quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Baú 1

Aves

as aves se sustentam
na tarde aérea em que Jesus
ata minhas asas
embora eu seja também
um dos seus pobres
meu dharma é instável
e vou como todos morrer
minha inquietude me leva
a penhascos em plena rua
choro baldes de lágrima
que jamais secam
mas a parte irracional
 da minha alma me livra do mal
o que sentimos nem sempre
pode ser vivido
mas alivia e embriaga


                             Igor Zanoni 
Abelhinha


ela é uma abelhinha que achou uma flor
colheu seu mel mas não tem uma colméia
que o aceite
as abelha mais velhas são muito exigentes
com o mel das colméias
pois cuidam bem de suas importantes rainhas
mas essa abelhinha gostou tanto da flor
achou seu mel tão doce
o que ela vai fazer agora?


                             Para Isabela
Acertos

conversando com meu filho
ou cuidando do que vem
coleciono meus acertos
na vã esperança de não mais errar

                     Igor Zanoni
Aforismos

1

aos velhos só resta cantar em verso e prosa para os jovens a beleza miúda que desprezam no cotidiano

2

os antigos filósofos diziam que haviam nascido para contemplar o céu porque para eles os problemas humanos não se resolviam conversando com suas mulheres e seus escravos

3

as grandes regularidades são talvez menos cruciais para o destino de todos que as pequenas irregularidades mal compreendidas e mal toleradas

4

o amor e o ódio têm formas mal definidas e múltiplas e diante delas lutamos cada dia por nossa lucidez



                          Igor Zanoni
Agindo bem


quase sempre parece
que estamos agindo quase bem
fazendo o que é possível
o que é melhor para nós
ou para os outros
quase sempre lavamos as palavras
amor ou paciência ou carinho
com sabão em pó
e alvejante
torcemos secamos na grama
mas elas se parecem sempre
ou quase sempre
com panos de chão
restos velhos de outras roupas
outras palavras
feitas para outras ocasiões
e nos iramos se duvidam
somos o advogado do diabo
desta vida
o que é que você queria
que eu fizesse
você acha que eu penso o quê
que eu sou o quê
maldito coração
me alegro que tu sofras
e se a moda muda
compramos novas fantasias
e fazemos panos de chão
novos em folha


                  Igor Zanoni
Agostinho

1

a vontade faz com que a história
seja a um tempo memória
e nostalgia do futuro

2

até o final levarei em mim
meu joio e meu trigo
então serei peneirado
que eu alcance graça


                           Igor Zanoni
Água

aguaceiro
faróis tremeluzem
caos no transporte metropolitano
desejo de casa e sono
sob as marquises do mercadorama
taxistas e sem teto disputam espaço
a telefonista compra pão de queijo
e um potinho de iogurte
os motoboys entregam pizzas
porque há quem coma pizza em casa
quando chove
os estudantes se agarram às mochilas
o ar abafado enche
o pulmão comum da cidade
antes considerada do primeiro mundo
hoje em eleições anódinas
nas quais os mesmos vereadores
manterão as mesmas clientelas
a chuva não lava nenhuma sujeira
e acumula papel molhado
nas bocas de lobo
a cidade não precisa de chuva
a tarde anacrônica
é uma sopa indesejada
que não mata a fome de ninguém


                            Igor Zanoni
Ah

embora seja crucial crer
em si mesmo e na sua razão
mais importante é duvidar
de tudo isso
e encontrar outros caminhos
às vezes obscuros
mal-afamados
onde a fervorosa comunidade
dos hereges e dissidentes
não teme se por à parte
para perceber melhor o centro
criar ou recolher nestas tradições
outras lógicas
não se apegar tanto
à sua bem apessoada figura
pensar um minuto
se ela é mesmo sua
se vale a pena
ou é apenas um pequeno trecho
do pavimento do mundo
pode trazer um cálido
rubor juvenil a faces maduras
cansadas de decidir sobre o ser
e a existência
e de repente sentir-se
sem mais palavras
e dizer ah! então era isso!

