domingo, 13 de fevereiro de 2011

Poemas mágicos

Poemas mágicos



                                                                                Igor Zanoni Constant Carneiro Leão





Adriana Calcanhoto pergunta em uma bela canção para quê servem as canções. Utilitáriamente nada, talvez. Servem ,como as crianças, para nosso deleite. Poderia perguntar também para quê servem os poemas. Para nada, também, de um ponto de vista prático. Podem até ser nocivos, diria um cultor de Platão .Mas eu penso que escrever poemas pode ser um exercício diário de compreensão do dia e da vida, e mesmo um exercício de transformação, da vida e de quem escreve. Escrever poemas é uma pequena magia, com truques,regras, uma tradição respeitável , embora esteja longe atualmente do centro do palco das artes. Ocupa um lugar limítrofe em relação à música e ao romance ou o cinema. Mas um lugar de poder. Desde que aprendi a manusear um microcomputador o hábito que me vem da adolescência de escrever mudou-se num diálogo cotidiano com uma lista de amigos que às vezes comentam o que escrevo por correio eletrônico ou nos encontros na cidade. Para mim é uma arte de conviver com amigos diletos e com a inferência que faço a partir deles do que são as pessoas do mundo, ou do que podem ser.Também é uma arte de autocura de minhas dificuldades. Hoje tenho cinqüenta e seis anos, lendo desde os cinco e escrevendo em jornal de colégio desde os sete. Não à toa me tornei professor e passo muito tempo lendo sem maior propósito claro que fazer só isso mesmo,ler. E de vez em quando sento e escrevo. Meus poemas mudam com minhas leituras, amizades, dificuldades, descobertas, com tudo que é meu. É um apossamento do meu e um reconhecimento. Não sou vaidoso nem aumento meu talento.Meus versos são sobretudo versos de circunstâncias, que têm o curioso hábito de repetir-se e tornar-se uma pedra no caminho ao mesmo tempo banal e metafísica, para lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade. Os versos que neste e-book seguem foram escritos em 2008, durante o segundo semestre aproximadamente. Publicando-os dou-me a mais gente do que faço em meu cotidiano, e já não sem tempo.

              Curitiba, janeiro de 2009 
Acertos

conversando com meu filho
ou cuidando do que vem
coleciono meus acertos
na vã esperança de não mais errar                 _________________________________________________________________________
Agostinho

1

a vontade faz com que a história
seja a um tempo memória
e nostalgia do futuro

2

até o final levarei em mim
meu joio e meu trigo
então serei peneirado
que eu alcance graça
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Alambique

as pernas sempre nos rios
peneirando ouro
nos serros frios das minas 
os escravos não tinham para aquecê-los
nada além da cálida aguardente
por muito tempo a civilização nacional
esteve amparada na mandioca
esse “pão da terra”
e no alambique
sem esquecer o generoso fumo
para os quais ainda hoje
há poucos substitutos disponíveis
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Alegria

as pessoas estão cansadas de seus pecados
de ser consideradas pecadoras
mas é difícil não praticar tantos erros
não vê-los como erros
temos liberdade de agir de uma ou outra forma
mas falta compreensão sobre cada ação
por isso a luminosidade de cada ser existe
dentro de um arco de tolices
é preciso desmontar o arco
ser feliz
mas isso exige muito nesses tempos
em que ser livre paga sempre seu preço
ser feliz é uma conquista
não é intrínseco a cada um
ver sua íntima felicidade
possível
como ela está sempre aí
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Alma

a alma não é um congênito
apêndice do corpo
incômodo ou gentil
nem suas boas e más qualidades
vem de uma natural autenticidade
onde ela estaria? nos glóbulos brancos?
os sentimentos não nascem com o bebê
nem o bebê deixa de ser o tempo todo outro
não graças ao tempo
mas ao seu esforço se lhe parecer importante
o amor a compaixão a alegria a equanimidade
não estão à mão em algum recesso do ser
são aprendidos com doçura
com medo com arrependimento
com a decisão de mudar
que nem é tomada tão às claras
muitas vezes se muda depois se percebe quanto
o grande Drummond intitulou um livro
“Amar se aprende amando”
também o ódio mas muito mais importantemente
o amor
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Almoço

o cálido vozear das crianças
retine nas louças
sinos ao meio-dia
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Amigo de Infância

quando  reencontramos um amigo
de infância
temos apenas uma memória
edulcorada e falhada
do que foi esse amigo essa infância
e nós mesmos
é necessário travar relação
com uma outra pessoa
ligada à primeira apenas
por vagas referências comuns
e às vezes apenas de um
é antes travar relação
com alguém inteiramente novo
com quem temos cinco minutos
de conversa
depois mais nada exceto
se romanticamente temos o impulso
de resgatar o amigo a infância
nós mesmos
em um esforço difícil e ambíguo
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Amor

o amor é involuntário
pelo menos como uma fantasia
que se acalenta ou se abandona
um momento se ama
outro se esquece
exceto que se prende por laços
concretos e necessários
pode-se amar contra a vontade
amar pode ser um dever
um dever inescapável
amar pode ser por isso pura vontade
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Ano Novo

o Natal chegou embrulhado
em palha como um vinho precioso
que cada um apreciou como pôde
mas o Ano Novo veio envolto
em jornais e expectativas
já não falando
como há uma semana atrás
em esperança
mas especulando com más informações
sobre a grande crise do capital
o prosseguimento do banho de sangue
na faixa de Gaza
e as políticas dos grandes estados
para salvar as fábricas de carros
é claro o presidente deu novas
declarações impensadas
para que confiemos na vida
e abramos novos crediários
o Banco Central mantém os juros
com medo da inflação
e sustenta a elite com verbas públicas
o Ano Novo será segundo parece
como qualquer ano
e os jornais poderiam ser feitos
com uma máquina xerox
e os jornais do Ano Velho
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Antibióticos

vacina anti-catarral Pinheiro
injeção de eucaptine
chumaços de azul de metileno
comprimidos de Piramidon
hoje foram substituídos
nas minhas crônicas dores de garganta
por antibióticos caríssimos
de última geração
a cada três meses
no orçamento
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Apaixonados

nós estamos bem...
às vezes mais apaixonados
às vezes menos
de novo mais apaixonados
e assim vamos...
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Aproximações

não acredito em amor
senão como aproximações sucessivas
e infinitesimais
testando o limite das relações
vistas por ledo engano
como saudáveis e razoáveis
quando são apenas carências
e adoecimentos
lucros e perdas
na vida que já perdemos
não acredito em amor
senão como o tecido
na pétala
do orvalho que a veste
de água e luz
como a uma princesa
passeando nos meus olhos
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Aquisitiva

ela amassava por muito tempo
papéis de bala apanhados no chão
depois os alisava no braço
sentido sua cor sua textura
provava o café concentrada
como se nunca houvesse
tomado café antes
não aquele café naquele bar
ia andando pelo mundo
como que dando-se inteira a ele
era uma pessoa que amava
os materiais do mundo
uma pessoa sensível
aquisitiva
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Argentinos


com seu senso trágico
não há assunto em que os argentinos
não ponham todo seu vigor
seja a política a educação os livros
ou o estado geral das almas
mas intimamente românticos
escolhem para suas deidades
nomes como Evita
Estelita ou Luz Marina
e os acariciam ao som de bandoneons
na luz frágil das ruas noturnas
em acalantos doridos
nos ombros das companheiras
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Assassinato

se eu der muita comida
ao meu peixinho azul
ele vai ficar bem gordinho
e não vai levantar mais
do fundo do aquário
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Aves

as aves se sustentam
na tarde aérea em que Jesus
ata minhas asas
embora eu seja também
um dos seus pobres
meu dharma é instável
e vou como todos morrer
minha inquietude me leva
a penhascos em plena rua
choro baldes de lágrima
que jamais secam
mas a parte irracional
 da minha alma me livra do mal
o que sentimos nem sempre
pode ser vivido
mas alivia e embriaga
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Baldios

