sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O que escapa das mãos


há o que escapa das mãos
de forma irremediável
faltou-nos paciência
para segurá-las
faltou-nos uma paciência
desumana
uma capacidade de aceitar as coisas
que os deuses
não concederam a suas criaturas
mas que talvez ainda retenham em si
embora há tempo vivam entre os homens
que talvez se tenham
também humanizado
pois bem essas coisas se quebraram
com seu rastro de arrependimento
e nem está em mim
reparar essa dor
dizem que o tempo torna
tudo perdoável
que os inimigos se reconciliam
que algo maior e mais amplo
com o tempo conhecemos
mas agora isto está velado para mim
como um ainda não

                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Piedade



há pessoas que não trazem
nada ao chegar
e ao partir não levam nada
seu rosto esconde iras antigas
mas não as compartilham
não as percebem senão
como os sulcos de sua razão
às vezes tem uma piedade
de novenas e velórios
e essa contrição lhes basta
para acreditarem no modo humano
de estar no mundo
mas não são pessoas indiferentes
ou alheias ao seu estado
são antes pessoas que tem
uma longa corrida a esperar
mas adoecem por não saber
como começa-la

                                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Futebol


Jorge Luís Borges imaginou um campeonato de futebol no qual as partidas eram transmitidas apenas pelo rádio, e os resultados dos jogos manipulados por comentaristas, de modo a manter aceso o interesse por um esporte que vai ficando cada vez mais desinteressante. No Brasil essa estratégia seria desnecessária, pois os resultados já são manipulados, mas com o desconforto de times vencerem campeonatos graças ao dinheiro e status dos patrocinadores, e não darem chance a times menores. Imaginei outra estratégia que poderia dar certo: os clubes brigariam pelo décimo lugar, exatamente o meio da tabela de classificação. É claro que haveria sempre um primeiro e um último lugar, e seria muito difícil time imaginar uma forma de ser campeão. A vantagem é que as torcidas aprenderiam que é preciso levar o esporte menos a sério, com menos desespero e brigas de torcidas. Fica a sugestão.


                                            Igor Zanoni

domingo, 25 de novembro de 2012

Felicidade



paradoxal a felicidade
só se deixa conquistar
com unhas e dentes
e uma implacável vigilância
sobre o coração
muitos pensam que ela se assemelha
à paz mas ela se assemelha
a Shiva São Jorge Ogum
luta conosco nossas lutas
define que lutas são
dela somos fiéis devotos
com suas roupas e suas armas
nenhum inimigo
nos vê e nos alcança

                                                            Igor Zanoni

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Poema Noir

Poema Noir

eu gostaria de um dia
poder escrever um poema
que se parecesse com um filme noir
mas eu não tenho essa inclinação
sou um pouco desligado
sigo no mundo até agora incólume
entre guerras grilagem de terras
suicídio de tribos inteiras de indígenas
matança de crianças por milícias em São Paulo
os bairros abandonados pelo Estado
mas dominados pela droga e os fuzis
a insinuação de que após uma greve histórica
os funcionários não ganharão reajuste
o que há de dramas domésticos
pessoas soltas deprimidas
ou dormindo na rua
sigo entre esses e outros terrores
como uma pessoa que segue
de alguma forma milagrosa no mundo
andando em meus estreitos caminhos
desistindo desde o início de muitos sonhos
entretanto creio otimista
que não sei como tudo isto passará
então não faço um poema noir

                                                  Igor Zanoni

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Pão


o que me espanta
não é que vivamos
pequenas mortes cotidianas
a intransigência das coisas
que cai sobre nós como um cutelo
e que essas mortes tantas vezes
sejam pequenas desistências
transtornando o suposto caminho
no qual seguíamos
mas que algo em nós siga sonhando
lendo romances
olhando os passantes
comendo apenas o que agrada
como se antes de nós houvesse
uma terrestre trajetória de banalidades
que insiste em nos trazer
dos precipícios
oferecendo pão e uma sobrevivência
a vida depois da vida
mesmo com cortes e visíveis suturas

                                                Igor Zanoni

domingo, 18 de novembro de 2012

Imprecisão


palavras como amor
têm um sentido impreciso
podem significar um dever
que nem sempre se pode cumprir
ou um direito que não se pode reclamar
o amor talvez precise dar sem apegar-se
ao que é dado nem ao gesto de dar
ou receber com gratidão
mas não esperar receber outra vez
o amor é um instante trazido do céu
para onde não vamos já que não há céu
mas que inventamos neste instante
imprecisos porque é sempre difícil dar
o que o outro quer ou precisa
e sobretudo não esperar deste
um vínculo estável
porque a vida nos torna cada vez
mais próximos de nossos medos
e também dos nossos supostos refúgios
e portanto afasta o que já está longe
e quase engole o que está perto
parece-nos certo corresponder
ao amor que nos é dado
pois bem façamos isso
mas com o máximo cuidado

