quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Baú 2

Curitiba

doces damas-da-noite
o jardim abrigo para beijos
e confidências
ou um cigarro só
o vento leva a nossa poeira
encosta-a aqui e ali
nosso mundo é imenso
como o céu sem nuvens
e nossos passos
às vezes se perdem
Curitiba! Curitiba!
quantas vezes te quis reunir
em meus braços
na noite que nos torna
generosos

                                 Igor Zanoni
Bailarina

sua figurinha magra e silente
suas faces brancas de louça
com um tímido rubor de rouge
seu movimento inerente à bailarina
girando em um Clair de Lune
de caixinha de música
eterna extática sozinha
sonho de seda e anáguas
o pescoço coberto por uma pele
de raposinha
a palavra que não vem
o olhar que se demora
por que?
você toda diz do que é seu
nunca do que é tão meu
nunca ... nunca...
clara lua pela metade


                        Igor Zanoni

                             

                     
Baldios

com o fim dos terrenos baldios
foram-se as peladas de domingo
entre os times dos bairros próximos
os bichos que se aninhavam
na verdura das margens
entre os talos açucarados da erva-doce
e que morriam jogando ao céu
sua carniça para o vôo circular
dos urubus
nas ruas mornas já não se reúnem
os meninos a um passo
da amizade e da zanga
e que enchiam as tardes  ocas
com emocionantes partidas de bets
raramente interrompidas
por um automóvel malvisto
essa infância já não existe
ao menos em Campinas
como não existem mais
tantas coisas fundamentais
à boa vida e à vida boa


                                             Igor Zanoni
Bananas

lamentável a morte lenta
de bananas em uma fruteira
sua carne amolecida
sua casca escura
 e manchas de mofo
o paladar se retrai
as drosófilas se assanham
no banquete fúnebre
triste o cheiro enjoado
que enche toda a cozinha
até a morte vegetal
de bananas antes tão convidativas
cria um mal estar
um sentimento de recusa
tão natural em quem vive


                                         Igor Zanoni
Beijo


um beijo que não signifique
desejo e apego
mas “uma parte dos meus gestos
mais delicados como esse beijo
vão sempre consigo”
uma parte das minhas mais delicadas
aspirações
mas não de minhas enormes carências
essas a vida encaminhará ou não
mas não podem sobrecarregar você
tantas vezes desde sempre
chorei por não saber conservar
o perdido
mas continuarei a perder até perder-me
um crocodilo com um relógio
perseguindo-me
embora seja necessário que venha
o inverno
choramos as rosas
que meu beijo seja uma pétala
guardada em seu livro preferido
até que também o livro passe
e suas mãos passem



                             Igor Zanoni
Benedetti

nós escrevemos antes de falar
e falamos antes de viver
e desvivendo nos vamos desfalando
desescrevendo as palavras que sabíamos
não sei precisar há quanto tempo


                                  Igor Zanoni
Besouro

1

no verão os besouros se atiram no quarto
como bólidos pré-históricos
e se estatelam contra a parede
caindo no chão de patinhas para cima
esperando auxílio ou o fim prematuro
de sua vida brilhante e bem adaptada

2

uns põe gelo no local
outros compressas com rodelas de limão
uns rezam ou se benzem
outros procuram o posto de saúde
mas todo mundo faz alguma coisa

3

no dia do temporal queimaram
minha máquina de lavar
o chuveiro e a lâmpada do quarto
tive insônia e me senti
muito perdido



                                 Igor Zanoni
                          
Bilhões

muitas coisas já
não são para mim
não sei para quem são
o reveillon na praia no Rio
feriados de fim de ano
nas estradas cheias
outras nunca foram nem serão
a ajuda financeira a bancos
e empresas automobilísticas
quando ouço falar
em bilhões e trilhões
não sei bem quanto é
de onde sai
mas eu sou uma pessoa
sem a menor importância


                                                                Igor  Zanoni

Bob Dylan


quando eu era jovem
gostava de ouvir Bob Dylan
não sabia bem de que se tratava
mas amava como hoje ainda amo
e não sei muito bem
embora tenha quase tudo
que ele cantou desde o começo
no meu micro
você baixa centenas de canções
em uma noite mas
acumular canções é não ouvi-las
melhor que venham aos poucos
em certos momentos
os momentos nos quais seu coração
foge pela boca
ligando você a suas circunstâncias
Bob Dylan é um arquétipo
sonho com ele
que é um outro trecho de mim
seu significado é velado
mas tudo é íntimo teatro
e vivo atuado


