domingo, 5 de outubro de 2014

Indigenista

o ímpeto indigenista de meu pai fazia-o suplementar nossa dieta com paçoca guardada em uma lata grande e com gemada e ovo cru. a casca do ovo era deixada em suco de limão durante a noite, fonte de cálcio indispensável ao nosso crescimento. ele ia também para a cozinha preparar comida nordestina, com bastante pimenta e dendê, e no Natal, mesmo bem mais tarde, fazia uma paella muito boa. à noite nós não jantávamos, mas íamos todos preparar mingau de maizena  com chocolate e waffles. os melhores waffles eram feitos pelo meu irmão alex, e cobertos com melado. também gostávamos de melado com farinha de mandioca grossa. assim todos tivemos uma infância bem nutrida, sem vestígio de salada e, como adoraria a Mafalda, sem um pingo de sopa.


                                                                Igor Zanoni

sábado, 4 de outubro de 2014

Energia



as pessoas têm muita energia e vitalidade mas quase já não podem criar laços e cultura que estejam na base de um “desejo”, de um “sentido”, ou de um “futuro”. há muito “tempo livre”, mas pouco disponível para a construção social e pessoal de um self que não envolva palavras tão conhecidas como “culpa” ou “falta”, que não são a meu ver uma condição humana ou uma característica dos homens e mulheres modernos. cioran diz que a história da humanidade permitiria a elaboração de uma “teoria geral da lágrimas”, hobsbawm em sua autobiografia enfatiza o horror que marcou o século XX , mas tudo isso é história velha. é também um horror ver pessoas envolvidas em emoções e dificuldades que poderiam não lhes pertencer, pois elas são marcas de um tempo e uma história sobre os quais elas não tem muita ação, embora estejam sempre buscando saídas, espaços interiores, novas formas de relacionamento, nova compreensão da religiosidade, tomando remédios, indo a psicólogos, procurando se preparar para empregos interessantes, estudando o anarquismo ou revendo o socialismo, tentando civilizar o capitalismo, etc. nossa energia é imensa, cada um de nós iluminaria uma cidade com cabos e fios elétricos adequados.  se pudéssemos conectar essas energias alcançaríamos sim a “liberdade e a imortalidade” buscada pelo mais antigo yôga, mas não é possível alcançar isso sem um “abolicionismo” global que rompa o anacronismo do monopólio do capital, da terra e do trabalho tão bem apontado no Brasil Império por um homem lúcido e corajoso como Joaquim Nabuco.


                                                                       Igor Zanoni

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Nada fácil para ninguém

ao meu lado na sala de espera, junto com sua mãe tentando dar conta de tudo e com seu irmão mais ou menos da mesma idade, uma garotinha com uniforme escolar apontou para minha camiseta de azul bem forte constatando : “blue”. ri e perguntei se ela estava estudando inglês. entrou em seguida na sala da psicóloga e a mãe aproveitou o tempo para fazer com o menino alguma coisa, voltando uns quarenta minutos depois para apanhar a garota. aí era minha vez de entrar na sala e fazer o meu trabalho. nossa psicóloga cuida de pessoas dos oito aos oitenta anos, no mínimo, não sei como ela consegue, é importante para todos mas nada fácil para ninguém.


                                                                         Igor Zanoni

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Queluz



1
quando se desce para o Rio as horas todas da viagem deixam as crianças enjoadas é preciso parar o carro para tomar ar e vomitar em paz nós lembramos como as férias são boas e como demora sair de uma vez de férias mas quando se chega em Queluz nós que aprendemos já que ela é a última cidade do estado trocamos a expectativa pela plenitude o espírito já pode estar em seu espaço natural e quase nem é preciso ir além pois a intensidade que buscávamos já foi alcançada

2
em Bertioga vivemos os caiçaras distantes dos outros povos pela serra e por um tempo específico zelosos de uma incapacidade radical de compreender e muito menos poder estar próximos do que não seja litorâneo finda o continente seu linguajar tolo sua trabalheira insensata


                                                                           Igor Zanoni

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Oswaldo Montenegro

Oswaldo Montenegro


em uma canção que adoro, um verdadeiro achado, como se dizia há muito tempo atrás, lulu santos autoproclamou-se  o último romântico. caetano gravou esta canção em noites do norte, com a felicidade que encontra nas suas interpretações. mas oswaldo montenegro sempre insistiu em ignorar tudo isso e em apresentar-se como um romântico além da conta, não um poeta mas um vate, não um cantor mas um menestrel. muitos gostam de sua desmedida paixão e de seus tiques poéticos, como se não deixasse mais nada para ser dito. pessoalmente acho que um verdadeiro romântico, seguindo a boa tradição, precisa ser mais comedido e nunca chorar tanto pelos cotovelos. mesmo a paixão tem uma razão, e um poeta precisa saber indica-la. por isso nunca ouvi inteira uma música de oswaldo montenegro, preferindo de vez em quando ouvir lulu santos, via caetano, é claro, que de todos é melhor artista e o mais sensato.


                                                                               Igor Zanoni