Papai o inventor do mundo
Papai era um homem complexo, difícil de ser apresentado por mim até hoje. Nasceu em 1925, filho de um coronel-engenheiro do Exército em segundas núpcias, em uma casa que vi quando adolescente no Rio, creio que em Botafogo, espaçosa, de ladrilhos portugueses, com uma fonte para peixes em frente. Seu pai chamava-se Permínio e sua mãe Áurea, de quem tinha um pequeno retrato branco e preto que ele reproduziu em um quadro e colocou na sala. Tinha muitos irmãos, alguns de nome místico pois meu avô era rosacruciano. Meu pai chamava-se Siddhartha. Seus pais faleceram em uma epidemia de difteria, o pai primeiro,em 1936, a mãe algum tempo depois. As crianças ficaram sob a guarda do irmão mais velho, Alberto, pois aparentemente meus avos não tinham familiares no Rio, pois vinham de um ramo dos Carneiro leão do Sergipe. Logo seus bens foram malbaratados, e papai fugiu de casa, indo morar na ilha do Governador como ajudante de pescador. Pouco depois foi conduzido ao SAM- Serviço de Apoio ao Menor, o que não lhe valeu nada em termos de educação, e com onze anos foi levado ao Corpo de Bombeiros, onde fez o ginásio e o segundo grau, passando de ajudante geral a elemento da banda da corporação, banda famosa por sua execução de marchas famosas e que gravou alguns discos. Papai fez então a Escola Nacional de Música, onde se formou em Teoria e Solfejo, aprendendo com muita habilidade o clarinete. Entrou na Orquestra Sinfônica Nacional, dirigida então por Eleazar de Carvalho como spalla dos clarinetes. Quando nasci a Orquestra apresentava pela primeira vez no Brasil A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, o que me valeu o primeiro nome. Meu segundo nome, Zanoni, vem de um personagem rosacruciano do mesmo nome, personagem de um romance esotérico de Bulwer Litton. Papai casou-se cedo com uma moça pobre como ele, o que o obrigava a tocar em clubes e festas noturnas, mas prosseguiu os estudos fazendo odontologia e fazendo concurso para o Exército, ainda novo e contando como tempo de serviço aquele prestado no corpo de Bombeiros. No Rio nascemos eu e Alex, depois papai foi transferido para Campinas, onde nasceram Felippe, cujo nome foi uma homenagem ao meu avô materno, e Ivone, em homenagem a uma irmã querida de mamãe e minha madrinha..
Esse currículo de papai já mostra sua capacidade de trabalho e de aproveitar as oportunidades que lhe surgiram, tornando-o um homem muito crente em si e exigente dos outros. Comprou do Sr. Guilherme Erren uma casa no Castelo, um bairro então novo e tranqüilo, hoje valorizado e muito comercial. Pagou logo a hipoteca da casa que amava, fazendo nela sempre reformas, como tirando o murinho de tijolos e pondo uma grade bem bossa-nova marrom e branca, modificando os cômodos, comprando móveis novos, passando Synteko para acabar com as pulgas da casa e com o trabalho de encerá-la, assim até o fim da vida. Quando eu tinha oito anos foi transferido para o Segundo Batalhão de Fronteira, em Cáceres, no Pantanal mato-grossense, onde chegamos em uma viagem memorável tomando um trem leito até Bauru, seguindo em um avião até Corumbá e depois de barco até Cáceres.