                       Igor Zanoni

                                                

                           


sentimentos pensamentos
que estão aí
andam comigo todo o dia
ocultos como o diabo
em sua capa
surgem com a  nítidez dos sonhos
interrompem o sonho
para dizer :está aí, apanhe!
mas no quarto noturno
está só a cabeça
que devagar percebe
o que perde


                             Igor Zanoni
Alambique

as pernas sempre nos rios
peneirando ouro
nos serros frios das minas 
os escravos não tinham para aquecê-los
nada além da cálida aguardente
por muito tempo a civilização nacional
esteve amparada na mandioca
esse “pão da terra”
e no alambique
sem esquecer o generoso fumo
para os quais ainda hoje
há poucos substitutos disponíveis

                                 Igor Zanoni
Alegria

as pessoas estão cansadas de seus pecados
de ser consideradas pecadoras
mas é difícil não praticar tantos erros
não vê-los como erros
temos liberdade de agir de uma ou outra forma
mas falta compreensão sobre cada ação
por isso a luminosidade de cada ser existe
dentro de um arco de tolices
é preciso desmontar o arco
ser feliz
mas isso exige muito nesses tempos
em que ser livre paga sempre seu preço
ser feliz é uma conquista
não é intrínseco a cada um
ver sua íntima felicidade
possível
como ela está sempre aí


                                Igor Zanoni


Algo sobre você


tudo muda mas não você
exceto aquele dia
no qual ouviu uma canção
de Bob Dylan
que você tomou por uma
balada de Elton John
e que dizia que os tempos
estão mudando
mas você não sabe inglês
sacudiu um pouco o braço
que sustenta uma partezinha
da indústria paranaense
e ficou feliz sem saber
o que está mudando
eu também não sei bem
leio jornal converso pela cidade
vejo as pessoas
mas só sei bem que estou mudando
foram-se a vista os joelhos
a esperança
o bonde e o amor perdi
perdi a chance se ser feliz
como você é
suportando a vida sem precisar
de sabedoria especial
as crianças cresceram
não quero escrever tanto
um dia descobrirão que sou supérfluo
totalmente supérfluo
justamente por não esperar nada
somos pó que o vento leva
para cá e para lá
como dizem uma canção do Kansas
e Pedro em uma carta
que o espírito não leve esse pó
para os sem espírito
a vida é para os últimos
não para os primeiros



                            Igor Zanoni



Alma

a alma não é um congênito
apêndice do corpo
incômodo ou gentil
nem suas boas e más qualidades
vem de uma natural autenticidade
onde ela estaria? nos glóbulos brancos?
os sentimentos não nascem com o bebê
nem o bebê deixa de ser o tempo todo outro
não graças ao tempo
mas ao seu esforço se lhe parecer importante
o amor a compaixão a alegria a equanimidade
não estão à mão em algum recesso do ser
são aprendidos com doçura
com medo com arrependimento
com a decisão de mudar
que nem é tomada tão às claras
muitas vezes se muda depois se percebe quanto
o grande Drummond intitulou um livro
“Amar se aprende amando”
também o ódio mas muito mais importantemente
o amor


                              Igor Zanoni
Almoço

o cálido vozear das crianças
retine nas louças
sinos ao meio-dia


                                    Igor Zanoni
Altar

por que Jesus na cruz dos altares
se Ele venceu a morte
e está hoje não sabemos onde
mas tão claro na vida dos poucos
que ousaram descê-lo da cruz
ressuscitar com Ele para viver
essa vida conosco?

                    Igor Zanoni
Amar


amamos baseados em escassas noções
quando o amor é verdadeiro ?
mesmo que seja bem intencionado
e puro
quantas vezes é oblíquo
incerto escasso
amamos desamamos
mal sabemos e sofremos


                                 Igor Zanoni
Amigo de Infância

quando  reencontramos um amigo
de infância
temos apenas uma memória
edulcorada e falhada
do que foi esse amigo essa infância
e nós mesmos
é necessário travar relação
com uma outra pessoa
ligada à primeira apenas
por vagas referências comuns
e às vezes apenas de um
é antes travar relação
com alguém inteiramente novo
com quem temos cinco minutos
de conversa
depois mais nada exceto
se romanticamente temos o impulso
de resgatar o amigo a infância
nós mesmos
em um esforço difícil e ambíguo

                                 Igor Zanoni

Amigos

 
de toda festa
de toda porra
de todos com quem você fazia
planos e projetos
você guardou poucos
aos quais telefona de noite
não muito
cúmplices da vida
amigos amores deidades
não há distinção conceitual