                                                                 Igor Zanoni

Chorar


vamos chorar o nosso luto
lamentar a nossa separação
de nós que aqui estamos
ainda por enquanto
sem saber o que deve ser dito
mas dizendo como quem tem pressa
em falar tolamente
em agir com violência
porque a violência nos satisfaz
vamos chorar por mim e por você
nós adoentados e com pouca força
mas forcejando a vida
sem de fato mostrar
com a desejamos


                                                                  Igor Zanoni

sábado, 17 de novembro de 2012

Cansaço


as pessoas cansam
depois de um tempo regulamentar
de conveniências e fair play
elas começam a apresentar
sinais de fadiga
e voltam à sua verdadeira natureza
tornam-se irritadiças
pensam sempre no lucro
de cada transação antes de fazê-la
por menor que seja
esquecem o carinho e os bons modos
em suma começam a cansar
você pode tentar uma terapia
tentar reviver a relação
mas esse é um dado
tão frequente e generalizado
que é melhor aceitar logo a verdade
de que as pessoas cansam

                                                            Igor Zanoni



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O acidente


O rapaz atravessou a estrada fora do semáforo, em frente à faculdade. O carro tentou frear em vão a tempo de não atropelá-lo, mas não pôde. O rapaz caiu estatelado no asfalto quente, imóvel. as pessoas curiosas se aglomeram em torno, mas não fizeram nada, pois satisfizeram sua curiosidade e pronto. Enquanto isso veio correndo pela calçada uma freira com um longo hábito branco, o os cabelos cobertos por um véu branco também longo. A freira veio vindo, veio vindo... Chegaria a tempo de salvar o rapaz? Debruçou-se sobre ele, animou-o (ele felizmente não morrera)e pediu socorro. Como o rapaz não morreu, foi lindo ver o acidente e a freira correndo. Algumas vezes a Igreja causa ótima impressão.

                                                                         Igor Zanoni

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Céu


bom encontrar quem compreende
quem não julga e aceita
quem pondera conosco
quem não precisa tirar nosso peso
das costas
nem o carrega para nós
porque mostra que não há peso
a carregar
bom quem apaga as diferenças
e nos olha com os olhos
da igualdade
com a qual o Céu nos vê

                                                            Igor Zanoni

Emprego


para os que nada ou pouco têm
a saída é esperar que a economia cresça
que o mercado de trabalho se aqueça
e assim possam se candidatar a um emprego
o salário não é bom
os benefícios são modestos
o sofrimento é muito grande
o cansaço nem se fala
horas e dias com sorte toda a vida
sob a batuta exigente
de uma pessoa medíocre
pedindo que você faça sem parar
coisas sem graça
isso sem falar nas doenças crônicas
que se apanham
no desgaste que deixa o empregado
volta e meia encostado
é irônico você tem sorte
de sair do poço do desemprego
se conseguir um emprego!


                                                                Igor Zanoni

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Craques

Craques

eu vi jogadores serem chamados
de craques com respeito
por comentaristas responsáveis
levarem times medíocres
a resultados surpreendentes
e em pouco tempo perderem sua arte
seu domínio do corpo
e da visão do jogo
vi também craques pouco ajudarem
seus times e pararem
em clubes pequenos
apenas porque não agiam em campo
de modo coletivo
a arte se perde e pode ser inútil
todo ato artístico
corre o risco de ser raro

                                                       Igor Zanoni

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Respirar


tudo que nos faz respirar
o alívio de uma situação opressiva
uma alegria que vem do sonho
ao lembrarmos de manhã
do perdido do esquecido
o amor é claro quando possui
uma razoável claridade
certas verdades pessoais
às vezes incomunicáveis
e que funcionam como nosso
santuário
assim como na passagem do dia
uma faixa da Mahavishnu Orchestra


                                                        Igor Zanoni

sábado, 10 de novembro de 2012

Poço


talvez a maior parte de nós
não possa entender
o que se passa conosco
ou sentir esse estado morno
que chamam felicidade
tão fundo a vida enterrou
 em nosso corpo
cacos de uma integridade
para sempre perdida
tentamos todo tempo
manter certa coerência
contra as forças do pesadelo
e da insônia
uma coerência feita da iluminação
do que é confuso e disforme
mas um poço nos devora
e graças a nossa tenacidade
foge como rato
para o escuro para a noite


                                                            Igor Zanoni 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Poder


não é possível dizer:
eis ele aqui ou ali
vamos tomá-lo
o poder centra-se no executivo
e amanhã no legislativo
outra vez está na imprensa
e com os juízes da mais alta corte
quando há a chamada democracia
o poder se desloca
nunca o vemos com clareza
nunca saberemos ao certo onde está
no capital na sociedade no grande império
nunca faremos a revolução
e a democracia não existe
mas é o que está aí