Em Cáceres nasceu Tintim, o Siddhartha menor, enquanto estávamos instados ainda em uma pensão procurando casa para alugar. Conseguimos uma casa logo depois, que era uma casa geminada, com uma comunicação no meio da copa, em um arco. A casa, como todas as da região, muito quente, refrescava-se deixando apenas a sala e os quartos com quatro paredes, e a copa e a cozinha abertas para o quintal, cercadas por uma mureta. Não havia luz elétrica senão duas horas por dia, e á noite tínhamos lamparinas de querosene que deixavam uma marca preta na parede e juntava a maior coleção jamais vista de bichos voadores nas paredes, como a famosa cobra-cigarra, um inseto assustador à primeira vista e cercado de lendas. Nós, as crianças, gostamos muito do lugar, mas mamãe não, por causa do excessivo calor. Papai teve uma vida muito ativa ali, como dentista, criando também com freis holandeses, que ali tinham uma missão, um grande ofidiário para abastecer o Hospital São Luís de soro que trocavam no Butantã em São Paulo. Modernizou a farmácia do quartel e o consultório odontológico, jogava xadrez em um clube local aonde me levava também. às quatro saia do quartel e íamos todos para o rio tomar banho perto do porto, em uns bancos de areia. Papai dovidia seu tempo depois com o quartel, o consultório que fez em casa e a família. à noite tomávamos sorvete na praça, ou papai e mamãe saíam, deixando-nos com a empregada Cleonice, que nos contava histórias de assombração e tinha um namorado do qual engravidou e com o qual se casou. eu tinha um ordenança que me levava a pescar, andar de barco no rio Paraguai e mesmo me ajudar nas lições de casa ou brincar com as crianças enquanto mamãe cozinhava no enorme fogão de lenha seus doces e manjares em que era perita.
Quando voltamos, em 1964, no início do ano, a revolução de 64 se preparava e pude ver movimentos dela nos lugares em que passamos de carro, quando viajamos os 2000 quilômetros em um DKW verde que papai comprara, o segundo carro introduzido em Cáceres. De volta a Campinas, papai passou ainda algum tempo no Primeiro Batalhão de Carros de Combate Leves, onde rearrumou todo o atendimento odontológico e modernizou os consultórios, mas logo se aposentou, antes dos quarenta e cinco anos.
Uma característica de papai era seu auto-didatismo, uma marca das pessoas inteligentes da época dado o nosso baixo nível cultural. Papai sempre aperfeiçoou seu trabalho como dentista, deixando a música como um hobby, tornou-se grande especialista em dentaduras e depois em implantes, mas também fazia ortodontia, da qual não gostava pois não lhe rendia muito. Todos os parentes seus se afastaram com o tempo, embora ele recuperasse depois alguns laços, mas os parentes de mamãe visitavam-nos, em geral fazendo reparos odontológicos gratuitos com ele. Outro de seus hobbies era estudar religiões, levando a família por diversas igrejas até largar todas e se concentrar na parapsicologia. Tinha amigos da Física da Unicamp com os quais mantinha contato, e estudou treinamento autógeno e vôos astrais, saindo-se muito bem segundo seu testemunho. Estudava religião fazendo sua própria exegese pessoal, sem consultar teólogos ou saber grego ou latim. Mantinha enormes fichários onde colava referências bíblicas aos assuntos que o interessavam, sempre com minha prestimosa ajuda. Esse seu lado foi muito importante para me dar uma visão menos dogmática da religião e, nesse sentido, aprendi a pensar com mais liberdade com papai. Sempre me falava algo inesperado, sobre a ressurreição, por exemplo, checando e pondo tudo em questão.
Mais tarde saí de casa e papai se separou de mamãe. Teve muitas namoradas e afinal se casou com Terezinha, que afastou papai dos filhos aos poucos. Afastou-o também dos seus passatempos e inquietações. Sua velhice foi acompanhada por ela e por meu irmão Felippe, que manteve uma relação com ele até o fim. Quando ficou doente, com um câncer no fígado, não quis tratamento. fui rapidamente a Campinas despedir-me dele. A seu pedido li uns textos que estava alinhavando sobre educação. Tinha uma frustração com não ter criado como deveria os filhos. Quando passou mal e foi hospitalizado, estava com minhas irmãs Ivone e Mônica. Despediu-se delas, pediu para que se afastassem, concentrou-se e quietamente sua pressão baixou, seus batimentos cardíacos desaceleraram e morreu em grande quietude.
Igor
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