agora de um não tempo em que possa divagar, dilatar, acalmar.

                                                        Igor Zanoni 

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Menino Jesus

meu jesuscristinho moreno e pequenino
fala com qualquer um como gente grande
não falta à escola
e brinca ressuscitando passarinho morto
calmo um pouco pensativo
gosta de passear à noite
diz que rezando pro seu pai
como qualquer garoto claro faz das suas
é um menino bonzinho
mas deixa a gente
com o cabelo todo em pé

                                                Igor Zanoni

Incerteza


não sabemos onde o dia nos levará
a incerteza é nosso meio
breve virá o ocaso
e nosso corpo se desfará
na ignorância do olvido
guarde para esse momento sua serenidade
enquanto a vida em seu tumulto
se perde em volta
adeus adeus vida breve
fique deste lado do caminho que deixo
com todos os que me reterão
na memória imprecisa
eu em lugar algum
homem que terei sido
em meu vão viver

                                      Igor Zanoni

Plebe


em uma unidade de pronto atendimento, que funciona 24 horas por dia, se você demorar um pouco para ser atendido (isso depende da triagem que classifica como mais ou menos urgente o seu problema), percebe que as pessoas que esperam vão mudando ao longo do dia, conforme umas são atendidas e chegam outras mas a unidade está sempre cheia. o que elas fariam se não houvesse tais unidades? ali a plebe da cidade exerce seu cada vez mais remoto direito de cidadania, seu direito por exemplo a uma medicina gratuita e eficiente pelo sus. a plebe não tem dinheiro nem planos de saúde, e é imensa sua necessidade do serviço público. as pessoas ali são simples, feias, mal vestidas, formam um enorme contingente social ao qual a fortuna não sorri. é pavoroso imaginar que esse vasto contingente tem seus direitos ameaçados, que sua cidadania efetiva está cada vez menos assegurada em um aspecto básico como a saúde. a cidadania se exerce no dia de eleições, mas esse dia se torna sempre menos importante à medida que os políticos perpetuam-se na vida pública no triste espetáculo do clientelismo e do patrimonialismo brasileiros. mas a cidadania se exerce mais claramente a cada vez que uma necessidade é atendida pelo espaço público, como o sus e a educação pública. é precisamente essa cidadania que está sendo ameaçada pelo primarismo da política econômica que atende antes aos grandes interesses, os interesses dos rentistas e dos fluxos de capital livres no planeta. a plebe não sabe nada sobre isso. ela entra mal na unidade de pronto atendimento, com pressão elevada, febre, dores no peito e na cabeça, febre, as crianças chorando ou dormindo no colo da mãe. ela é só um resíduo humano para o capital e para o estado, mal vestido, feio, ignorante, que o estado cada vez mais vai deixando aos azares da vida, e como sua vida é azarada!

                                                     Igor Zanoni

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sequencia


viver é simples
uma sequencia de atos concretos
não pense muito
obedecer é o principal
se sentir medo solidão
retorne
abstraia e siga a sequencia
viver é bem simples
evite sentidos transcendentes
abstraia e siga
não é muito bom mas talvez
funcione

                                          Igor Zanoni