                                   Igor Zanoni
Bolsos  Vazios



não é que minhas palavras
escasseiem nos bolsos
mas que valem cada vez menos
foi-se o tempo dos poetas
de quando os advogados
delineavam as perspectivas à frente
há ainda as palavras
poderosas como ordens de compra
de transferência de patrimônio
ordens de matar
e de desfazer a parceria
mas as minhas são palavras
que embalavam os românticos
não dizem mais nada
sequer para mim
exceto para tentar um  balanço
e perspectivas
ao gosto dos antigos revolucionários
em uma época sem passado
e sem futuro
pois estes são filhos das revoluções


                            Igor Zanoni



                                  
Buda

1

assentado em pedra sabão
à minha frente na estante
o Buda Amitaba semimostra
a paz das pedras e dos Budas

2

com seus narizes mais habilidosos
que dedos e mãos treinados
os elefantes bem podem tomar chá
numa loja de louças
deixando o corpo fora das janelas



                                   Igor Zanoni
Busca

Ele também fala no silêncio
e no tédio
não se pense que não acha
aquele que busca
muitas vezes a busca demora
a vida toda
e no instante final se acende
o olho do futuro
 a vida se transforma
e reacende
pensamos : Ah! então era isso!


                      Igor Zanoni


                   
Cachorros

                                                     Para Selma
  
apenas os cachorros na rua
tem essa serena possibilidade de farejar
mutuamente seus corpos
e a rua e o improvável alimento
apenas eles têm o dom divino
de ver claro com poucas nuances
com a ávida certeza dos bichos
por isso quase não têm lugar livre
e caminham até serem vez por outra
atropelados
e unívocos caminham sobre o chão
como diletos filhos do paraíso
não são assim os homens nunca serão
caminham aflitos entre o que desconhecem
refugiam-se no corpo e ele não basta
buscam o céu mas há muito
o céu se retirou
tecem entre suas mãos dadas
indicações provisórias
mas essa solidariedade se choca
com suas marcas cármicas
que torna precários os laços de amor
e confiança
e logo se entregam aos conflitos
que parecem tão promissores
não sei quem sou
mas o que não sou é chama
e arde sem sossego



                             Igor Zanoni
Cacos

o dia são cacos
sobre os quais se estende
a gramática do trabalho
os diversos compêndios que disputam a razão
bem como o nada final
as angústias que não vão embora
o rio imemorial que corta o bairro
levando lixo desde uma nascente pura
que eu não atinjo com os olhos
eu sou um homem valente
gostaria de explorar as nascentes
do rio Atuba
espero o ônibus na tarde
a vida corre mas não tem sentido
isso foi dito por inúmeros tangos
por isso Tales olhou para o  céu
eu olho o poço como Onetti
morro de cacos indizíveis
projetos vãos perde-se a vida com eles
nunca foi desigual
nem a infância mas houve
 momentos  que os sonhos tocam
entrecortados de amor
do que parecia amor
e se dispersam as nuvens
entre os urubus
                                                                                             


                              Igor Zanoni
Café


depois de sofrer os maltratos
de um dia de trabalho
e a zombaria de quem se julga
meu amigo
o melhor é olhar com calma
a praça Santos Andrade
tomando um capuccino com amaretto
mexendo a xícara
com um pauzinho de canela
com a pontinha enrolada
em papel laminhado
pagando só quatro reais
 e sessenta centavos



                           Igor Zanoni

Calar


há tanto por não dizer
que causa pasmo quanto se diz
em especial porque calar
é com freqüência  mais fundamental
que dizer a sós ou aos ventos
inclusive porque não se sabe bem
nem o que se diz nem o que se cala
ligamo-nos a certas tradições
dizemos o que parece razoável
não coisas que pareçam insanas
mas isto é um ardil
pois muitas vezes apenas nos contemos
outras nem tanto
eu gostaria de ser mais comedido
menos vaidoso
de não precisar escrever esses poemas
mas infelizmente preciso
ocultando e revelando
mostro o resto do meu juízo

                             Igor Zanoni
Caliça

aos poucos a casa se destelha
as crianças lambem
a cal das paredes
cobras fazem ninho no forno
e é preciso saber onde pisa
para entrar por uma porta
e sair por outra
o jardim se torna amazônico
e os passantes mudam de calçada
quando vêem a ruína
bem dizia meu pai
a vida é uma luta contra
 a entropia
e só se pode adiar a derrota
enquanto se é novo
e tem bons dentes


