terça-feira, 29 de abril de 2014

Conversas no barbeiro

1
o mais conhecido barbeiro do Bairro Alto tem setenta anos, conserva a forma cuidando da alimentação, saindo para andar pela Vilinha bem cedo e falando mal dos outros tanto quanto fala bem de si mesmo. assim que ele se familiariza com você informa que o que acabou com Fulano foi o conhaque Dreher, acha que os negros estão se prevalecendo muito nessa onda contra o racismo, que no supermercado ao lado se compra carga roubada e assim por diante. ao mesmo tempo informa que sua mulher professora do estado ganha aposentadoria, que ele faz mil e quinhentos por mês na barbearia e que está sempre fazendo planos. no domingo foi até o apartamento que tem em Matinhos, trocou o Fiat-uno por um mais novo e vai sempre a Aparecida, mas tem um desgosto com a filha, aliás enteada, porque se separou e não quer saber de fazer nada. mas enquanto Deus permitir ele vai vivendo pois a gente só vive como Ele quer.

2
o barbeiro é um jovem perto dos seus clientes. dois senhores conversavam sobre as mortes de posseiros pelo velho Lupion, lembrando cidades desaparecidas para os lados de Porecatu. um deles parecia muito bem, novo demais para ter visto estas coisas, o outro estava mais envelhecido. mas meu barbeiro informou antes que eu falasse qualquer coisa que o primeiro tinha setenta e oito anos e o outro oitenta e quatro. perguntei ao mais novo como ele fazia para se manter em tão boa forma e ele respondeu: o segredo na vida é manter o sangue frio. uma boa resposta, apropriada para por fim a uma conversa.

3
quando eu já ia embora dei passagem a um senhor mais idoso, que vinha fazer barba e cabelo, andando sozinho apoiado numa bengala. perguntou se os outros estavam na frente e se ia precisar esperar muito. o meu barbeiro informou logo que ele tinha noventa e oito anos, mas vivia apressado. não, não tinha ninguém na frente e ele se sentou sem ajuda na cadeira, dando uma boa olhada no espelho.

                                                              Igor Zanoni

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Felicidade

1
Um eminente PH.D. em neurociência norte-americano afirma categoricamente em seu último livro que apenas os antigos monges tibetanos vivendo nas mais inacessíveis reentrâncias do Himalaias em profunda absorção meditativa na luz da sabedoria primordial foram um dia felizes

2
Vendo a multidão acotovelando-se ao seu redor, sentiu compaixão e começou a pregar: Antes um alcoólatra inveterado que um tolo contumaz, não chamai vosso irmão “louco!”, mas  “pessoa com deficiência de juízo”, tudo que receberdes de graça devolvei rapidamente, quando entrardes em um banco sabei que correis grande perigo, ao sair sacuda o pó de seus pés, quando um economista começar a falar na televisão pule para um desenho de Tom& Jerry. E a multidão se extasiava diante de tal sabedoria.


                                                                               Igor Zanoni

domingo, 27 de abril de 2014

Passagem


não detenha os dias de sua vida
deixe que eles passem
em vez de se apegar
a tudo que não foi tão bom assim
como saber dos dias novos
que nos restam?
o que está sob controle nosso
no que ocorre?
além das notícias más dos jornais
o acaso é muito mais decisivo
do que em geral julgamos
mesmo que sigamos os mandamentos
e seus comentários
sentiremos a eterna nostalgia
do Messias que tarda
mas como saber se não virá
ainda em nossos dias?

                                                               Igor Zanoni

sábado, 26 de abril de 2014

Natureza humana

 
1
muitos veem, sem maior exame, os males do mundo como fruto de uma suposta natureza humana, sempre ávida em produzir sofrimento e tragédias. não se preocupam em contextualizá-la, não se dão ao trabalho de entender minimamente este contexto. somos todos de forma real ou potencial esse lobo voraz que o estado não pode controlar, como supunha Hobbes, mas que o próprio estado espelha. sequer essa natureza é vista de modo religioso como resultado de um mal originário que nos faz cultivar a terra entre cardos e espinhos. o chamado Homem, em maiúscula, em seu íntimo é tais cardos e espinhos e não se preocupa com sua origem ou futuro. esta natureza cruel vaga sobre nossas cabeças, está mesmo dentro delas, fornecendo todos os dias noticiários para o Jornal Nacional e a Tribuna da Imprensa.

2
é difícil entender os grandes movimentos de que todos somos vítimas no mundo. a economia é uma disciplina difícil e posta fora do alcance do homem comum, outras ciências sociais também dependem de árduas conceitualizações. os regentes de tais movimentos dentro dos quais somos empurrados para lá e para cá são obscuros para quase todos. nada mais oculto que  um homem rico, ou alguém realmente com poder. o homem comum não sabe este rico onde mora, como vive ou como pensa. mas não sem razão pensa nos políticos como ladrões  ou na política como um nojo. entretanto isto está longe de bastar, e resta a este homem sua vida quase indiferente naqueles movimentos e o controle que sofre mas ignora.

                                                        Igor Zanoni

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Estatutos da Gafieira

 
1

para gostar de muitas coisas
eu precisaria ser mais brasileiro
vestir a amarelinha
amar a potência emergente do pré-sal
preferir escola particular
planos de previdência do Itaú
a Unimed a Amil
Kaiser e Skol nos domingos
com os pés na churrasqueira
como um lord inglês frente à lareira
achar simpáticas festas de aniversário
com imagens de isopor da Barbie
fazer loucuras por um carro meia boca
comover-me com os discursos
sobre a inclusão social
nas nossas vastas solidões
do agrobusiness
e achar Francisco I muito revolucionário
para nossas capelinhas de melão

2

faz o que tu queres pois é tudo da lei
dance a noite inteira
mas dance direito

                                                             Igor Zanoni