com o fim dos terrenos baldios
foram-se as peladas de domingo
entre os times dos bairros próximos
os bichos que se aninhavam
na verdura das margens
entre os talos açucarados da erva-doce
e que morriam jogando ao céu
sua carniça para o vôo circular
dos urubus
nas ruas mornas já não se reúnem
os meninos a um passo
da amizade e da zanga
e que enchiam as tardes  ocas
com emocionantes partidas de bets
raramente interrompidas
por um automóvel malvisto
essa infância já não existe
ao menos em Campinas
como não existem mais
tantas coisas fundamentais
à boa vida e à vida boa
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Bananas

lamentável a morte lenta
de bananas em uma fruteira
sua carne amolecida
sua casca escura
 e manchas de mofo
o paladar se retrai
as drosófilas se assanham
no banquete fúnebre
triste o cheiro enjoado
que enche toda a cozinha
até a morte vegetal
de bananas antes tão convidativas
cria um mal estar
um sentimento de recusa
tão natural em quem vive
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Bilhões

muitas coisas já
não são para mim
não sei para quem são
o reveillon na praia no Rio
feriados de fim de ano
nas estradas cheias
outras nunca foram nem serão
a ajuda financeira a bancos
e empresas automobilísticas
quando ouço falar
em bilhões e trilhões
não sei bem quanto é
de onde sai
mas eu sou uma pessoa
sem a menor importância
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Busca

Ele também fala no silêncio
e no tédio
não se pense que não acha
aquele que busca
muitas vezes a busca demora
a vida toda
e no instante final se acende
o olho do futuro
 a vida se transforma
e reacende
pensamos : Ah! então era isso!
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Caliça

aos poucos a casa se destelha
as crianças lambem
a cal das paredes
cobras fazem ninho no forno
e é preciso saber onde pisa
para entrar por uma porta
e sair por outra
o jardim se torna amazônico
e os passantes mudam de calçada
quando vêem a ruína
bem dizia meu pai
a vida é uma luta contra
 a entropia
e só se pode adiar a derrota
enquanto se é novo
e tem bons dentes
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Campanários

fúnebres pássaros espiam
pelo olho oco do olvido
o silvo da grama
cresce entre ossos
do que foi para sempre
nada ninguém
mas a paisagem natural
retoma suas revoluções cegas
sinos silenciam
eucaristias emudecem
seus símbolos cedem
ao que não pode ser convenção
espectadores tombam
na manhã de sábado
deitam-se nas plácidas colinas
de pinheiros e campanários
mas amanhã não haverá domingo
de missas e ressurreições
_________________________________________________________________________
Campo santo


                                                                                                        Para Anna

1

eu gostaria de falar
mas você já não está
está antes em suas viagens
infindas iguais
sem mandar uma carta
gostaria de um cartão postal
da paisagem que você vê
com um bilhete atrás:
estou ótima vi museus
jantei bem tomei um ótimo vinho
quem sabe você um dia
voltasse

2

pessoas do coração
partem para destinos ignorados
nunca mais
os pais amigos de décadas
irmãos amores mestres
nem mais uma palavra
nosso coração é um campo santo
de adeuses ditos e não ditos
_________________________________________________________________________
Canções

não é possível viver como as canções
na própria intimidade
as dos outros se espia com prazer
ou paciência
mas a nossa que abismo
é preciso exteriorizar o mundo
torná-lo manejável
nós mais ariscos que um peixe
mas as canções são feitas para os outros
ninguém vive como sua canção
só os desesperados e suicidas em potencial
_________________________________________________________________________
Casal

1

em um casal tudo se sabe
assim como em uma casa silenciosa
se ouvem todos os ruídos

2

a vida não é rigorosa
o coração é incerto
temos um murmurar que não cessa
mas nenhum bom motivo de fato

3

em uma alma muitas almas se aninham
como em dona ratazana
muitas crias em suas tetinhas
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Chorinho
o chorinho é uma forma musical
na aparência despretensiosa
mas refina a delicadeza
a sensibilidade sonora
que só é possível entrever
na alma popular
através do som exato e agudo
do bandolim
bem acompanhado
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Choro

os grandes mestres já falaram
sobre a interdependência de todos os seres
e sobre o fluxo circular do tempo
e de todas as coisas em seu interior
de modo que já nunca estamos sozinhos
e um pouco ao acaso dos nossos atos
emoções e pensamentos
somos sempre os outros e os nós
que escolhemos
a nossa liberdade nos leva adiante
para sofrer o que nunca adiamos
na nossa liberdade de ser ou ter o pior
que quisermos ou não evitamos
nestes momentos nos sentimos todavia
sós tão sós
e que em nossa solidão caberia o infinito
e conosco levaríamos todos
os que interrogamos
quando você esteve comigo?
que cruz minha levou
que chagas lavou
e silenciosos subimos a rua de pedras
sós tão sós
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Chuva

silenciosa chuva
apanha-me pelo caminho
devolve-me ao espaço
agora mais denso
das longas frias caminhadas
e dos jogos de futebol
no barro dos campinhos
clausura da meninice
antecipação da clausura
da vida inteira
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Cidade

eu quero viver em uma cidade feliz
é impossível ser feliz sozinho
lutar contra a tristeza cotidiana
com o auxílio de amigos e psicólogos
fazendo deles minha pequena cidade
esta deve ser bem maior e incluir todos
deve ser a República de Platão
onde se aprende o bem o amor e a virtude
não quero menos do que toda a paz
e todo o bem que São Francisco desejava
aos seres todos e até aos pássaros
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Cidade

por mais que chova
não chiam sapos
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Cinza

                              Para Zizo

vejo você sob a chuvinha
da cinza de um vulcão
eterno sobre a sua cabeça
vejo você com seus insólitos
guarda-chuvas
invenções de quem quer resistir
mas que se entedia
fuma bebe sai para pescar
usa todos os métodos
para conquistar distâncias
mas mantém um discreto humor
idiossincrasias fidelidades
um de nós companheiro
um de nós
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Ciprestes

funéreas cinerárias
chorosas violetas
hipoméias lutuosas
jardins antigos que descem
a ladeira de ciprestes
nos municipais cemitérios
que viram feiras em Finados
enquanto os sinos
tocam seus dobrados
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Ciência

a ciência já foi julgada finita
e toda conhecida
em seus métodos e resultados
já se reuniu fé e razão
razão e experiência
já se duvidou de tudo
e já se encontrou porto para a crença
e para a esperança de saber
também se procurou conhecer
a si mesmo
tarefa vasta e laboriosa
necessariamente inconclusa
pensou-se que o homem fosse uma cidade
depois um continente
nunca uma ilha
o ser humano é o mais elogiado
e o mais vilipendiado
depois de percorrido por filósofos
teólogos psicólogos poetas e tolos
mas o mais crucial é que cansa
procurar por si mesmo
é vaidade e egoísmo                      _________________________________________________________________________


Clementina de Jesus


aonde estão os olhos de azeviche
que destruíram minha alma
que me roubaram a calma
o meu coração vive a palpitar
se aqueles olhos lindos
não vão me enganar
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Coisas