                                                   Igor Zanoni

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Jovens


eu vi jovens brilhantes e vigorosos
conspurcados por aulas medíocres
nas quais nada lhes dizia respeito
quem é professor ou de algum modo
tem o dever de falar às pessoas
deve não apenas estudar
mas ter uma percepção mais clara
de quem é e com quem está falando
deve adotar uma postura humilde
e esperar as questões do outro
tentar arrumá-las e não com pressa
responde-las de modo padrão
arrogante
não há nada mais promissor
que um jovem ou uma criança
que eles possam fazer suas vidas
sem a perspectiva de um dia
terem de trabalhar em um banco
porque os bancos pagam melhor
ou comprar questões que fogem
à sua vitalidade
porque respondem a outros imperativos
que não a vida
eu vi jovens traídos por quem tinha da vida
uma visão menor em um coração sombrio
nada é mais artificial do que professar
um pensamento prévio e ardiloso
que os jovens digam não
e com José Régio exclamem:
não sei para onde vou
não sei por onde vou
sei que não vou por aqui

                                            Igor Zanoni

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Sonhos


sonho continuamente com as mesmas coisas. sonho que não terminei minha tese e que sou cobrado por isso. sonho também que estou procurando emprego e que meu dinheiro acabou. mas o mais frequente é eu estar em um lugar desconhecido e não saber que ônibus pode me levar para casa. mesmo que os lugares sejam desconhecidos, eles são uma colagem de lugares nos quais vivi, como a rua da casa da infância. em geral esses sonhos são pesadelos na verdade. sei sua origem, sei que a figura paterna é que me cobrou na vida estudo, emprego, casa, e que tudo isso foi obtido com muito medo e mesmo dissabor. mas continuo sonhando, ainda que meu pai tenha morrido há dez anos, que esses problemas na vida de vigília tenham sido solucionados. quais são os medos que se fantasiam nessas memórias? por que essa importância para mim da figura paterna, ambígua e difícil?


                                                                   Igor Zanoni 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Eco


quando o bairro se aquieta
e silencia à noite
ouço o persistente e leve ruído
não sei se de grilos e rãs distantes
ou o zumbido de meus velhos ouvidos
talvez seja o ruído de fundo
do universo
lembro de na infância parar
para escutar à noite
as rãs incansáveis
talvez a doçura dessa infância
diga agora seu eco

                                                     Igor Zanoni

Fúria do mundo


Renato Russo queria que lhe explicassem
o motivo da fúria do mundo
não são desejos insatisfeitos
não é o modo de produção capitalista
nem mesmo é o tentador
embora nada disso seja bom
mas não somos anjos
o dinheiro é pouco mas algum temos
quem traça itinerários
e depois os confunde
porque queremos fazer isto
e fazemos o contrário?
no teatro de vampiros
como que lembramos a peça
mas esquecemos se fomos nós
que a escrevemos
e se fomos porque tanta fúria
em tão singelo drama?

                                                  Igor Zanoni

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sobre mamãe


Como mamãe ainda tinha filhas muito pequenas para serem suas companheiras, eu fazia as vezes de seu cúmplice. Fiz isso depois por toda vida. Um dos nossos cuidados era estético. Como as pessoas dissessem que a água do arroz lavado era esbranquiçada porque se polia o arroz com talco, nós fazíamos um caldo grosso com essa água e lavávamos o rosto com ele. Era coerente com um momento no qual se usava tanto o pó de arroz Cashmere Bouquet. Também cuidávamos do que comíamos, porque se dizia que os problemas da pele vinham da alimentação. Uma vez tomamos um copo de azeite de oliva cada um para purificar o ventre, o que nos deixou doentes alguns dias. Papai disse que nós tínhamos provocado uma intoxicação por excesso de proteína da azeitona. Por que não disse antes? Ele era muito calado, acho que não se considerava do nosso lado.


                                                         Igor Zanoni

domingo, 4 de novembro de 2012

O resto da semana


quando eu era criança
ria ou zangava com meus amigos
inventávamos brincadeiras que davam prazer
mas não envolviam sempre risos
e comentários alegres
depois que fiquei mais civilizado
percebi que os amigos quando juntos
tinham quase a obrigação
de falar e de rir
e que verdades importantes
 ficavam fora da conversa
os encontros ficaram mais superficiais
porque agora todos eram mais fortes
ou talvez todos os amigos
hajam se tornado oásis necessários
na secura e calor do mundo
porque temos de ser felizes
a alegria foi feita comércio
e reinventamos o domingo
agora precisamos recomeçar a inventar
o resto da semana
ou esqueceremos a forma real
dos nossos rostos


                                                       Igor Zanoni
                                                      

sábado, 3 de novembro de 2012

Próximo


amar ao próximo pode não ser
uma ação que se defina
previamente examinando
conceitos como equanimidade
para então praticá-la
amar o próximo é andar com ele
mais do que no início
nos propusemos
nas suas condições imprecisas
nas nossas imprecisões
nos sentimentos e gestos
porque a proximidade do Reino
desvaloriza o resto do mundo
que não o próximo
mas este segue no mundo como nós
e sabemos agora
que a terra passa
o convívio sob o amor
 que vamos aprendendo
tornou-se para nós uma urgência
que mostra as sementes do Reino
crescendo e frutificando
 no cerne da nossa incerteza
encontramos um ponto firme
um novo ponto de partida
um novo nascimento

                                                         Igor Zanoni