terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Manhã


Manhã

quando as máquinas começaram a trabalhar
com seus homens parecendo pequeninos nas cabines
o ruído dos motores
 das placas de asfalto velho arrancadas
e substituídas por novo pavimento
minha casa tremia com o peso e o arfar dos motores
eu não pude ler em paz
o trabalho na rua suspendia a rotina calma das manhãs
indicando que o mundo tem sim sua rotina
aplainando o caminho dos automóveis
consignando rubricas para transporte na prefeitura
um mundo se movendo com suas vértebras desajeitadas
mas inflexíveis
muito além de nosso pensamento
sem comentários engolfando a manhã
nos caminhos que posso entender
mas que é tão alheio e ao mesmo tempo próximo e distante
e tão disforme
                                                             Igor Zanoni

Imparcialidade


Imparcialidade

a imparcialidade é a mais árdua
das virtudes pois implica todas as outras
amor generosidade alegria paciência
implica tomar o outro por si
e ama´-lo como se ama a si mesmo
trata-se da antítese do fundamentalismo
a extinção dos preconceitos
em termos jurídicos dar ao outro
o direito de ser o que quiser
o que é puro anarquismo
todas as virtudes levam à extinção
do poder e do estado
viver desde já em um reino
que não é deste mundo

                                                             Igor Zanoni

Comboio


Comboio

o amor cruza a noite como um comboio
mal ouvimos seu ritmo monótono
estamos tão mergulhados no sono
de todos os dias
uma luz indica aos automóveis
parem que o amor passará
passaou nem automóveis havia
sob a chuva que caiu indicando
a necessidade de investimentos na cidade
e o precário orçamento municipal
o amor passou em seu velho leito
de trilhos de aço fixos firmes na terra
nem nota a paisagem que cruza
o amor mudou quase nada
já nos acostumamos a não vê-lo
a ter por incerto o certo
nem sonhamos mais  com seus avisos
e despertos jamais estamos
à sua férrea delicadeza

                                                                 Igor Zanoni

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Memória


Memória
pedi a meu pai várias vezes que escrevesse sua biografia. faltam biógrafos no Brasil, como o maravilhoso Pedro Nava. sei vagamente da história de meu pai. meus avos paternos morreram de gripe na dácada de trinta e cedo meu pai foi atirado à vida. não sei se tinha tios, apenas irmãos dos quais aos poucos se distanciou. papai se criou só, foi um self- made man o que moldou sua ideologia individualista e intrometida em tudo, dissesse ou não respeito a ele. mas ele teve uma boa história, sei pouco dela. ele não tinha muito tempo para conversar com a gente, acho. de mamãe sei menos ainda, embora tenha convivido com meus avos maternos e tios, primos e primas por esse lado da família. de mamãe sei mais, mas não o que viveu ou sentiu, percebi muito, mas ela podia ter conversado mais também. hoje o esquecimento paira sobre nós, tudo corre muito veloz, e quando alguém morre leva preciosidades em seus olhos, que nós hoje desprezamos ou descartamos, como uma eletrola Phillips de madeira marfim tocando Cauby em 78 rpm.  ou o langor de Maysa altas horas na tevê preto e branco, cantando para eu e mamãe apenas, na sala. assim vamos nos distanciando das emoções antigas, vamos nos distanciando mesmo das nossas, ficamos anacrônicos rapidinho. e a memória fica relegada aos historiadores, que nos olham com suas próprias preocupações.
                                                             Igor