                                 Igor Zanoni
Cálido

o amor é também cálido e acolhedor
veja os pássaros nos ninhos
veja um casal de ginasianos
mas não é só isso

                                 Igor Zanoni
Calma

                                                                      Para Rosana

às vezes é preciso ter
uma calma infinita
encostar o corpo no muro
sem pressa
sem esperar nada
fumar um cigarro
sem começar novos planos
sem dar balanços
quando se sente frágil
sem ligar para o amigo
sem abrir um novo livro
sem fazer prece alguma
sem usar a internet
ou gastar créditos do celular
sem se emocionar
com a beleza do céu e do mar
sem querer se matar
apenas fumar um cigarro
o melhor agora era que o mundo
se acabasse nesse muro
mas não vai acabar
nada aliás vai acabar
é imortal a curta vida humana
com suas doces alegrias
e bizarras situações
a imortalidade é certa
mas seu conteúdo precisa
ser elaborado
como dizem os psicólogos
mas agora não elabore nada
nem tome decisões
dê outra tragada
se estiver cansado sente
pouse a mão no cimento
 úmido do pátio
logo uma criança jogará
 para você uma bola
não precisa ter medo
é só uma companhia
jogue tranquilo
volte ao tempo sem memória
 da infância no qual as carências
e os desejos
tinham expressões menos rígidas
solte seu corpo
respire
o mundo não é muito bom
mas seu corpo
embora às vezes adoeça
é um belo corpo
um excelente produto da evolução
de noite adormeça
de manhã acorde
compre pão leite coma
mastigue davagar
a vida começa nos dentes
marque um dentista
cuide-se



                                       Igor Zanoni
Caminho

o caminho não pode ser dito
nem se pode dizer que se está
no caminho
o corpo que o vazio e a luminosidade
assumiram no Siddhatha Gautama
tem os limites da linguagem dos seres
por isso sua fala caminha
 no fio de uma navalha
não há um dharma que pode ser dito
e ofertado pois ele é vivo
há um dharma entretanto
como há um Buda
dizer o oposto seria cometer heresia
construindo e desconstruindo
o que diz o Abençoado
caminha no limite do que
 pode ser dito e do que não pode


                                Igor Zanoni
Campanários

fúnebres pássaros espiam
pelo olho oco do olvido
o silvo da grama
cresce entre ossos
do que foi para sempre
nada ninguém
mas a paisagem natural
retoma suas revoluções cegas
sinos silenciam
eucaristias emudecem
seus símbolos cedem
ao que não pode ser convenção
espectadores tombam
na manhã de sábado
deitam-se nas plácidas colinas
de pinheiros e campanários
mas amanhã não haverá domingo
de missas e ressurreições


                                 Igor Zanoni



               
Campo santo



                                                                                                        Para Anna
1

eu gostaria de falar
mas você já não está
está antes em suas viagens
infindas iguais
sem mandar uma carta
gostaria de um cartão postal
da paisagem que você vê
com um bilhete atrás:
estou ótima vi museus
jantei bem tomei um ótimo vinho
quem sabe você um dia
voltasse

2

pessoas do coração
partem para destinos ignorados
nunca mais
os pais amigos de décadas
irmãos amores mestres
nem mais uma palavra
nosso coração é um campo santo
de adeuses ditos e não ditos


                                       Igor Zanoni  
Canções

não é possível viver como as canções
na própria intimidade
as dos outros se espia com prazer
ou paciência
mas a nossa que abismo
é preciso exteriorizar o mundo
torná-lo manejável
nós mais ariscos que um peixe
mas as canções são feitas para os outros
ninguém vive como sua canção
só os desesperados e suicidas em potencial


                                              Igor Zanoni
Carinho

                                Para Rosana

o carinho é indispensável
mas muito difícil de ser dado
e de ser recebido
é difícil inclusive saber
quando se está recebendo carinho
quando se está construindo
a casa da vida
há muitas lealdades inclusas
em cada alma
é difícil pensar e caminhar
melhor deixar como está
viver a cômoda e insatisfatória
rotina de cada dia
suportar o nervosismo às vezes
traz uma aura de coragem
e de santidade
e não de covardia e indecisão
dar carinho também é difícil
julga-se estar dando sem condições
esse carinho
mas há cláusulas minúsculas
 no contrato
que nenhum dos dois pode ler
tudo é muito difícil
e a vida transcorre um pouco
avarenta e obscura