                  Igor Zanoni





Amor

o amor é involuntário
pelo menos como uma fantasia
que se acalenta ou se abandona
um momento se ama
outro se esquece
exceto que se prende por laços
concretos e necessários
pode-se amar contra a vontade
amar pode ser um dever
um dever inescapável
amar pode ser por isso pura vontade

               Igor Zanoni


                  
Amores


meus poucos amores foram longos
e fiéis mas em que se traduz o amor?
amei sobretudo meus filhos
e hoje especialmente minha neta
mas os amores com minhas mulheres
foram exaustivos e mal coube neles
talvez por não ter sabido amadurecer
gosto muito de acompanhar o dia a dia de meus filhos
mas amar uma mulher é cansativo
implica em fazer viagens que não se quer
ser romântico quando é o caso
e quando não é o caso
gastar um tempão com política familiar
fingir que se está interessado em coisas
das quais nunca cogitamos
as mulheres em geral gostam de um para raios
adoram se abrigar
mas eu não sou um case de sucesso
gosto de esporte leitura música
tenho pouca paciência com o que
se convencionou chamar trabalho
e tudo que o envolve
amo meu bairro gosto dos amigos
e a primeira coisa que uma mulher faz
é censurar seus passeios e conversas
amo as religiões milenares
a conversa sem fim e sem resultados tangíveis
espera-se muito de um homem
 a essa expectativa toda elas chamam amor
e quando percebem que se enganam
vão embora
minha única qualidade para elas é ser carinhoso
o que o mundo não é
por isso me suportam tanto tempo
e depois me deixam para ensinar minha neta
a andar de bicicleta


                      Igor Zanoni
Angústia


num plano intuitivo e imediato
a angústia é a sensação
na vida pessoal e coletiva
de nunca poder vir à luz
como uma criança grande demais
para nascer
uma criança alegre e turbulenta
que quer comer maçãs
quer beijar suas primas
quer correr na rua com os cachorros
quer crescer com saúde
em uma casa e uma escola
que sejam um refúgio
mas também uma feliz passagem
para a vida madura 
na qual a insensatez inerente
a essa vida  não seja extorsiva
não torne um homem
uma criança assustada
sem meios para estar
no meio de sua vida



                               Igor Zanoni
Anna

se seu nome fosse Ana
poderíamos começar do início
e com sorte retornar
por caminho semelhante
mas chamando-se Anna
você se converteu num ser bifronte
bipolar
 antípoda em si mesma
geodésicas do Oriente e Ocidente
do Ártico e Antártico
do sol e da lua
(que não seja cheia)
de Igor e de Anna


                                Igor Zanoni
Ano Novo

o Natal chegou embrulhado
em palha como um vinho precioso
que cada um apreciou como pôde
mas o Ano Novo veio envolto
em jornais e expectativas
já não falando
como há uma semana atrás
em esperança
mas especulando com más informações
sobre a grande crise do capital
o prosseguimento do banho de sangue
na faixa de Gaza
e as políticas dos grandes estados
para salvar as fábricas de carros
é claro o presidente deu novas
declarações impensadas
para que confiemos na vida
e abramos novos crediários
o Banco Central mantém os juros
com medo da inflação
e sustenta a elite com verbas públicas
o Ano Novo será segundo parece
como qualquer ano
e os jornais poderiam ser feitos
com uma máquina xerox
e os jornais do Ano Velho


                                Igor Zanoni

Anteu

assim me descreveram
como um ser impulsivo preso
ao corpo à energia e à mente
preso à sua força
à minha força que parece infinita
como ser terrestre pedestre
que vence na vida
e a Terra toda protege
passando sua força
 pela planta bem plantada dos pés
que Hércules não me levante!


                               Igor Zanoni

Antibióticos

vacina anti-catarral Pinheiro
injeção de eucaptine
chumaços de azul de metileno
comprimidos de Piramidon
hoje foram substituídos
nas minhas crônicas dores de garganta
por antibióticos caríssimos
de última geração
a cada três meses
no orçamento


                             Igor Zanoni
Antiguidades Campineiras


quando vovô se decepcionava com alguma coisa
dizia: ih! mixou o carbureto!
já quando buscava pão fresco sempre comia
os cotovelos do pão
mas a maior surpresa ocorreu numas férias
quando tio Pedro jogou bola comigo
e humilhou minhas pretensões de boleiro
mas é claro o futebol carioca é mais arte
e menos competição
e eu só estava brincando


                          Igor Zanoni
Apaixonados

nós estamos bem...
às vezes mais apaixonados
às vezes menos
de novo mais apaixonados
e assim vamos...

