quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A cultura, o bem e o mal e o superego


A cultura, o bem e o mal e o superego

Discuto brevemente aqui uma passagem do livro de Bruno Bettelheim “Uma Vida para seu filho”,  lançado no Brasil pela campus em 1987 e que se tornou uma referência para o estudo das relações primeiras entre pais que querem ser suficientemente bons no desenvolvimento da personalidade de seus  filhos em seus primeiros anos de vida. A passagem consta de dois parágrafos a seguir transcritos, tratando da formação do superego em sua relação com a cultura cujo cerne é visto como a noção de bem e mal. Enquanto observamos o progresso da atividade agressiva em nosso filho, podemos gradualmente discernir um progresso do desenvolvimento da brincadeira livre, que permite a expressão e satisfação do id (o tiroteio não estruturado em que vale tudo, no qual a agressividade é livremente descarregada), para um jogo mais estruturado em que está não a mera descarga de agressividade, mas uma integração maior- a ascendência do bem sobre o mal- é o objetivo. Assim, nós destruímos eles, os gregos derrotam os patifes troianos, os cavaleiros cristãos destroem os infiéis, os policiais encurralam os ladrões,os cowboys esmagam os índios selvagens. “Como adultos objetivos, devemos saber que a cultura troiana era talvez superior à dos gregos da idade do bronze, ou que a causa dos índios era pelo menos tão boa quanto a dos cowboys. Mas essa objetividade é o produto final de uma luta moral e intelectual prolongada, um longo processo de depuração, moderação e refinamento dad emoções.Para a criança, essa objetividade não pode ser fácil ou rapidamente alcançada, porque as emoções , e não o intelecto, estão no controle durante os primeiros anos.Nossas crianças querem acreditar que o bem vence, e precisam acreditar, para seu própro bem-estar, que o bem vence,e precisam acreditar, para seu próprio bem-estar, de forma a se tornar pessoas boas.repetir o conflito eterno entre o bem eo mal numa forma primitiva, compreensível para elas, e ver que o bem triunfa sobre o mal serve á humanidade em desenvolvimento”(p.242).
Esta passagem me parece problemática por vários motivos. Em primeiro lugar, pelos exemplos históricos escolhidos. Houve para Homero na Ilíada a percepção de que os gregos foram moralmente superiores aos troianos e por isso puderam destruir Tróia? A causa dos índios foi depreciada em um processo de conquista cruel de seu território dizimando populações inferiorizadas em termos tecnológicos para a guerra. Como sabemos, Custer foi o “pequeno grande homem”. Os cavaleiros cristãos moveram um genocídio durante as Cruzadas, como mostra Tarik Ali, por exemplo. É possível que o conceito de bem venha deses erros crassos de avaliação histórica? Eles fazem parte de uma ideologia ocidental da história, que continua nos filmes violentos americanos, ou nos filmes em que só os americanos conseguem deter com heroísmo inaudito as forças irracionais do mal. Essa ideologia continua sendo passada para adolescentes e jovens, de modo que é difícil ver quando poderão ser reelaboradas, ou, quando o foram, se subsiste algo além de decepção com tudo que acreditaram. Penso que as idéias de bem e mal podem ser explicadas de outra forma, através dos mass-media e dos bancos escolares. A história dos índios pode ser recolocada, a das Cruzadas e muitas outras também não criando nas crianças um jogo de contraste entre preto e preto, e descobrir que a vida é colorida, pode ser vista através das contas de vidro que escolhemos, para lembrar “O Jogo das Contas de vidro de Hermann Hesse.” Essa é uma prerrogativa humana desde a infãncia, escolher seus valores morais e pessoais.  É claro que a ideologia do poder do Império deseja uniformidade, e esta começa com a formação de um superego cruel. Ma é necessário domar assim os instintos do id? E realmente são domados ou exponenciados? Como apontou em palestra recente o lama Padma Samten em Curitiba, confunde-se aqui uma cultura, a nossa cultura dominante nos últimos séculos, com o ideal de civilização e com o superego bem estruturado e funcional. Sempre foi assim? É assim que os indígenas socializam seus filhos, ou que as epopéias indianas retratam a difícil luta entre bem e mal?
Por outro lado, não precisamos assentar nossa cultura em enganosas idéias e ideais de bem e mal. Podemos assentá-la, por exemplo, na idéia budista de impermanência, na qual todas as nossas escolhas pessoais, por melhor que sejam, estão fadadas a desaparecer. Mesmo o maior amor não dura, no limite porque um dos parceiros vai morrer um dia, e depois o outro. Outra idéia importante é que tudo que vivemos são construções que levam a uma vida insatisfatória, conflitiva, no samsara, quando repetimos ciclicamente experiências que levam ao sofrimento. Esse sofrimento só pode ter fim saindo do samsara, e do ciclo de nascimento e morte, o que pressupõe liberdade diante das escolhas feitas, e a mudança de personagens assumidos em termos de compaixão, amor, alegria, paz, paciência, esforço constante, concentração e sabedoria. Isso pode ser levado ás crianças desde seus primeiros anos. O Tibete viveu longos séculos isolados do mundo cultivando uma cultura própria de paz e responsabilidade comum, fortalecida pelo budismo mahayana. A nossa vida é um teatro, mas podemos deixar de atuar e sair do palco, para a vida mais plena e mais real, de toda forma mais íntima e condizente com uma natureza humana que pode ser despertada. Aí não há essa dualidade entre bem e mal, a idéia de pecado se perde em prol de uma liberdade que conduz a um centramento em relações marcadas por valores pela compaixão, a possibilidade de ver o outro em sua própria liberdade.
A psicanálise não se opõe tanto ao budismo ou outras escolas, como o taoísmo. Seu fulcro, o da psicanálise, é a transformação das relações agressivas e do predomínio do id para o ego estruturado e razoável, auxiliado pelos ideais que o superego represente. Mas a meu ver possui uma matriz conservadora e moralista, que pode ser superada, inclusive como sempre foi mostrado por autores como Marcuse e muitos outros. O Buda não foi um mestre de moral.  Ele ensinou a liberdade através do reconhecimento da verdadeira natureza, perdida no jogo do mundo. Assim como o próprio Cristo também não pregou uma ética ou uma moral, mas o evangelho de uma iminência do amor sobre todas as relações na terra dada a inauguração do Reino de Deus.
Nossa cultura está findando num caos econômico, social, ecológico. Todas as tentativas para salvá-la dependem de um ciclo de dependência e de aumento do grau de destruição da memória genética e cultural dos seres vivos. É hora de ultrapassar essa cultura.

                                                                                                                          Igor

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