                              Igor Zanoni
Carma

                                                                    Para Áurea Kock

se os deuses exigem a compensação
de todos os desequilíbrios
e aí nasce a tragédia dos seres humanos
que a vida é vivida por eles contra si
sofrer é o sentimento dos atos de cada um
não em si salvador
mas prenúncio de compreensão
de escolhas e mudanças
por isso não só sofrer é carma
mas também a alegria efêmera


                                  Igor Zanoni
Carne

1

por causa de minha afinidade com mamãe
sempre me interessei pela cozinha
tinha um gosto apurado
preferia como carne o contra-filé sem osso
mas papai só comprava filé mignon
que o açougueiro deixava já reservado
eu achava caro e insosso
um exemplo bobo de status e sofisticação
mas era bom bem grelhado
com batata frita e arroz soltinho
e pudim de leite como sobremesa


2

não me considero um gênio
mas fico pasmo quando vejo
tantas coisas fugirem da mente
há coisas que nem sei se fiz ou não
nisso me pareço com mamãe
que não conseguia fazer
uma série de coisas que queria
como melhorar o inglês
mas era ótima em corte e costura
e uma cozinheira de deixar a gente
lambendo os beiços



                         Igor Zanoni

                     

Cartas

eu e meus avós nos correspondíamos
cerca de uma vez por mês
as cartas começavam ritualmente
“Querido Vovô, a benção, espero que esta o encontre
com muita saúde, e à Vovó também...”
ou “Querido netinho, Deus te abençoe,
eu ando meio bichofre mas quando estiver com você
sei que vou melhorar...”
nas férias nos visitávamos, através do delicioso
trem Pullman ou do ônibus da Cometa que fazia
Campinas-Rio parando nos novos restaurantes da estrada
não usávamos nem tínhamos telefone
raramente mandava um telegrama sem importância
que o importante era mandar um telegrama
contando espaços como letras e não usando vírgulas
ou pontos no máximo VG ou PT
nunca senti falta de meus avós
o tempo que passávamos próximos era amplo e delicioso
o tempo longe cheio de uma saudosa presença
nunca de uma ausência
tudo era mais demorado
a vida era quase infinita
ainda hoje meus avós estão todo tempo ao meu lado


                             Igor Zanoni
Casa

pintar as paredes
trocar as cortinas
tampar os buracos
consertar os vidros
pode dar a falsa impressão
de que estamos consertando
nossas próprias fendas
e furos

                      Igor Zanoni
Casal

1

em um casal tudo se sabe
assim como em uma casa silenciosa
se ouvem todos os ruídos

2

a vida não é rigorosa
o coração é incerto
temos um murmurar que não cessa
mas nenhum bom motivo de fato

3

em uma alma muitas almas se aninham
como em dona ratazana
muitas crias em suas tetinhas


                                  Igor Zanoni
Casas

por muito tempo acordava subitamente
confuso por não saber em que casa
daquelas em que vivi estava
ou onde ficava a porta do quarto
quem me acompanhava
quem estava ao meu lado na cama
ficava muitos minutos girando o dial
da minha cabeça procurando
procurando
até cair no cotidiano banal
tudo de importante passou
e não tenho como recuperar
em que casa estou em que vida
essa questão é crucial



                                    Igor Zanoni
Causas e Conseqüências


você aprende que tudo nasce
segundo suas causas e conseqüências
e que essa compreensão permite
um espaço de liberdade
mas sem desejar
e já desejando
procura instintivamente
as causas e conseqüências adequadas
para que frutifique
aquele carma



                                    Igor Zanoni
Celebração

não apenas os ancestrais dos gregos
celebravam sua vida e seus feitos
em uma história da qual se guardam
poemas e nostalgia de um paraíso
todos os povos em sua infância
devem ter vivido entre seus deuses
e bebido em suas taças
seu prazer e sua coragem
disto guardamos vestígios
na memória genética
quando nos soltamos não importa
sabermos para onde
entre amigos e amores
bêbados não de um si mesmo
mas de um desconhecimento
cujos limites são a pele suave
o riso franco
as minúcias de tudo que é bom
por que o mal não nasce aí