é verdade que talvez
as coisas não melhorem
mas sempre podem piorar
elas nunca ficam as mesmas
em todos os momentos da vida
é bom fazer um cruz credo
nunca se sabe se vem um saci
ou o velho com o saco
isso dizem todos os sábios
e as avós ralhando com os meninos
olha a arte! chamo o velho!
principalmente quando a gente
acha um jeito de melhorar as coisas
a avó acha que é o Benedito
com sua capa preta
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Compreender

gostaríamos de ser compreendidos
como nos compreendemos
mas é freqüente ouvir dos mais próximos
zombarias as mais mordazes
muitas vezes procuramos o psicólogo
para perceber como o mundo nos percebe
mas logo vemos que entendemos de nós
muito mais que ele
estamos sós com nossa alma
cada um de nós
mas sentir isto é um princípio
de compreensão do outro
de sua solidão
há quem não se sinta só nem triste
mas eu só me sinto triste e só
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Conjunto

a maioria pensa em uma luta
individual pela vida
no máximo por um pequeno círculo
de familiares e amigos
há todavia os que lutam pelo conjunto
dos seres e de tudo que conduz
a uma vida boa
essa é a luta mais difícil
a menos recompensadora a curto prazo
a mais indispensável
o tempo todo
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Contato

houve um ruído metálico
como se um besouro batesse em pleno vôo
em uma lata de Coca-Cola
a paz do livro se quebrou
senti o quarto frio invadido
por forças estranhas
com um sobressalto busquei os cantos
os debaixo dos móveis
os atrás das estantes e dos guarda-roupas
mas só percebi o vento suave
movendo a cortina leve
e a noite estrelada me espiando
pela janela aberta
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Continuidade

o que é mais importante
é a continuidade
graças a ela podemos ter
alguma contemporaneidade
com Sócrates Buda ou Jesus
ao mesmo tempo ver o anacronismo
que invade nossa vida
podemos ter uma herança prática
do amor da amizade da vida comum
criar pontes para o depois
até certo ponto moldá-lo
enviar sondas para as bordas do infinito
e estar nesta sala tranqüila
ouvindo músicas antigas e novas
ao lado dos filhos
ser a um tempo pitagórico
darwinista socialista
e amar a mecânica e a poesia
a continuidade convive
com boas rupturas e as supõe
mas é exigente e seletiva
por isso tenhamos cuidado
cuidado e mais cuidado
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Contrição

os velhos gostam de contrição
de visitar cemitérios
e completar novenas
querem familiarizar-se
com a finitude e com o eterno
que talvez nos espere
na outra margem
querem encantar a vida
torná-la dócil
nesses dias precários
querem se fortalecer e preparar-se
para aquele grande momento
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Conversa

hoje à tarde lendo
reatei uma conversa com meu pai
há muitos anos
não importa o livro ou a conversa
mas o dom da intimidade
como pode prolongar-se
quase infinitamente
ou além de uma morte
tão significativa para mim
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Convite

o iogurte o sorvete o suspiro
são as guloseimas preferidas
das garotas do call center
mas se convidar uma para jantar
peça no mínimo um yakissoba
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Coração

1

uma xícara velha se enche
ainda de chá
sua porcelana encarquilhada
não derrama uma gota
assim o rosto dos velhos
mostra-se como um pergaminho
mas em sua boca há às vezes
um sorriso
outras vezes uma praga

2

como vai seu coração
quem cuida dele enquanto se vê
às voltas com o cuidado dos dias
que se alongam cansativos
a noite parece custar
o sono também foge
suas batidas fazem um tango
e você nem tem um terno e um chapéu
para dançar conforme
a sua música
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Corpo

quisera te colocar dentro do meu corpo
e ir comigo onde tu fosses
e dizer as tuas palavras
quisera me abrigar em tua calma
e lascivamente sentir-te sempre em mim
esquecer para sempre minha solidão
e ver o mundo que se abre em teus olhos
quisera que nossas histórias confluíssem
e te guardar do mal e do perigo
que fosses de mim meio filha meio mãe
meio eu mesmo
porque assim quase já somos todo o tempo
e em ti amo tudo teu e a mim
porque me tens contigo
_________________________________________________________________________


Cravo

o lânguido amor
o feroz desejo
a paixão desenfreada
a imaginação exaltada
a fratura exposta
o tormento constante
a certeza dolorosa
são cravos no corpo
dos amorosos
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Crianças

levei a Isabela ao Parque Tupã
para brincar no carrossel
mas ela preferiu a roda-gigante
_________________________________________________________________________
Crianças

as crianças têm
como os gatos e as rosas
a eterna presença do instante
de sua vida a tragédia
insiste em fugir
muitas vezes quando para nós
ela é evidente
ninguém se torna um adulto são
se esquece de todo sua criança
ela é a chave da sua iluminação
o passaporte da vida inesgotável
diante de tantas fronteiras
_________________________________________________________________________
Criação

estamos nos criando o tempo todo
nesse tempo ambíguo que temos
e que não supõe um sábado de descanso
estamos entre nossas ações
vivendo nossas ilusões e relações
e quando percebemos o vazio
sentimos frio e não a necessidade
de cessar e ser pela primeira vez
pleno de nuvens brancas
de terra e de água


Crise

os governos desembolsam bilhões
para salvar o sistema financeiro
a indústria automobilística
não sei de onde saem tantos bilhões
nem imagino quanto valem
os marxistas já previam a crise
e perguntam: será esta a crise final?
as contradições se agravam
os riscos são imensos
de perder a precária civilização
que erigimos com a ciência
a técnica e o capital
os utópicos pensaram em outra nação
em outros homens
deram suas vidas por este sonho
homens sérios estudiosos
que amaram esta terra
correram todo o mundo
em fuscas e aviões
foram eleitos para academias de letras
são periodicamente enterrados
e recuperados
sem entende-los eu os assumi
como meu lado meus pais
não sei de onde me veio
esta veia jacobina
_________________________________________________________________________
Cronos

há o que nos cabe
e o que não nos cabe
a menos que sejamos insensatos
crer em Deus ou nos demônios
era inevitável há duzentos anos
hoje não podemos sequer escolher
é uma sorte de quem nasce
aqui ou ali no mundo
o tempo histórico nos coloca
as crenças e as indagações
dispõe de nossa morte
e do que podemos viver
de modo que a liberdade
é limitada ou quem sabe ilusória
mas sempre há a loucura
dos que dispõem de si
às vezes com sofrimento
mas íntegros
às vezes com espantosa alegria
nós escolhemos do que enlouquecemos?
_________________________________________________________________________
Cuidado

                            Para Selma


a paixão pode ir e vir
mas deve sempre deixar
o cuidado e o carinho
não é preciso estar apaixonado
muitas vezes na vida
a paixão pode ir e vir
mas o carinho e o cuidado
precisam sempre ficar junto
eles nos são indispensáveis
_________________________________________________________________________
Curitiba

doces damas-da-noite
o jardim abrigo para beijos
e confidências
ou um cigarro só
o vento leva a nossa poeira
encosta-a aqui e ali
nosso mundo é imenso
como o céu sem nuvens
e nossos passos
às vezes se perdem
Curitiba! Curitiba!
quantas vezes te quis reunir
em meus braços
na noite que nos torna
generosos
_________________________________________________________________________
Cálido

o amor é também cálido e acolhedor
veja os pássaros nos ninhos
veja um casal de ginasianos
mas não é só isso


Céus

nunca esquecerei
no céu alto de Campinas
os pontos negros dos urubus
traçando espirais na tarde quente
vigiando a carniça dos bichos
mortos nos terrenos baldios
a amplidão dos céus alargava
minha vida infantil
a cidade tinha entre seus caminhos
imensos planos de terra
e o globo da atmosfera
ali convivíamos todos
os elementos naturais
a flora e a fauna
tudo era de uma crua naturalidade
inclusive a beleza
da minha vida
_________________________________________________________________________
Decisões

há tantas  decisões que tomamos
sem certeza
angustiados por ter de tomar
alguma decisão
ferindo os sentimentos
dos que teriam outras soluções
mas muitas vezes o tempo é curto
as coisas se precipitam
este é um dos nossos lados
demoníacos
a incerteza e a precipitação
_________________________________________________________________________
Dele