Precocidade


Precocidade

Um professor notou que as alunas da escola em que trabalhava usavam muitas pulseiras coloridas de várias cores e demorou a saber o motivo. As pulseiras significavam desejos que as meninas concediam aos meninos que conseguiam roubar uma delas, cuja cor significava o tipo de prêmio a que estes tinham direito. Eram desejos sexuais, que iam desde um beijo na boca a uma relação de sexo oral. Estas meninas eram muito novas, com onze ou pouco mais anos de idade, demonstrando a precocidade com que eram inseridas no saber sexual. Como já se disse, o sexo é a diversão mais barata e gostosa a que um adolescente pode aspirar. Mas esse comportamento bastante desinibido, é claro, não é ode todos os adolescentes ou pré-adolescentes. Grande parte deles, nas faixas sociais da classe média, pratica sexo e têm mesmo filhos precocemente, mas a maior parte (quem sabe?) ainda é protegida por um mundo de aspirações infantis que inclui a educação, a diversão controlada pelos pais, a amizade preferencialmente com adolescentes do mesmo sexo e o brinquedo com estes, o mundo familiar bastante tradicional  em vários sentidos, como o da religiosidade. Como no tempo em que Freud descobriu o caráter passional dos seres humanos, o sexo ainda é um motivo de grandes frustrações, neuroses e dificuldades emocionais de toda ordem, e a melhor solução para isso não necessariamente é uma vida sexual ativa desde cedo ou sem mediações de valores éticos e de responsabilidade para com o parceiro. Como disse Cristopher Lasch, a falta dessa responsabilidade cria sofrimento e tristeza. Se o homem é um ser desejante, também há uma grande manipulação da enxurrada midiática que recebemos todos os dias ressignificando beber cerveja ou ter um carro.  Ou comprar um brinquedo, ou ter um amigo, ou praticar bem um esporte, a lista é infinita. Esse deslocamento do desejo sexual ou sua reafirmação metafórica é capaz de criar tantos indivíduos neuróticos e incapazes de realizar desejos como uma educação sexual muito repressiva. Quem ganha pouco não pode aspirar ao tênis que se sabe melhor e mais bonito. Essa é a porta para a drogadição, a violência. Por isso o sexo deve ser pensado dentro de uma economia política que envolve distribuição de renda, padrões de consumo, relações de sociabilidade mercantil e outras. Apenas ter um parceiro, com freqüência muitos, e atingir o orgasmo com certa freqüência não tem nenhum efeito liberatório sobre uma vida emocional reprimida e difícil. No ser humano nada é apenas natural ou biológico, mas passa pelo crivo cultural e, portanto, por valores e significados éticos.  O importante é que a educação ou o sujeito possa perceber os sentidos em que sua vida está involucrada ou encalacrada. Na minha juventude, a liberação sexual era buscada numa sociedade muito repressiva em vários aspectos além do sexual, e muitos de nós buscavam novas expressões religiosas, culturais e outras ao lado de uma vida sexual mais satisfatória. Havia uma vontade de mudar o mundo, não havia? Muitos se envolviam com política, ou com a problematização da educação, do uso do meio-ambiente, e outras áreas.  Muitos passaram neste período a fazer terapia, a se tornar terapeutas ou ler obras sobre terapia. A Igreja respondeu com os livros de Michel Quoist, os cursilhos para jovens e vi muitos amigos jovens dentro de uma participação na vida social e cultural mais lúcida que a minha. Eu não tive educação sexual em casa, mas fui embalado na vida caseira como uma cigarra no casulo até o momento de cantar, mas não posso dizer o sofrimento que isso me causou. Nem a forma abrupta e autodidata com que a vida sexual começou, envolvendo sentimentos difíceis de manejar. Se isso for ainda verdade, o que acho que é, precisamos pensar o desejo como sexo, dinheiro, cultura, políticas públicas para as questões sociais e assim por diante.