                            Igor Zanoni
Celebrar


para todos os que sentiram nisto um problema
assim como para os que não puderam sentir
compreender o que a vida coloca diante
foi sempre o maior problema humano
extrair dessa compreensão um dever
e uma sabedoria de viver plena
explica o compromisso tão antigo
do pensamento com a razão
com os deuses inefáveis
e com os outros homens
capazes de honrar compromissos
em tempo mais recuado
quando os deuses andavam conosco
esses problemas não se colocavam
porque não se colocava a questão
do sentido da vida e da morte
ou de qualquer transcendência
e nada se punha diante
mas por inteiro sem dividir
ou criar expectativas e temores
esse tempo pleno mal pode ser
lembrado ou designado
e a vida era um chamado à celebração



                        Igor Zanoni






Céus

nunca esquecerei
no céu alto de Campinas
os pontos negros dos urubus
traçando espirais na tarde quente
vigiando a carniça dos bichos
mortos nos terrenos baldios
a amplidão dos céus alargava
minha vida infantil
a cidade tinha entre seus caminhos
imensos planos de terra
e o globo da atmosfera
ali convivíamos todos
os elementos naturais
a flora e a fauna
tudo era de uma crua naturalidade
inclusive a beleza
da minha vida


                         Igor Zanoni
Chama

eu busco a paz como quem tem
os cabelos em chama
 busco um caminho que me conduza
a casa
mas que não tem mapa
nem pode ser chamado de caminho
meus pés são lentos para a minha procura
mas na verdade onde estou
não há nem como parar
nem como continuar



                       Igor Zanoni



                                            

Chão

a altura é para os pássaros
como a profundidade para os peixes
para o poeta basta o nível desta rua
desta cidade
e o nível dos seus olhos
este é o seu chão


                                    Igor Zanoni
Chega


chega de falar do amor
o que ele é pouco e brevemente
exigir que o desejo construa
mais do que a si mesmo
breve e sem perguntas
lembrar o que houve
às vezes e nem sempre os dois
listar suas possibilidades perdidas
lamentar sua diminuta estatura
examinar todas as suas faltas
como em um interrogatório
no qual só há vítimas
e algozes de si mesmo
um dia o amor passará
meu corpo meu eu
lembrará para sempre
o quanto fui seu
mas agora chega
mesmo a dor dos árduos sentimentos
 cansa  e se torna banal


                                     Igor Zanoni 
Chorinho
 
 
 
o chorinho é uma forma musical
na aparência despretensiosa
mas refina a delicadeza
a sensibilidade sonora
que só é possível entrever
na alma popular
através do som exato e agudo
do bandolim
bem acompanhado
 
 
                                Igor Zanoni
 
 
 
Choro

os grandes mestres já falaram
sobre a interdependência de todos os seres
e sobre o fluxo circular do tempo
e de todas as coisas em seu interior
de modo que já nunca estamos sozinhos
e um pouco ao acaso dos nossos atos
emoções e pensamentos
somos sempre os outros e os nós
que escolhemos
a nossa liberdade nos leva adiante
para sofrer o que nunca adiamos
na nossa liberdade de ser ou ter o pior
que quisermos ou não evitamos
nestes momentos nos sentimos todavia
sós tão sós
e que em nossa solidão caberia o infinito
e conosco levaríamos todos
os que interrogamos
quando você esteve comigo?
que cruz minha levou
que chagas lavou
e silenciosos subimos a rua de pedras
sós tão sós


                                 Igor Zanoni
Chuva

                                                                 Para Fabiana

corro com meus pés de chuva
para alcançar os peixes
que se lançam na sarjeta
para apanhar as rãs que chiam
em uníssono nas poças d’água
para agarrar os meninos
que ainda estão fora da cama
para sentir o cheiro das nuvens
para tornar-me nuvem
e depois temporal
barro quem sabe
que importa
esse cheiro de cavalos molhados
de cogumelos brotando
a paisagem que se dilui
no lume vago da estrela
o infinito é feito
de chuva e de sentidos
alucinados
pela chuva
estamos no meio da chuva
da vida
às vezes é tão claro