Para Tiago

dele me ficou a efígie
um gosto por vinhos
eu que não bebia
por autores distantes
eu leitor dos românticos
ficou uma rebelião
uma soltura
eu tão apegado a meu pai
dele me ficou essa certeza
de que a vida passa
eu que pensei que havia
sempre um jeito dela voltar                     
_________________________________________________________________________
Derrota

o cansaço do não vivido
do que não se pode esperar
a expectativa o preparo
da juventude perdidos
a vida um pouco falhada
mas intimamente sabendo
que não se trata de fracasso
mas de uma derrota
_________________________________________________________________________
Desejo

eu pedi
mas ela  recusou
pois está no seu direito
aliás é uma moça muito direita
mas é que eu tenho um sentimento
que muitos acham escuso
outros louvável
por isso indeciso me mantenho
refém desse obscuro desejo
e pedirei de novo amanhã
mas hoje rezo para que desapareça
tanta assombração
_________________________________________________________________________
Desvantagem

é comum em uma relação amorosa
um dos dois ser mais apaixonado
que o outro
criando-se uma dolorosa e silenciosa
desvantagem em tudo que lhes diz
respeito
_________________________________________________________________________
Deusa

os violinos iniciam suaves
a canção
sua voz aveludada e rouca
ainda mais suave
lembra a letra de um velho sucesso
os habitués se debruçam
sob a meia luz
escutando a voz noturna
e glamorosa
tudo que queremos é escutá-la
e assim escutar  nossos corações
sentir o que sentimos
repetir-nos o mais possível
ela é para nós uma deusa
e como nós mesmos
repete hoje velhos sucessos
_________________________________________________________________________
Dharma

o dharma não é apenas
um conjunto de ensinamentos
que se aprende mas que
se pode viver com alegria
com a alegria que Buda
partilhava com seus amigos
assim também para Platão
a melhor filosofia é a que vive
e deve ser descoberta na conversa
porque os amigos são
o melhor equipamento
para a vida sábia e examinada
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Dia dos professores

neste dia dos professores
gostaria de perguntar por que se continua
a dar aula se isso não funciona mais
nem aqui nem na China
se essa relação com os alunos se perdeu
e nós professores somos só um obstáculo
entre eles e o diploma
se a biblioteca anda às moscas
os interesses são outros
há risos quando se lembram certos autores
e não adianta deixar textos no xerox
os salários sempre foram maus
mas havia respeito comunitário
pelo abnegado professor
que hoje também não é mais abnegado
está fugindo das salas
fazendo bicos em pesquisas e mestrados
fora da escola
buscando um emprego no governo
e adora aparecer nos jornais
mais do que nas aulas
falando pomposamente sobre temas
que poucos compreendem bem
e se você dá aula à noite no segundo grau
corre o risco de agressão
não pode avaliar ninguém
mas também não sabe avaliar o que faz
o que é hoje um professor?
uma profissão em extinção
_________________________________________________________________________
Difícil

sou um homem difícil
mas não fechado
sei ser duro
mas também generoso
não sou santo
mas também não busco o mal
minha casa mantenho
com dificuldade
minha paz é um cultivo
tão árduo quanto o de um rosa
tudo resumido
não vale muito a pena
mas se achar que precisa de mim
disponha
_________________________________________________________________________
Diga

diga qualquer coisa
que acalme meu coração
diga que estou enganado
que a nossa vida não terminou
_________________________________________________________________________
Ditos

a justiça não precisa ser impiedosa
o amor não deve ser cego
a sabedoria não é obrigatoriamente cética
a virtude prescinde a dureza
o ofício não precisa ter ossos
a amizade pode se gratuita
o santo não faz necessariamente milagres
o que não tem explicação pode não ser miraculoso
a filosofia nem sempre consola
a poesia pode ser feita sem palavras
o mais próximo pode estar fazendo falta
a dúvida pode ter tanto método como a loucura
o simples demora a ser elaborado
o cuidado demasiado pode inibir
para os físicos e as crianças o universo é infinito
a única coisa inevitavelmente escassa é o tempo
_________________________________________________________________________
Dizer tudo

é sabido que não se pode dizer tudo
as mãos são mais rápidas que o olho
e o interesse mais veloz que a inocência
não que tudo isso seja humano
antes o humano é ainda um projeto
não há dona de casa que não queira
ser rainha ao menos de sua casa
e todos querem ser dono de seu nariz
mesmo que seja uma evidente impossibilidade
todos amam antes o prazer exceto os muito céticos
e antes do prazer o dom de ordenar a vida alheia
o que dá na mesma coisa
o apoio mútuo a grata solidariedade
ocorrem nos grandes sinistros
nunca na vida módica e cotidiana
na qual se vive de muitas outras preocupações
mas também disso não é possível dizer tudo
exceto perceber os vagos limites
a que foi confinada a vida de cada um
com o cinzel do capital se ergueram sonhos
e se ateou um incêndio no mundo
mas os romanos não viveram melhor
ou não teriam existido Adriano ou Marco Aurélio
e a escravidão grega sequer foi bem percebida
pelo maior dos filósofos de seu tempo
os seres não caminham para nenhum caos
estão nele desde que saíram do estado da natureza
por isso se fala às vezes em retorno à natureza
às origens à mítica fonte primordial
e muitos tem a felicidade de empreender
a busca do Santo Graal quase sem sair do bairro
como se o bairro não fosse todo o tempo
violado pelo mundo obscuro
e também pelo nosso lado obscuro
que dividimos com nosso lado claro
ou multiplicamos
mas sempre nos subtraindo
_________________________________________________________________________
Dolores

um dia um amigo me deu
um disco de Nana Caymmi
adivinhou minha tristeza amorosa
ele tão feliz com o amor nos tempos modernos
houve um tempo em que se amava
Dolores Duran
hoje mal se ouve uma canção no rádio
que console o coração abandonado
não por falta de adeus me despedi
dos sonhos das ilusões
hoje não quero mais escutar
as palavras de carinho que ouvi um dia
vou embora sem esconder
os sonhos que morreram
apesar do meu imenso amor
_________________________________________________________________________
Dor

quando me acalmo em minhas dores
quando me abraço a elas
como um velho ao seu casaco
percebo quanto tenho de ser
cuidadoso com elas
tratá-las com paciência
como aceitá-las é uma nobre verdade
a primeira que se deve conhecer
e praticar para alcançar
a hora em que poderei
aos poucos abrir brechas
na espessa e ignorante correnteza
dos dias
e encontrar enfim água e acolhida
não se trata de amar a dor
mas de reconhecê-la
saber seu fundo sua textura
e devagar abrir espaços
com carinho
sentado ou andando
com um pouco crescente de paz
com a consciência do que os seres
são feitos em seus limites
sem ambições sentar como um velho
agarrado com frio ao seu casaco
tomar sol no pátio
rodar com a terra
na tarde que veio como pôde
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Ele e eu

Ele morreu por todos
e pelo todo
por gente com os estigmas da pobreza
que são nossos e Ele fez seus
morreu pelos cegos pelos fariseus
pelas prostitutas e teólogos
mas Ele não morreu a minha morte
ela e o sentido que tiver
pertencem a mim
mas quando penso n’Ele
a todos e ao todo dou-me como posso
nos limites da minha escassez
e sinto uma enorme responsabilidade
_________________________________________________________________________
Emoções

como já cantou Roberto Carlos
o importante são as emoções vividas
é assim que a nave ensombrecida
da igreja
o rigor do ritual o método do coro
encantam o fiel e o comovem
é assim que a criança
na inocência de sua vida familiar
ama a visita dos avós nas férias
com suas dentaduras
e seus hábitos singulares de outrora
e os ama mais até que aos pais
é assim que é feito o mundo
do homem maduro que preza
seu esclarecimento
e do homem desesperado
que desatina e foge de si
para o consolo precário
do seu descentramento
mas as emoções são induzidas
também pela dura maquinaria
das usinas do mundo
difícil recusá-las
medi-las antes de vivê-las
vive-se e se aprende a ser sábio
ou tolo
mas a sabedoria é a  emoção
bem examinada
que torna a vida desejável
_________________________________________________________________________
Escolha