                                                                                                                   Igor

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Papai o inventor do mundo

Papai o inventor do mundo

Papai era um homem complexo, difícil de ser apresentado por mim até hoje. Nasceu em 1925, filho de um coronel-engenheiro do Exército em segundas núpcias, em uma casa que vi quando adolescente no Rio, creio que em Botafogo, espaçosa, de ladrilhos portugueses, com uma fonte para peixes em frente. Seu pai chamava-se Permínio e sua mãe Áurea, de quem tinha um pequeno retrato branco e preto que ele reproduziu em um quadro e colocou na sala. Tinha muitos irmãos, alguns de nome místico pois meu avô era rosacruciano. Meu pai chamava-se Siddhartha. Seus pais faleceram em uma epidemia de difteria, o pai primeiro,em 1936, a mãe algum tempo depois. As crianças ficaram sob a guarda do irmão mais velho, Alberto, pois aparentemente meus avos não tinham familiares no Rio, pois vinham de um ramo dos Carneiro leão do Sergipe. Logo seus bens foram malbaratados, e papai fugiu de casa, indo morar na ilha do Governador como ajudante de pescador. Pouco depois foi conduzido ao SAM- Serviço de Apoio ao Menor, o que não lhe valeu nada em termos de educação, e com onze anos foi levado ao Corpo de Bombeiros, onde fez o ginásio e o segundo grau, passando de ajudante geral a elemento da banda da corporação, banda famosa por sua execução de marchas famosas e que gravou alguns discos. Papai fez então a Escola Nacional de Música, onde se formou em Teoria e Solfejo, aprendendo com muita habilidade o clarinete. Entrou na Orquestra Sinfônica Nacional, dirigida então por Eleazar de Carvalho como spalla dos clarinetes. Quando nasci a Orquestra apresentava pela primeira vez no Brasil A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, o que me valeu o primeiro nome. Meu segundo nome, Zanoni, vem de um personagem rosacruciano do mesmo nome, personagem de um romance esotérico de Bulwer Litton. Papai casou-se cedo com uma moça pobre como ele, o que o obrigava a tocar em clubes e festas noturnas, mas prosseguiu os estudos fazendo odontologia e fazendo concurso para o Exército, ainda  novo e contando como tempo de serviço aquele prestado no corpo de Bombeiros. No Rio nascemos eu e Alex, depois papai foi transferido para Campinas, onde nasceram Felippe, cujo nome foi uma homenagem ao meu avô materno, e Ivone, em homenagem a uma irmã querida de mamãe e minha madrinha..
Esse currículo de papai já mostra sua capacidade de trabalho e de aproveitar as oportunidades que lhe surgiram, tornando-o um homem muito crente em si e exigente dos outros. Comprou do Sr. Guilherme Erren uma casa no Castelo, um bairro então novo e tranqüilo, hoje valorizado e muito comercial. Pagou logo a hipoteca da casa que amava, fazendo nela sempre reformas, como tirando o murinho de tijolos e pondo uma grade bem bossa-nova marrom e branca, modificando os cômodos, comprando móveis novos, passando Synteko para acabar com as pulgas da casa e com o trabalho de encerá-la, assim até o fim da vida. Quando eu tinha oito anos foi transferido para o Segundo Batalhão de Fronteira, em Cáceres, no Pantanal mato-grossense, onde chegamos em uma viagem memorável tomando um trem leito até Bauru, seguindo em um avião até Corumbá e depois de barco até Cáceres.
Em Cáceres nasceu Tintim, o Siddhartha menor, enquanto estávamos instados ainda em uma pensão procurando casa para alugar. Conseguimos uma casa logo depois, que era uma casa geminada, com uma comunicação no meio da copa, em um arco. A casa, como todas as da região, muito quente, refrescava-se deixando apenas a sala e os quartos com quatro paredes, e a copa e a cozinha abertas para o quintal, cercadas por uma mureta. Não havia luz elétrica senão duas horas por dia, e á noite tínhamos lamparinas de querosene que deixavam uma marca preta na parede e juntava a maior coleção jamais vista de bichos voadores nas paredes, como a famosa cobra-cigarra, um inseto assustador à primeira vista e cercado de lendas. Nós, as crianças, gostamos muito do lugar, mas mamãe não, por causa do excessivo calor. Papai teve uma vida muito ativa ali, como dentista, criando também com freis holandeses, que ali tinham uma missão, um grande ofidiário para abastecer o Hospital São Luís de soro que trocavam no Butantã em São Paulo. Modernizou a farmácia do quartel e o consultório odontológico, jogava xadrez em um clube local aonde me levava também. às quatro saia do quartel e íamos todos para o rio tomar banho perto do porto, em uns bancos de areia. Papai dovidia seu tempo depois com o quartel, o consultório que fez em casa e a família. à noite tomávamos sorvete na praça, ou papai e mamãe saíam, deixando-nos com a empregada Cleonice, que nos contava histórias de assombração e tinha um namorado do qual engravidou e com o qual se casou. eu tinha um ordenança que me levava a pescar, andar de barco no rio Paraguai e mesmo me ajudar nas lições de casa ou brincar com as crianças enquanto mamãe cozinhava no enorme fogão de lenha seus doces e manjares em que era perita.
Quando voltamos, em 1964, no início do ano, a revolução de 64 se preparava e pude ver movimentos dela nos lugares em que passamos de carro, quando viajamos os 2000 quilômetros em um DKW verde que papai comprara, o segundo carro introduzido em Cáceres. De volta a Campinas, papai passou ainda algum tempo no Primeiro Batalhão de Carros de Combate Leves, onde rearrumou todo o atendimento odontológico e modernizou os consultórios, mas logo se aposentou, antes dos quarenta e cinco anos.
Uma característica de papai era seu auto-didatismo, uma marca das pessoas inteligentes da época dado o nosso baixo nível cultural. Papai sempre aperfeiçoou seu trabalho como dentista, deixando a música como um hobby, tornou-se grande especialista em dentaduras e depois em implantes, mas também fazia ortodontia, da qual não gostava pois não lhe rendia muito. Todos os parentes seus se afastaram com o tempo, embora ele recuperasse depois alguns laços, mas os parentes de mamãe visitavam-nos, em geral fazendo reparos odontológicos gratuitos com ele. Outro de seus hobbies era estudar religiões, levando a família por diversas igrejas até largar todas e se concentrar na parapsicologia. Tinha amigos da Física da Unicamp com os quais mantinha contato, e estudou treinamento autógeno e vôos astrais, saindo-se muito bem segundo seu testemunho. Estudava religião fazendo sua própria exegese pessoal, sem consultar teólogos ou saber grego ou latim. Mantinha enormes fichários onde colava referências bíblicas aos assuntos que o interessavam, sempre com minha prestimosa ajuda. Esse seu lado foi muito importante para me dar uma visão menos dogmática da religião e, nesse sentido, aprendi a  pensar com mais liberdade com papai. Sempre me falava algo inesperado, sobre a ressurreição, por exemplo, checando e pondo tudo em questão.
Mais tarde saí de casa e papai se separou de mamãe. Teve muitas namoradas e afinal se casou com Terezinha, que afastou papai dos filhos aos poucos. Afastou-o também dos seus passatempos e inquietações. Sua velhice foi acompanhada por ela e por meu irmão Felippe, que manteve uma relação com ele até o fim. Quando ficou doente, com um câncer no fígado, não quis tratamento. fui rapidamente a Campinas despedir-me dele. A seu pedido li uns textos que estava alinhavando sobre educação. Tinha uma frustração com não ter criado como deveria os filhos. Quando passou mal e foi hospitalizado, estava com minhas irmãs Ivone e Mônica. Despediu-se delas, pediu para que se afastassem, concentrou-se e quietamente sua pressão baixou, seus batimentos cardíacos desaceleraram e morreu em grande quietude.