                            Igor Zanoni

Cidade

a cidade tem muitas ruas
mais belas do que as de minha cidade
e que estão cercada de outras ruas
e de outras cidades
que ficam no mesmo país
também cercado de outros países
todos com muitas pessoas
que de alguma forma mantém
mesmo quando nada fazem
as ruas as cidades e os países
depois vêm  as imensidões do mar
do deserto das florestas
nas quais não há cidades ou ruas
mas que elas vigiam acuam
restringem ferem
acima há o espaço
a última fronteira dos meus seriados
de infância
um dia iremos para o céu
se formos bons e confessarmos
nossos pecados
ou para o inferno em caso contrário
acho que o inferno fica dentro da terra
mas nunca soube muito bem
acerca deste grave ponto
enquanto isso não ocorre
andamos na cidade nas ruas
e alguns no deserto
os milionários que freqüentam bailes
em transatlânticos por exemplo
ou os seringueiros os índios arredios
e os beduínos de Malba Tahan
alguns andam nesta bela cidade
que eu imagino
outros como eu na minha rua
em minha cidade
que me afasta empurra corrompe
alicia oferece cartões de crédito
e celulares com GPS
ou não oferece nada quando recuso
como um recluso em minhas dificuldades
em minhas incompreensões e pontos cegos
nós cegos
quase sem sair de casa


                                   Igor Zanoni
Cidade

por mais que chova
não chiam sapos

                Igor Zanoni
Ciência

a ciência já foi julgada finita
e toda conhecida
em seus métodos e resultados
já se reuniu fé e razão
razão e experiência
já se duvidou de tudo
e já se encontrou porto para a crença
e para a esperança de saber
também se procurou conhecer
a si mesmo
tarefa vasta e laboriosa
necessariamente inconclusa
pensou-se que o homem fosse uma cidade
depois um continente
nunca uma ilha
o ser humano é o mais elogiado
e o mais vilipendiado
depois de percorrido por filósofos
teólogos psicólogos poetas e tolos
mas o mais crucial é que cansa
procurar por si mesmo
é vaidade e egoísmo


                           Igor Zanoni
Construção do Bodisatva –

Com os cinco elementos passamos a manifestar o nosso próprio corpo como Bodisatva.
Estamos na mandala do Bodisatva onde a energia e ação são naturais.
Tudo o que olhamos vemos a partir da Presença.
Surge a Sabedoria Primordial do encontro da Mandala Primordial com observação de como que as pessoas operam limitadas por avydia.
Nos movimentamos com propósito (éter), expansão (ar), energia (fogo), flexibilidade (água) e força (terra), em meio ao mundo.

Quando surgem os Cinco elementos do Bodisatva, aparecem naturalmente as Seis Sabedorias, ou seja, as sabedorias dos Cinco Diani Budas e a sabedoria de Vajrasatva. Cada sabedoria uma inteligência e um universo maravilhoso surge correspondentemente (mandala), com seu aspecto de mente, energia e lung.


7. Lung do Elemento éter
1. Olhamos para os seres e vemos o quanto estão presos no samsara.
2. Reconhecemos a liberdade natural em todos os seres e suas capacidades de liberação (este é o olhar dos bodisatvas, eles entendem os dois mundos).
3. Vemos surgir dentro de nós o elemento éter, (um brilho nos olhos seguido de um impulso, uma energia, uma eletricidade de socorrer os seres seja onde eles estiverem).
4. Não enrijecemos a situação deles justamente porque não há solidez e sim liberdade.
Eles podem ultrapassar.
5. Tomamos como referência nossa experiência de presença e lucidez diante das coisas e percebemos o que as pessoas vêem quando olham, como se enganam, como estão perdidas, vemos a experiência de prisão dos outros seres.
6. Brota a energia associada ao elemento éter com a aparência da vontade de ajudá-los.

8. Lung do Elemento ar
Quando o acionamos o elemento éter, como decorrência, acionamos o impulso de respirar. O elemento ar surge a partir da clareza do elemento éter. É o elemento da vida, o sopro que sustenta. Na seqüência naturalmente respiramos, nos endireitamos a partir da eletricidade do elemento éter.
É o natural movimento de expansão surgido do contato com o universo. Veja!

9. Lung do Elemento fogo
Quando o ar entra, ele traz energia, aquece o nosso corpo. É o elemento fogo.
Energia de vida. Veja!

10. Lung do Elemento água
É o elemento da mobilidade, faz o corpo mover. Rege a mobilidade e flexibilidade.
Surge do elemento fogo. Veja esse surgimento na forma do impulso de movimento.

11. Lung do elemento terra
Faz o corpo ganhar força.
Produz a presença no mundo.
Traz firmeza, sustenta as identidades.
Para o samsara, representa o apego.
Para os bodisatvas é a afirmação do seu interesse em trazer benefício a todos os seres.
Surge dos outros elementos e os estrutura, dá consistência a eles.

