Natal antigo
Ainda era criança quando morreu Péricles, o inesquecível criador do Amigo da Onça, sempre na última página de O Cruzeiro, que era a primeira que líamos, toda semana Na verdade ele se matou, pois apesar de seu humor corrosivo, era uma pessoa capaz de se sentir solitária em um Natal, quando todos em volta pareciam ter realizado o mito da criança e da família feliz. Mudou o Natal ou mudei eu? Pessoalmente, passei Natais ótimos e péssimos, e passá-los sozinhos é mesmo arriscado. Mas o envolvente clima de dezembro, quando as férias coincidiam com viagens ao Rio, em casa de meus tios- como o também inesquecível tio Pedro, bancário do finado banco Boa Vista, comunista e torcedor do América- ou com a visita de meus avos maternos, sempre esperada por mim. Minha avó era muito bondosa, mas gostava continuamente de me evangelizar e perguntar se eu sabia de cor tal ou qual versículo da Bíblia. Eu não era tão mal nisso, pois uma vez ganhei um concurso bíblico na igreja, o que me valeu uma coleção chamada Enciclopédia Curiosa, que falava exatamente de mil curiosidades inúteis para uma criança, mas engraçadas. Na época a cultura inútil era muito cultivada. Mas eu preferia meu avô, o vô Felippe, que havia sido policial federal- tinha um emblema oculto no forro do paletó- e também campeão brasileiro de bilhar francês, jogado com três bolas com as quais se manejava um taco preciso numa mesa sem caçapas. Fazia jogos de exibição em clubes chiques, e em um bilhar famoso em Campinas tinha amigos a um passo do gangsterismo. Eu o acompanhava sempre, pois embora também evangélico, meu avô gostava de relembrar os velhos tempos, e se tornou para mim com isso uma pessoa muito mais divertida que meu pai. Na noite de Natal, ou em ocasiões como meu aniversário, cantava velhos hinos do Cantor Cristão, o ainda usado hinário batista. Sua voz era a de um velho, um pouco grossa pelo cigarro e meio rachada, mas cantava com sentimento e beleza. Papai era formado na Escola Nacional, era maestro e tocava clarinete, mas o Natal musicalmente era do vovô. Estou falando da minha família, que mudou muito, e da qual hoje sou acho o mais velho - pelo menos mais velho entre meus irmãos. Mas à parte o amor por meus irmãos, que vivem um pouco distantes e vejo infelizmente pouco, ganhei tardiamente, quando minha vida tinha perdido todo limo de tanto rolar,a família de minha mulher Rosana, seu filho –nosso filho-Mateus Passo o Natal com a família que formei com meus filhos, noras e candidatas a nora, minha neta, e com a família toda da Rosana , tradicional, muito religiosa e muito acolhedora também. Todos os anos fazemos uma festa animada em cooperação. Cultivar amigos e familiares é um dom, não algo automático ou que todos façam. Muitas vezes sem isso estaríamos sós, perigosamente sós. Do Natal a televisão e os jornais registram o lento crescimento das vendas e do emprego, as perspectivas de investimento estrangeiro para o próximo ano, as pesquisas eleitorais do próximo ano. Na Igreja Batista que minha nora Alessandra freqüenta, assisto no final do ano o clima comovido da Cantata e das orações, e o pastor sempre reitera seu pedido de que entreguemos o coração a Jesus. Na Igreja Católica, da família da minha mulher, o clima é menos emocional, talvez porque a igreja ainda viva um clima muito confiante e pouco ecumênico, da única verdadeira representante de Deus na terra, esta terra que está derretendo enquanto isso. Mas o culto é concorrido, canta-se bastante, batem-se palmas, lembrando que o Natal a festa é para Cristo. Como cantava vovõ, “ um menino nos nasce-e-u...” . Às vezes estamos mais animados, noutras menos, mas as crianças correm pela casa, ganham presentes, os vizinhos se reúnem nas ruas, soltam-se fogos, enfim, os Natais mudam conosco, e é importante que não mudemos muito, não demais, senão a graça acaba.
Igor
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