da maneira como podem
as pessoas interpretam sua vida
é indispensável que o façam
ou não seriam humanas
mas nem por isso dão o melhor
de si aos outros ou a si mesmas
quem poderá avaliá-las?
ninguém
apesar disso as pessoas escolhem
a sua interpretação
põem-se ou não em questão
as escolhas que precisam fazer
_________________________________________________________________________
Espera

esperamos de alguém o que não podemos
nos dar nem sabemos muito bem
o que é
esperamos que nos adivinhem
que sejamos um livro aberto
nós tão obscuros
tão oscilantes
às vezes alegres e radiosos
a vida clara a ser vencida
às vezes com um incômodo de velhos
o mundo cansado
as tristezas inexprimíveis
queremos que nos recolham
em suas retinas em suas mãos
nos devolvam a nós mesmos
na plenitude que não existe
nunca existiu
_________________________________________________________________________
Esperar

esperar das pessoas o que elas não podem
não saber se sentir forte ao lado delas
não saber encaminhar a vida por si
por ela
esperar dos sentimentos que sejam
o que nunca são
ou são às vezes
no fundo são mas o medo
no fundo não são
passear no domingo com a alma dilacerada
_________________________________________________________________________
Espírito

que o espírito não é mais
ou menos que o corpo
e um belo dia de sol
bem disposto
nos eleva a um êxtase
raro e inesquecível
que esse hedonismo não é
um exagero ou pecado
e se pode estar bem ordenado
com o corpo frágil
porque o corpo não é o que se vê
mas o que se tem na mão
e se dá ou pega
e é tão crucial e mundano
_________________________________________________________________________
Esquecimento

nestes dias nos quais me sinto
tão só e frágil
já sem meus pais sem minha mulher
ando com a sensação de que os anjos todos
se afastaram de mim
e minha memória se distende
dos acontecimentos usuais
para o infinito e percebo
que não nos esquecemos de nada e de ninguém
aí está a nossa infinitude
pois nas lembranças talvez se esconda
o futuro
_________________________________________________________________________
Estrada

está certo que a estrada
é longa e estreita
e não se sabe bem por onde vai
mas caminhando com cuidado
pode-se vencer as suas curvas abruptas
e seus barrancos
fugir de assaltos repentinos
pode-se caminhar com calma
desde que se aceite que caminhar
 em paz e sossegado
pode ser melhor que chegar
a algum lugar
_________________________________________________________________________
Estranho

o estranho é o início do desassossego
dessas ruas que não conduzem
desses passos tortos
o estranho é o difícil
noz escondida no dia
o que contém?
fechada exata
à espera de que festa?
ambulâncias passam sem parar
_________________________________________________________________________
Eterno Retorno

uma idéia
uma emoção fundamental
tomam uma vida inteira
percebe-se em certos autores
a contínua reelaboração
de uma mesma obra
um poeta que reescreve
sempre o mesmo poema
mesmo que alguém não seja
um autor um poeta
vive muitas vezes
sempre o mesmo dia
a mesma noite
as mesmas venturas e medos
às vezes sem perceber
em um eterno retorno
_________________________________________________________________________
Fala

nem sempre é claro
sobre o que se está falando
muitas vezes a conversa
vale pelo contato
e desanda sobre o inesperado
nem sempre a boca fala
do que o coração está cheio
como afirma o autor dos Provérbios
muitas vezes ela fala
porque o coração está
insuportavelmente vazio
_________________________________________________________________________
Falta

a falta se impõe no avesso
de um gesto ou de uma frase
solitária ou dita em uma conversa
ela não pode ser pressentida
antes é uma surpresa
percebemos que também ali
ela denuncia o afeto
a antiga relação
que perdida se supõe ou sublimada
a falta nos joga na cara
nossos sinais de menos
os imensos tesouros perdidos
preservados nos desvãos da memória
de seu cinzel
_________________________________________________________________________
Faroeste

o importante em um faroeste
é que o roteiro seja parecido com os de todos
o fundamental são as imagens
dos mexicanos em cidades desérticas
vestidos de algodão branco e sombreros
mulheres de saias largas em saloons nostálgicos
jogos de azar que culminam em mortes
índios à vontade e cowboys
que matam a sede com uísque sem gelo
o importante é que na hora de dormir
se corte a conversa pondo o chapéu no rosto
e as raras e felizes cenas em que alguém
consegue tomar um banho
o melhor faroeste é um B
mas aceita-se uma eventual obra-prima
como Sete Homens e Um Destino
ou um filme qualquer de John Ford
o faroeste agrada ao mais fino gosto
até o irascível Bob Dylan já estrelou
Pat Garret e Billy the Kid
o importante é que a justiça prevaleça
e que o mocinho esteja cansado de aventuras
e queira casar e montar um rancho honesto
_________________________________________________________________________
Feixes

apanho o feixe dos meus dias
como um camponês o seu feixe
cotidiano de lenha
e sigo curvado sob os meus dias
também poderia dizer:
apanho o meu bacalhau de cada dia
como o pescador no rótulo
da emulsão Scott
_________________________________________________________________________
Felicidade

estamos no fundo da caverna
e a sombra da felicidade
bate na parede no fundo
é difícil saber em que consiste
impossível vivê-la senão
como aspiração
como sair da caverna
como alcançar a luz
chegar a ver o sol e o mundo
que ele faz luzir
como pesar o imponderável
como sonhar de olhos abertos
e alcançar o indizível?
_________________________________________________________________________


Feras

meu enorme assombro
diante de cobras e lagartos
minha incapacidade de agir
frente a essas feras
que não nascem naturalmente
das selvas nas quais um Peri
um São Francisco
poderia dominá-las
mas do interior das pessoas
do interior inabalável
do seu desejo e ódio
que elas mesmas ignoram
_________________________________________________________________________
Festim

a vida essa insidiosa
não é possível viver sem cuidado
tomar Tróia com lança e frágil escudo
bêbado de bom vinho
e do amor dos deuses e dos excelentes
companheiros
antes é preciso olhar para os dois
lados da rua
não sair sem guarda-chuva
guardar o pescoço com cachecol
a vida essa dádiva perigosa
_________________________________________________________________________
Filhos

coisas que os filhos pequenos
não percebem nos pais
seu péssimo gosto musical
seu conservadorismo político
seu temor diante da vida
sua casca grossa entretanto
salta logo aos menores olhos
_________________________________________________________________________
Fogo

tão profundos somos
tão aéreos em nossos elementos
primordiais
tão profundo é o que comunicamos
que subimos e descemos
nunca os mesmos
como o rio em que nos banhamos
somos e não somos
que mais que a terra ou o ar
a água do mar saudável para os peixes
e salgada demais para nós
o fogo nos convém como origem
e destino
como passagem
_________________________________________________________________________
Força

nem sempre as pessoas fortes
têm a excelência a arethé
mas ao fraco custa ser bondoso
muitos fazem da sua vida
o reino dos infernos
e se vingam maltratando
quem é do coração
depois não sabem o que fazem
o que são ou sentem
confusos se perdem cruéis
nas suas lembranças
são mães pais amantes
não são indiferentes
são antes maus sem perceber
espalham seus males
como se fossem nossos
e à bondade chamam fragilidade
e nos julgam frágeis
quando apenas observamos
sua confusão
_________________________________________________________________________
Frágil

às vezes sem razão aparente
sinto minha vida frágil
meu peito uma caixa dolorida
os passos errantes
ou excessivamente cuidadosos
mantenho-me à tona da vida
como quem já vai embora
já disse as suas palavras
e agora se encontra com um silêncio
infinito
feito de delicado medo
andando pelas calçadas
com os passos quebrados
a vida museu do cansaço
do dito e do recolhido
e que agora passa
porque nesse dia a força me deixa
sem razão aparente
_________________________________________________________________________

da inteligência extrema de Agostinho
à fé agreste e sebastianista do Conselheiro
todos escolhem o que podem compreender
escolhem seu caminho no mundo estranho
conciliando ou não fé e razão
ou o fazendo com dificuldade
congregando ao redor quem pode
seguir o caminho que abrem
mas que um dia talvez se feche
com um crime como a da Tolerância
e Civilização republicana contra a Humanidade
ou com uma fé anacrônica
e sem alma como a de tantos hoje
_________________________________________________________________________