Cinemania

1
os trezentos eram antes de cidadãos
homens livres
por isso puderam ser cidadãos
e confundir sua vida
com a defesa de Esparta
por isso também puderam crer em si
antes que na magia e na divindade
de Xerxes


2
há quem não consiga deixar de ser infantil
mesmo que assuma as tarefas de um adulto
todas elas serão coloridas por sua criancice
todavia há quem perca sua infância
às vezes ainda muito jovens
e se torne um adulto ao qual faltou
não tanto uma etapa da vida
como um elemento crucial
no jogo de sua personalidade


                      Igor Zanoni


Cinza

vejo você sob a chuvinha
da cinza de um vulcão
eterno sobre a sua cabeça
vejo você com seus insólitos
guarda-chuvas
invenções de quem quer resistir
mas que se entedia
fuma bebe sai para pescar
usa todos os métodos
para conquistar distâncias
mas mantém um discreto humor
idiossincrasias fidelidades
um de nós companheiro
um de nós


                              Para Zizo
                                  Igor Zanoni
Ciprestes

funéreas cinerárias
chorosas violetas
hipoméias lutuosas
jardins antigos que descem
a ladeira de ciprestes
nos municipais cemitérios
que viram feiras em Finados
enquanto os sinos
tocam seus dobrados


                      Igor Zanoni
Circo


quando eu era menino
os circos tinham sempre uma bandinha
onde músicos pobres achavam emprego
e tinham a chance de tocar uma apoteose
para a bela menina bailarina
o circo às vezes tinha pouco mais
 do que a cortina
mas era tecida de estrelas luas
com um ar de tenda cigana
os malabaristas os trapezistas
os palhaços os domadores
de feras enxovalhadas
compunham uma ralé universal
que nunca leu o Manifesto Comunista
meu pai uma vez tratou dos dentes
de um proprietário de um circo
cuja maior atração era um elefante
velho como seu dono
e sem dentes já para tratar
pagou como pôde
meu pai achou o caso pitoresco
e deixou pra lá
mas eu guardei a foto da bailarina
como a mais bela mulher já vista
em minha curta vida


                                        Igor Zanoni
Circunstâncias

um enorme conjunto de circunstâncias
impediria  o nosso amor
se morássemos distantes
ainda que na mesma cidade
ou se ela gostasse de homens
mais altos ou mais ricos
ou se eu não gostasse de mulheres
pelo menos na sua idade
ou que já tivessem um filho
mesmo que fosse uma graça
achar seu filho uma graça
foi um requisito
como brincar  com ele fazer
lições de casa
eu poderia gostar de beber mais
de pôquer ou sinuca
ou desejar a vida monástica
poderíamos aliás viver cada um
num século ou não nos encontrarmos
inúmeras vezes até nos cumprimentarmos
e um dia nos encontrarmos
numa festa ou na missa
e fazer surgir aquele estranho embaraço
que aproxima as cabeças e os lábios
com certeza os homens após quinze minutos
não sabem o que fazer com uma mulher
e a pedem em casamento
mas ela poderia não querer se casar
poderia querer se divertir
com os irmãos e as amigas
ou fazer uma discreta e rigorosa
carreira acadêmica
por isso o amor é um intrincado
complexo de requisitos e condições
cercado de regras jurídicas
e obrigações legais e morais
nas quais as pessoas se enredam
pelo doce prazer de estar juntos
tão pouco aproveitado
ao longo de  uma vida dita comum



                                   Igor Zanoni
Claro

1

é melhor ser claro que brilhante

2

ela atirou pela janela
tempos idos saudades decepções
bolo de casamento passeios em Morretes
frangos de domingo na padaria
noites em claro uísque em excesso
patuás novenas trezenas
mas felizmente saiu pela porta

3

havia um ponta na Alemanha
chamado Littbarski
era rápido e jeitoso
e até engraçadinho
ciscava ciscava e ciscava
mas não jogava nada



                                Igor Zanoni
c
Claro

1

é melhor ser claro que brilhante

2

ela atirou pela janela
tempos idos saudades decepções
bolo de casamento passeios em Morretes
frangos de domingo na padaria
noites em claro uísque em excesso
patuás novenas trezenas
mas felizmente saiu pela porta

3

havia um ponta na Alemanha
chamado Littbarski
era rápido e jeitoso
e até engraçadinho
ciscava ciscava e ciscava
mas não jogava nada