                       Igor Zanoni
                    
Aproximações

não acredito em amor
senão como aproximações sucessivas
e infinitesimais
testando o limite das relações
vistas por ledo engano
como saudáveis e razoáveis
quando são apenas carências
e adoecimentos
lucros e perdas
na vida que já perdemos
não acredito em amor
senão como o tecido
na pétala
do orvalho que a veste
de água e luz
como a uma princesa
passeando nos meus olhos

                             Igor Zanoni
Aquário

é trágico o peixinho
aborrecido no fundo do aquário
lembra folhas de outono
cansadas da vida
no esplendor das calçadas
que as donas de casa varrem
mas que pode querer um peixe
em seu palácio de água fria
alimentado com ração
tão sósinho
sem uma companhia
aliás dizem que este briga
se o colocarmos com outro igual
em que pensa seu frágil
sistema nervoso?
somente no essencial
para não gastar neurônios
somente em si
se está bem em linha horizontal
se está protegido
se tudo está bem
e as estações mudam em redor
do peixinho


                          Igor Zanoni
Aquisitiva

ela amassava por muito tempo
papéis de bala apanhados no chão
depois os alisava no braço
sentido sua cor sua textura
provava o café concentrada
como se nunca houvesse
tomado café antes
não aquele café naquele bar
ia andando pelo mundo
como que dando-se inteira a ele
era uma pessoa que amava
os materiais do mundo
uma pessoa sensível
aquisitiva

                                       Igor Zanoni
Arco


todo ser humano deve se considerar
um arco entre sua rua e o universo
um arco da promessa
que os humanos carregam intrínsecamente
desde o nascer da vida na terra
e que muitos levaram adiante
como entenderam e nas suas condições
mas com honra e amor
os que se deixarem à margem
desse trajeto por não poderem cumprí-lo
merecem compaixão
os que se furtam por covardia
e interesse próprio
também tem caminhos para recomeçar
mas sua tarefa é mais difícil
e exige uma magnífica coragem



                                  Igor Zanoni
Argentinos


com seu senso trágico
não há assunto em que os argentinos
não ponham todo seu vigor
seja a política a educação os livros
ou o estado geral das almas
mas intimamente românticos
escolhem para suas deidades
nomes como Evita
Estelita ou Luz Marina
e os acariciam ao som de bandoneons
na luz frágil das ruas noturnas
em acalantos doridos
nos ombros das companheiras


                              Igor Zanoni
Armário

há pessoas que passam os dias
com a cabeça em um armário
andando sem parar
como em um estranho aquário
buscando o que perderam
na premente infância
analizando gravatas e esconderijos
como se fosse indispensável
como se não fosse possível antes
reparar em um Ah
deixe disso não é por aí
por que tudo teria
tamanha consistência?


                           Igor Zanoni
As Garotas da Tim


enquanto as garotas da Tim
atendem os telefonemas
seus cabelos se espalham
sobre suas exíguas mesas
misturam-se às lágrimas
das dores íntimas
do excesso de trabalho
da tendinite
dos boletos vencidos de crediário
da pressão da fila de candidatos
para que não mude
o tempo excessivo de trabalho
a dor dos nervos inflamados
os olhos que porejam
lágrimas que se misturam
aos cabelos que caem
entre os boletos vencidos
do crediário
ao qual muitos desejariam
ter acesso para comprar
lingerie nas Pernambucanas
e para isso a Tim se apresenta
como um portal do sucesso
o futuro dourado
que liga todas as bocas e ouvidos
entre ringtones e mensagens
de amor encontros
dourados como seus celulares
para cuja manutenção
há vinte e quatro horas por dia
uma garota da Tim
com suas lágrimas seus cabelos
caindo entre boletos boletos




                                           Igor Zanoni
Às vezes

às vezes sem graça
às vezes sem sal
às vezes sem ar
às vezes sem chão
às vezes só sem dinheiro

                 Igor Zanoni
Assassinato

se eu der muita comida
ao meu peixinho azul
ele vai ficar bem gordinho
e não vai levantar mais
do fundo do aquário


                            Igor Zanoni

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