Deus o Grande Relojoeiro
criou um universo falível
no qual os astros se comportam
com surpresas
e o grande princípio regendo
os elementos e a vida
é o da incerteza
no qual os seres humanos
em seu pequeno planeta
tão favorável
têm permissão para destruir
tudo que é necessário e bom
das grandes florestas a relações humanas
das bolas de gude
à temperatura ideal para a vida
e as crises irrompem
no universo paralelo do dinheiro
com a licença dos tufões
nunca a fé foi tão necessária
nunca esse Deus artesão
precisou de tanta ajuda
de tanta compreensão
aos seus bons propósitos
_________________________________________________________________________
Garibaldi

1

eu era um homem do mar
mas face aos enigmas da terra
restava-me o céu
este grande livro no qual me habituara
a ler meu caminho

2


a coragem foi meu nome
e o amor pelos homens
pela liberdade e pela pátria
os amigos reconheci em um olhar
sofro por aqueles que se foram
em um lugar ignoto demais
para que eu coloque como sua cabeceira
uma cruz
_________________________________________________________________________
Garrett

o humor a ironia a crítica social
a escrita anti-convencional
digressiva
que amamos em Machado
não se encontra no romantismo pátrio
mas está em cheio em Garrett
do Viagens na Minha Terra
um livro no mínimo magnífico
_________________________________________________________________________
Garça

a garça se recolhe toda sobre si
e encolhe uma perna na beira do rio
porque como o sapo da cantiga
também está com frio
_________________________________________________________________________
Glosa

esses poemas glosas marginais
às dificuldades de vida
essa que não se inventa
e não pode ser como
um conto em que tudo
é verdadeiro e exato
porque é inventado
a vida que custa tanto
a se fazer e a se explicar
_________________________________________________________________________
História

a vida não se explica em um instante
é uma longa história
que se conta devagar
uma conversa puxando outra
como as noites de Sherazade
o mais importante é que as aventuras
se sucedam mesmo sem sentido
e se espante o olvido
se espante a morte anunciada
e apesar dos enganos e das ilusões
se goste desse turbilhão
_________________________________________________________________________
Homens

eu gostaria de acolher em mim
os homens e mulheres de todos os tempos
em especial os do futuro que anseio
por ser um desafio para o agora
mas também os da antiga Grécia
e antes do Egito e da Palestina
da Índia e da China sábias
os seus sábios e poetas
seus amantes do divino
mas também e principalmente
o homem rude que orou como soube
e sem saber foi rude mas amou
essa é minha pátria
os homens e mulheres todos
e os demais seres
que na sua natureza alçaram-se
também ao cosmo
e nessa pátria quero orar
aspirando com todos
a outra paria terrena que em nós
de alguma forma conviveu
_________________________________________________________________________
Incômodo

quando se vai envelhecendo
crescem os incômodos
era uma delícia tomar chuva
depois um bom chuveiro
hoje o corpo se retrai
à idéia de que possa chover
e a aragem da noitinha
que trazia as damas-da-noite
hoje é sinal seguro de resfriado 
sempre se fica à espera de um achaque
se algo não corre como em céu de brigadeiro
o humor deteriorado
a falta de força
ah a chatice da idade!
mas não em todos os que envelhecem
hà os que ficam velhos cantando
crendo em Deus e na vida
cercados de netos
escrevendo livros ou fazendo bolos
talvez se possa decidir
o velho em que nos tornamos
sábios como chefes tribais africanos
ou desolados e sós
mas como decidir?
_________________________________________________________________________
Intenso

assim intenso
corda de violino soando
contra o vento
assim intenso
arco teso mirando
o cego firmamento
assim intenso
ânfora mármore alaúde
rompe a crosta
do álacre ataúde
_________________________________________________________________________


José Lins do Rego

                                           Para Selma


a cadência repetitiva das situações pessoais
no plano dos conflitos locais
a exaustiva descrição interior dos personagens
pelos ângulos infindos de suas relações
a falta de pressa em observar e dizer
o que a história é
de que história se trata
de que gente de que lugar
a monótona e crescente asfixia
que priva os personagens de soluções
que não as contidas em situações limite
a escrita exata que contém
não obstante os labirintos da trama
o regional universal do amor
da angústia da saída impossível
configurados nos heróis dolorosos
este é o melhor José Lins do Rego
_________________________________________________________________________
João e Maria

no tempo em que beber
desmerecia um homem
no tempo em que a bebida
bastava como o elixir
dos tristes dos desesperados e dos alegrinhos  
e se punha desfecho em situações
ambíguas com uma pá de cal
no tempo em que jogar era um vício
e não a regra do jogo
e se voltava de madrugada
em plena São Paulo
dedilhando ainda o violão
no tempo em que os bons cowboys
fumavam como se suspirassem
e todos tinham um segredo
guardado a sete chaves
João e Maria viviam uma tragédia
com método e rigor
não com essa descontração toda
_________________________________________________________________________


Julgamento

ai de mim se tiver de mostrar-me
um homem bom no dia de meu julgamento
se neste dia tiver de mostrar-me
um homem justo e amante da justiça!
porque na maior parte do tempo
jogamos fora as nossas chances
atiramos fora a nossa condição
de pobres carentes de salvação
mas haverá um julgamento?
ou iremos como alguém
que nem é necessário considerar
sériamente?
_________________________________________________________________________
Lagartos


lagartos imóveis na via férrea
teciam uma aura de tardes
de faroeste
muitos anos vivi essa letargia
no lento amanhecer da adolescência
a rigor sem tempo
pura nostalgia muscular
puro corpo pura sensação
que depois redescobri nas aventuras
de Tom Sawyer e Nick Adams   _________________________________________________________________________
Legião


plurais e conflituados
nossa alma guarda
um demônio chamado Legião
como o que habitava o endemoninhado
e que a Jesus deu seu estranho
nome coletivo
Legião
 porque somos muitos
e quase não cabemos no mundo
nem nosso nem alheio
e rogam por nossa cura
mas não há o que curar
há que viver
que há muito Jesus se foi
com seu incompreensível poder
_________________________________________________________________________
Luzes

os antigos veneravam
o sol a lua e as estrelas
porque sem eles o mundo
seria tenebroso
assim a sabedoria era uma luz
que eliminava as trevas da alma
o próprio Eu Sou surgiu a Moisés
na sarça ardente
como fogo
e o nosso logos para os gregos
era o elemento fogo
porque inquiria o cosmos
e o acendia na humana precariedade
_________________________________________________________________________
Manhã

os ônibus passando
estremecem o solo do bairro
sob o sol os passarinhos
cantam e ciscam risonhos
a louça na pia grita
em tins de vidro e alumínio
tudo soa tudo quer viver
e nós também
_________________________________________________________________________
Mar


eu descerei o rio
que passa na minha aldeia
até o grande porto que dá saída
para o imenso mar
com os instrumentos que testarei
e que eu mesmo fabriquei
imaginando o mar
vendo correr o rio de minha aldeia
hei de ver o mundo como puder
como suponho
mas deixarei olhos para a maravilha
o inesperado que exalta
e pode enlouquecer quando se vê
uma imagem em algo
subitamente novo
e mesmo que eu torne um dia
à minha aldeia
sei que na verdade o retorno
é impossível
e que serei bem outro
e já sem berço em minha aldeia
terei todo o mundo para pouso
e os meus sonhos serão a imagem
dos sonhos desse grande mundo
_________________________________________________________________________
Margarida


você não decide
se bem me quer ou mal me quer
na dúvida se desnuda
restando apenas um coração
amarelo à mostra
espalhada pelo chão
o vento leva você onde bem quer
mas a empregada que quer
a varanda limpa
empunha a vassoura
como um insano quixote
_________________________________________________________________________
Materiais do mundo

