quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Nostalgia

Nostalgia

A saudade, apesar ou por causa dos nossos contextos, mais particulares ou mais gerais, remete ao passado, imaginando o quanto foi bom, mais talvez do que realmente foi na época. O termo saudosismo foi cunhado para demarcar, positiva ou negativamente, sentimentos e situações que gostaríamos de reviver, um sociólogo ou um psicanalista diria por quê. No Brasil, ao tempo do samba-canção, tudo era saudade, e as músicas falavam de amores perdidos marcando para sempre a possibilidade de voltar a amar, a loucura em que o amor pode se transformar, a casinha sem teto na qual se vivia tão bem olhando as estrelas e assim por diante. Nos governos JK e Jango as coisas começaram a mudar e brotaram sensibilidades menos provincianas, do tempo em que a tragédia era a glória de uma vida. João Gilberto cantou: “Chega de saudade!”. Há o velho sob a capa do novo, atualizando-se retrogradamente em ralações de opressão e despossessão. Isto quem mostra é Glauber Rocha. Aí o samba-canção ficou uma coisa irremediavelmente velha, anacrônica, saudade para saudosistas ou sadomasoquistas. Nostalgia, por sua vez, é a capacidade de pensar, nos momentos cruciais da história, a possibilidade de mudança, de superar o atraso, a desrazão, a prepotência, o mandonismo, a graça concedida do alto, por quem manda. È também a possibilidade de ver que atores sociais poderiam levar adiante essas mudanças. Esclarecendo uma distinção semântica, e por isso muito importante, sou nostálgico de muita pouca, saudoso de nenhuma .

                                                              Igor Zanoni

Cavalheiro


o doutor Francisco de Borja Magalhães
com uma vasta folha de serviços
ao estado do Paraná e ao Brasil
comunista por convicção ponderada
como todo comunista nosso
defensor intransigente
 da burguesia nacional
um perfeito cavalheiro
atrás de cinco centímetros da
sua cigarrilha
e cinquenta da sua acurada prudência
conversava com sabedoria e urbanidade
uma referência quando havia brigas
nos lugares onde trabalhava
sorrindo sempre dos exaltados
nunca dizendo tudo o que pensava
quando adoeceu sua conversa
ficou amalucada
mas não menos urbana e sociável
como um Quincas Borba de esquerda
no asilo onde o puseram afinal
organizou os jornais disponíveis
e reuniões de conjuntura
com outros internos
que se irmanaram na crítica ao status quo
mostrando que a doidice
não deixou nunca o lastro de lucidez
que o equilibrava

                                                                  Igor Zanoni

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Igreja do Rosário


veja o senhor esta bela igreja colonial
no Largo de Ordem
do tempo em que esta havia
e ainda há de um certo
 e quase o mesmo modo
pintada de fresco cal azul e branco
cores do céu e de asas de anjo
na foto de um turista não se vê
uma que outra recente pichação
o mijo dos cães nos cantos
e dos pobres mais acima
e por todo lado
pobres que em qualquer hora
ali mais bebem que comem
e mais são maltratados
do que se podem tratar
e também ao tempo dormem
eles que a igreja deveria recolher
tivesse a igreja vindo como Cristo
para os pobres e não para os cobres
e já por aí se entende
a ordem no Largo da Ordem

                                            Igor Zanoni

Amor


eu não tenho esse gesto
esse jeito sempre amoroso
depende do rosto que mostra
através do meu rosto
essa Fúria que me toma


                                                   Igor Zanoni

Pensar

Pensar
 
1
 
Ontem percebi uma propedêutica da comunidade Hare-Krishna enquanto almoçava a excelente comida indiana que ela serve aos domingos. Quando eu esperava ficar pronta a refeição, um rapaz gentilmente ofereceu ao meu filho e a mim um suco natural de uva com gengibre e açúcar mascavo. Meu filho agradeceu e recusou, e o devoto perguntou ao Tiago: “Este é um dos sucos que será servido na refeição. Você não gosta? Quer que traga outro? Como você quer seu suco?”. Mas o Tiago não queria estragar o apetite e continuou recusando, até se criar uma situação em que tive de intervir: “Não há contra o suco, amigo, apenas meu filho tem suas regras para comer”. “Mais tarde, após tomar os sucos dulcíssimos e comer um bolinho indiano feito com leite condensado e passado na frigideira com manteiga clarificada quente, à saída perguntei brincando a uma devota que recebeu nosso dinheiro:” Puxa! Vocês gostam mesmo de coisas doces!”“. Ela rebateu de pronto: “Gostamos! Alguma coisa não foi do seu agrado? Como podemos atendê-lo ao seu gosto?”. Esta é a convenção: oferecer o que eles usam no seu padrão de vida com gentileza, mas perguntando se você precisa de alguma concessão especial. Pelo menos por enquanto, na sua condição de visita.
 
2
 
Os mantras indianos antigos se repetem monotonamente ao infinito. O som em sânscrito é agradável, mas quando cantados em português soam para nós com uma retórica mal escrita e mesmo velha.
 
3
 
Muitos precisam seguir preceitos com obediência, para obter paz e encontrar um caminho para suportar a vida. Mais difícil e mais ao nosso controle é examinar esta vida com paciência, mesmo que se vista sem qualquer convenção nem use uma imagística com que não atinaríamos sós, pois de fato não pertence a nós, como não pertencem ainda os frutos da reflexão. Esta é nossa atualidade e nossa autenticidade.
 
                                                                     Igor Zanoni
 
 
 


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Sonhos


à medida que se envelhece
tudo em volta parece
já sonhado um dia
assim já sonhamos
o crocodilo o panda o sonho
mas agora nos centramos
no fundamental
sonhamos repetidas vezes
com terror
não terminar o curso
em que nos graduamos
a necessidade de arrumar goteiras
no telhado que já trocamos
de encontrar a casa da infância
cujo terreno há muito deu lugar
a um condomínio para pessoas alheias

                                  Igor Zanoni