                                                                                                                             Igor

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Brexó


Brexó
muitas vezes eu quero tanto ler um livro
que acabo esperando uma ocasião
em que esteja tranqüilo e disponível
para ele
é claro que acabo não lendo
faço assim também com roupas novas
ou sapatos e acabo me vestindo
sempre do mesmo jeito
assim sou um estranho consumidor
que preserva muitos bens intactos
para os brexós e os sebos

                                                        Igor Zanoni
                                            
Comercial de Cerveja

eu gosto ou não gosto
quero ou não quero
claro que às vezes começa-se a gostar
do que não se gostava e vice versa
mas o importante é deixar claro
ou isto ou aquilo
como diz a Bíblia “sim sim ou não não”
por isso eu não preciso jurar
eu sou claro
ou se é feliz ou infeliz
há quem goste de ser infeliz
ou pelo menos procuro o melhor para mim
acho que todos devem fazer o mesmo
não é mesmo?
parece um comercial de cerveja
e não é
mas a diferença é pouca

                                                              Igor Zanoni
O Duplo

há um eu que come bolo às nossas custas
um eu que trabalha melhor e faz amigos
na repartição que aborrecemos
há um eu que nos evita
outro que nos procura
o crucial não está aí
mas porque buscamos distingui-los
buscar entre os muitos eus coerência
e acordo
é difícil ser contraditório mas inevitável
mas nesse jogo é preciso
saber o que ou quem nos salva
que Sr. Goliádkin
qual dos irmãos Karamázov

                                                     Igor Zanoni
Pessoas extraordinárias

pessoas criam para si
um âmbito dentro do qual vivem
às vezes é difícil entendê-las
sobretudo quando este é original
ou vem de culturas quase perdidas
dentro da tensa invasão do homogêneo
por isso é importante não apenas
a conversa doméstica e consuetudinária
mas a interlocução viva
que explode nossa visão
poucos fazem isso pois exige liberdade interior
zelo intelectual ou amor ao mundo

                                           Igor Zanoni                                                 
Reza
gosto do recolhimento que se comunica
à alma no interior das igrejas
na prece e na meditação
gosto do ritual medido e executado
com fidelidade
dando à alma o espaço que às vezes perde
que difícil se mantém
toda vez que se guarda silencio
abre-se um vazio iluminado á frente
e o tempo a vida ganham fôlego e repouso
Noel Rosa escreveu um samba
em “feitio de oração”
eu faço poemas como quem reza
como quem se benze

                                                          Igor Zanoni