a massa de pão fermentando
e o cimento fresco
têm em comum serem materiais
de construção do homem e do mundo
limpos como mãos de médico
cheirosos como bebês no banho
perfeitos como o ovo e a laranja
_________________________________________________________________________
Maturidade

na idade madura quase sempre
pensamos saber como agiremos
nas contingências da vida
quando essa ilusão se dissipa
pela violência das emoções
e não podemos ter o contrapeso
da juventude
culpamo-nos amargos ou deliciados
_________________________________________________________________________
Mendigo

o belo tem de ser recolhido
com as mãos postas
entre os restos recicláveis de lixo
desde há muito acumulamos
civilização demais
ela é estranha dá medo
a nossa tragédia se cumpriu
o bom e o racional morreram
de  excessos
agora é preciso refazer os votos
com a vida
erguer as mãos recolhendo
os restos de beleza e de bem
perdidos na fala e nos gestos
de cada dia
enquanto é dia
_________________________________________________________________________
Minas

o pior são as saudades de Minas
a Minas de Pedro Nava
da formação mineira
de onde se lança para o Brasil
e para o mundo
com um conhecimento prévio
de seu núcleo mineiro
a vontade de novamente
ouvir os poetas e músicos lá
e de madrugada mijar tranqüilo
nos muros
com a sensação de que já realizou
metade de sua tarefa na vida
quem conhece o seu coração
_________________________________________________________________________
Mingau

você é doce
quente e macia como mingau
de maizena
adoro você antes de dormir
ou quando estou neurótico
zanzando pela casa
sem porto
você me conforta
preenche meu vazio existencial
eu me acostumei
a ver você como indispensável
à minha felicidade
como as mães e as avós
só não posso viver de mingau
não é bom para a saúde
e um dia eu tenho de crescer

_________________________________________________________________________
Monge

não há quem mais se vote
à vitória que o humilde monge
andando no mundo
pelas mãos dos seus pobres
para eles é o reino de Deus
mesmo que tudo falhe
o Senhor chora com eles
o seu próprio morrer
é o princípio de uma vida
mais alta e infinita
mas também conhecem
a felicidade banal
dos homens simples porque
para eles é também a vida
deste mundo
seu pão e seu vinho
feitos de agora e de amanhã
_________________________________________________________________________
Motivação


no jogo do brasileirão o papo no intervalo
quer motivar os jogadores a virar o jogo
na luta contra o crime o bope
avisa seus soldados que o erro
se paga com a vida
na igreja católica ou evangélica
a conversa é motivação
para ganhar saúde e arranjar emprego
todos cantam rezam juntos
dão tiros para cima
falam na língua dos anjos
falou mano
antes se chamava isso voluntarismo
esse jogo vai dar empate
como devem dar os jogos
do campeonato baiano
_________________________________________________________________________
Muitos

todos os seres participam
da vida uns dos outros
de modo que todos são muitos
todos são todos
e querem seu lugar em cada um
quando à noite pensamos na noite
pensamos também no dia
e em sua bagagem
pensamos nas miríades de insignificâncias
que nos compõem
todas querendo seu lugar
querendo ser a primeira
pensamos também no que é grave
e importante
e no que é alegre e faz sempre falta
e tudo está em tudo
que cada um é o mundo
e o mundo é essa dispersão
sorrateira e constante
essa água no córrego
essa batida de moinho
_________________________________________________________________________
Mulher

o primeiro traço
a distinguir uma mulher
é a sua inteligência
mesmo as feias ficam lindas
com dez minutos de conversa
se são inteligentes
da mulher guardamos na memória
observações interessantes
o humor da fala bem medida
e bem endereçada
desde que não seja também
muito conservadora
_________________________________________________________________________
Mãos


o mundo oscila
seguremos nossas mãos
nada deve ser mais seguro
que nossas mãos
com os corpos próximos
respiremos tranqüilos
o incerto ar
nada é mais precioso
que os nossos corpos
enlaçados não esperemos
andemos no chão que treme
firmes serenos
façamos nosso caminho
nesse meio
façamos de nós nosso fim
e nosso meio
_________________________________________________________________________
Noite do meu bem

viva uma vez na vida
a noite do seu bem
mesmo que ele demore a chegar
traga-o com o olhar
e a ternura toda que tem para dar
invente esse bem
invente toda a beleza do mundo
em uma noite profunda
na qual coloque toda a exatidão
da rosa rosa rosa
muitos passam sem esse bem a vida
equívoca e sublimada
para essa rosa viva uma vez
a vida vida vida
_________________________________________________________________________
Noite

noite inquieta
o olho vara a imprecisa
fantasmagoria dos dias
lacuna forçada  que se quer recusar
pois se deseja sonhar
mas é preciso vigiar
como o farol inútil
num rochedo perto do qual
nenhum navio passa
vigia-se em vão
atormentado com os naufrágios
que não se sabe se virão
talvez não talvez não
gemem as ondas quebrando
nas rochas
quem sabe quem sabe
o olho o suor o medo
é sempre a fantasia de que é preciso
conjurar perigos
de que é possível
ronda a cabeça o giro torpe
dos que querem se salvar
num mundo onde salvação e perdição
não têm mais sentido
e se quer salvar não se sabe bem
o quê
já não se sabe mais fazer
o inventário dos males
a conta certa
o telefonema salvador
e não se pode esperar
nem deixar a esperança

_________________________________________________________________________
Nomes

na maior parte do tempo
conhecemos os nomes e as palavras
mas não sabemos do que se trata
_________________________________________________________________________
Nordestinos

quem é nordestino não precisa
explicar nada
tem toda a enorme vida do Nordeste
a matriz brasileira política e cultural
por detrás de si
quem é paulista precisa ser modernista
buscar o mundo
mas quem é nordestino está em casa
até os seus jeitos moderno ou conservador
mesclam-se e cantam de um jeito parecido
com gula de doce e de forró
e não precisa explicar nada
porque um nordestino nota-se logo
na rua e em qualquer sala
_________________________________________________________________________
Novela

alguém de muitas letras
tem vários porões
para os quais escapa
quando não quer ser percebido
em suas deficiências
alguém de poucas luzes
pensa sempre que sua vida
daria um romance
quando apenas é falsificada
nas novelas da tevê
ou em tom mais sórdido
é apresentada nos jornais
em qualquer sala
mas sempre oculta
ou obscurecida
_________________________________________________________________________
O Fundo do Ser

onde está o fundo de ser
começa nestas mãos
que escrevem este poema
continuam no poema
no que a mente pôde fazer
por ele
espalha-se na sala
nas frutas sobre a mesa
no gato que circula
esperando a noite
no fundo do ser há um mundo
um para todos nós
um para cada um de nós
um para cada dia
um que dura toda a vida
é estranho esquecermos tanto
o passado
ele é o depósito de todos nós
de nossos seres profundos
perdidos com as salas
que esquecemos
com as frutas comidas
com outros gatos de casa
mas o verdadeiro fundo do ser
vem vindo
um dia virá
que venha logo!
_________________________________________________________________________
Oração


e não nos deixeis cair em tentação
que apresenta o mal como o bem
mais útil e necessário
mas livrai-nos do mal
porque esta foi a busca
dos melhores dentre nós
mesmo dos que suspeitavam dele
com a candidez socrática
de que a virtude é inerente
à razão e à sabedoria
e imaginavam o mundo
como a Atenas da amizade
e dos banquetes sobre o amor
e a virtude
e não como a exaustão
de tanto quanto foi belo
e  inocente e bom
neste mundo absurdo
por sua insensatez tão imprópria
ao sentido da vida
e do cosmo
_________________________________________________________________________
Padrão