                                Igor Zanoni

Clementina de Jesus


aonde estão os olhos de azeviche
que destruíram minha alma
que me roubaram a calma
o meu coração vive a palpitar
se aqueles olhos lindos
não vão me enganar



                       Igor Zanoni


Clube dos Poetas

eu vi as grandes declamadoras
heranças imperiais do verso sonoro
e quase sempre vago
dos gestos imperiosos e amplos
das modulações da voz
que ultrapassavam a palavra
do tempo em que se confiava
nos sentimentos sublimes
e na amplidão da alma
tempo no qual não havia a arte
nas suas técnicas de reprodução
e os salões cheios de rapazes
e moças em busca da verdade
e do prazer de estar junto
   ouviam os versos de José Régio
que quase sempre eram os últimos
não sei por onde vou
não sei para onde vou
sei que não vou por ali!
isso exprimia a imensidão esperada
 do futuro
as crenças desabaladas
o furor com que se decidia
fazer não se sabia ao certo
o quê


                                                                        Igor Zanoni
Coerência

dizem que é preciso separar
o artista do homem
e que os filósofos nem sempre conjugam
vida e pensamento
mas eu sou de uma geração
cujos heróis foram faróis para muitos
iluminando longe
o futuro que desejávamos
e para nós nem sempre o que se julga mal
é mesmo o mal
e é melhor ser sábio que poeta
melhor não dizer ou dizer confuso
é melhor ser coerente e firme
que um malabarista de aparências
nós amamos grandes gênios
cujos pequenos momentos
também nos iluminaram ao mostrar
nosso pequeno círculo familiar
nós amamos os que se mataram
os que foram mortos
e os que sobreviveram íntegros
e nos devolvem íntegros nossos sonhos
nossa juventude
e todos vivem em nosso corpo
nas nossas sinapses
na nossa energia nervosa
nos nossos automatismos
e as suas palavras têm poder de mantras
e sutras
e os amamos pelo que foram em seu coração
o que disseram ou cantaram
foi só o que puderam
e puderam muito



                                           Igor Zanoni



Coisas

é verdade que talvez
as coisas não melhorem
mas sempre podem piorar
elas nunca ficam as mesmas
em todos os momentos da vida
é bom fazer um cruz credo
nunca se sabe se vem um saci
ou o velho com o saco
isso dizem todos os sábios
e as avós ralhando com os meninos
olha a arte! chamo o velho!
principalmente quando a gente
acha um jeito de melhorar as coisas
a avó acha que é o Benedito
com sua capa preta


                              Igor Zanoni


                      
Comigo

1

não me dê atenção
sou apenas um passarinho
procurando seu pão pelos caminhos
não entendo o que você pensa
não sei que bicho você é
já é difícil ser um passarinho
e entender tão pouco
de pão e de caminhos
viver tão exíguo
tão pobrezinho
tão sem ser notado
tão só para si


2

amamos o mundo
como a mãe nos ensinou
amamos Jesus Cristo
porque a mãe disse para amar
não quero complicar o que é
claro e inviolável
só posso entender o que
sempre me pertenceu
essa vida desse jeito
não sou homem modesto
faço tudo que é preciso
para entender melhor
esse mundo esquisito
esse eu comigo estranho
mas algumas coisas são claras
e eu não complico



                                    Igor Zanoni
Compaixão


compadecer-se é sofrer
no mesmo lugar do outro
mesmo que o sofrimento deste
pareça banal e insensato
mas há sofrimentos inteligentes
ou sensatos?
assumir o seu destino e aos poucos
com a paciência da água
desviá-lo para o cerne invisível
do que é vida e muito mais
do que mera vida
inclusive porque não há
mera vida
mas vida verdadeira e vida
obscura e sofrida
que se escolhe sem saber
mas escolhe


                             Igor Zanoni
Compreender
 
 
essa exigência de compreender
para lidar com o próprio sofrimento
e talvez menos que isso para lidar
com o que na vida não é vicissitude e acaso
 mas perda e incompletude
desdobrou-se em inúmeras tentativas
e experiências para reconstruir
tentar testar gestar ideologias
uma sofreguidão de querer tudo já
revivido revisto de uma vez por todas sabido
como se a dor pudesse ser suprimida
a lentidão com que se constrói em si
a paciência e a virtude 
e o largo desenho do que é ser humano
 
 
 
                                   Igor Zanoni
 


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