1
da Vinci não foi um gênio
mas antes um padrão pelo qual
medem-se os gênios
há no ar que nos envolve
pessoas extraordinárias
muito acima de nós
mas de repente nos agarram
 pelos cabelos
e nos tornamos por um momento
um pouco como elas
assim o pintor humilde
faz a primorosa aquarela
e o homem mau e sovina
cansa-se de repente
e torna-se humilde apenas
 alguém que vem

2
há canções tão belas!
é duro ouvi-las
melhor deixar no invólucro
dos seus discos
olhá-las saber que estão lá
mas ouvi-las
não se pode muito
_________________________________________________________________________
Pai

meu pai usava palavras
do seu ofício
jaleco amálgama cafua
e tinha gestos duros
como o de dar cascudos
 nos filhos
fazia como aprendia
eu penso nos meus gestos
e nas minhas palavras
no que eu aprendo e faço
_________________________________________________________________________
Paisagem

paisagem instável
as rosas florescem fora de lugar
e aves se calam no nascer do dia
o rio bóia sua lenta eterna descida
para o mar cada dia mais pobre
da vida que nos pariu
paisagem flutuante
da janela a cidade me cerca
entra na minha casa
pelo preço módico dos incômodos
e das inconveniências
minha vida é uma pista
pedestres cruzam carros atravessam
as preferenciais que criam
telefones cobram atrasos
dizem que tudo vai bem
que está melhor
os bois estão gordos
o feijão caro
e as faculdades particulares
ensinando mal em elevadas prestações
paisagem inútil
o amor tomou o elevador de serviço
eu humilde tomo meu balde
e meus panos de chão
_________________________________________________________________________
Palavras

o que me surpreende palavras
é não terem despido minha alma
não terem dito à última gota
em vãs tentativas de fazê-las florir
tolher atravancar dispor propor
isto que nunca saberemos
pois só somos meio falantes
meio poetas meio demônios
provincianos
meio piratas venusianos
o resto a ninguém pertence
eternamente falta
esse sinal obstinado de menos
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Parabelo

parabelo
litania punk de Tom Zé
porém nordestemente dançável
como um choro para vivos e mortos
os messias os bandidos do semi-árido
o povo apegado a rezas
corpo fechado enfrentando o status-quo
feiras de cego violeiro
de padres pais de família
tudo canta o mesmo som
o sangue que não adormece
de tão quente e precisado
nostalgia de quê?
do futuro
Canudos Pedra Bonita
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Passagem

da  passagem de alguém
por nossa vida pode restar
um breve traço
um gesto de mão um modo de rir
um livro que se empresta
uma casa diferente onde se almoça
um dia conversando temas adolescentes
são passagens para a vida
fímbrias de horizontes
que não se esgotam apesar de tão exíguas
são traços da sensibilidade
que se forma tão cedo
graças a esses espectros inolvidáveis
um nome um jogo um brinquedo
uma doença uma morte prematura
e a amizade que ainda
não se perdeu
entre a obscuridade do passado
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Passos

assim como um violonista
distingue a nota de cada corda
em casa se aprende a distinguir
o som de cada porta que se abre
os passos de cada um que entra
o barulho que cada um faz ao comer
ou ao mover-se descuidado
o sentimento e o sentido por trás
de cada fala
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Pecados

pelos pecados que cometi
íntegro e de boa mente
perdoai-me três vezes
três vezes Senhor
amém
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Perda


quem se perde dos outros
se perde do mundo
se perde de si
e não encontra na vida
um caminho
a vida se torna uma imitação
dos dias circulares
de desejos paralelos 
que ídolos cruéis impõem
ainda vivemos em dias
nos quais temos de abrir
caminhos
e obrigam a cuidados solícitos
a tecer direções
a despir as figuras de anjos
que preservam um mundo
que já não é bom
e pede homens amorosos
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Perdas


a vida se perde no que é
à primeira vista sem importância
no imponderável
o que a alma não tolera
a princípio parece tolo considerar
mas decide a vida
se vamos ou ficamos
somos por natureza sem muita grandeza
às vezes até mesquinhos
mas o que nos faz viver
isso amamos e não há leveza
maior que o pó que cobre a vida
e somos pó apenas isso
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Perder

viver é perder
ninguém se assombre
o cãozinho com que o menino brinca
há muito terá partido
quando este for um adolescente
o horror pelo verde
dará lugar ao prazer por saladas
as pessoas passam por nossa vida
quase sem deixar marcas
exceto as que ficam em nós
os amores vão e vem
nada é estável nem dura
se a única certeza é um dia morrer
vivamos o que vem
deixemos que a vida nos leve
sem grandes sustos e medo
antes com o possível prazer
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Perdido

eu andei meio perdido
distante dos amigos
dos hábitos que tecem
dia a dia a esperança
fui infiel talvez pensem
estive confuso
andei flertando com a solidão
e não foi bom
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Pinga


a pinga sempre foi considerada
um excelente digestivo e depurativo
do sangue
meu sogro tomva meio copo
com um melhoral
para sarar das gripes e resfriados
em caso de intoxicação
a pinga também é muito útil
devendo-se guardar entretanto repouso
após bebê-la
qualquer restaurante que se preze
serve um aperitivo com os mais
exóticos temperos
abre o apetite
faz a vida sorrir
padroeira do Nordeste
as melhores são as excelentes de Minas
mas o mais importante é o seu valor
medicinal
Poemas amorosos

quantos poemas feitos
sobre o amor
entretanto não poderiam
esgotá-lo
a respeito de pouca coisa
se pode dizer tudo
e sempre em um dado momento
em um dado momento
também se pode dizer
tudo sobre o amor
quando se quer esquecê-lo
_________________________________________________________________________
Poeta

o maior erro de um poeta
é dar a ler aos outros os seus poemas
mesmo Fernando Pessoa
morreu jovem, pobre, sem amigos
melhor guardar os versos na gaveta
melhor esquecê-los
 Almeida Garrett notou a infelicidade
dos poetas em tempo de prosa
melhor ser sóbrio e só
e nunca enlouquecer fazendo versos
a quem não sabe nem pode lê-los
_________________________________________________________________________
Primavera

cigarras
grilos
marulhar de rãs
meu coração apenas escuta
_________________________________________________________________________
Primavera

em frente à escola
os ipês amarelos trazem a primavera
na cozinha voltam as formigas
meu gato já apanhou um ratinho
e umas baratas
por toda parte volta
a  luta pela vida
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Promessas

enquanto eu voltava com o Higienópolis
para o Bairro Alto
o ônibus cheio dos uniformes azuis
dos meninos do Colégio Estadual
e das mocinhas que saem do emprego
e pegam o período da noite na Unibrasil
as calças justas a blusa curta
apesar do frio desta cidade inóspita
o sol desceu
e eu cheguei no terminal de ônibus
cálido de beijos e cigarros
vendedores de dvd pão de queijo
churrasquinho de carne e de frango
gente se amassando voluntária
e involuntáriamente
a noite é sempre uma promessa
embora perigosa
mas vive-se de promessas
e de dívidas
_________________________________________________________________________
Pupila


nós somos pessoas complexas
por isso conheço a pupila
do seu olho
sei as paisagens que ali se abrem
porque são as minhas
sei o que você não vê
porque são meus esses pontos cegos
quando você ri sei bem
o que o incomoda
quando eu rio você sabe
o que eu tenho de perigoso
mas não me deixa sozinho
porque precisamos um do outro
para ver o mundo
_________________________________________________________________________
Pátio

pátio molhado da chuva
onde estão os sapos de antigamente?
os que chiavam como crianças chorando
entristecendo minhas noites de estudo
eu sou um homem pobre
preciso de companhia
os reflexos dos postes iluminam
os namorados que se arriscam
na noite fria
um leva sua bicicleta na subida
outros estão nos muros dos pontos
de ônibus
é bom ter um amor
onde estão os meus amores?
os meus poucos amores
de pessoa tímida e recolhida
vou mandar esse poema para o Japão
e conquistar uma japonesa
_________________________________________________________________________
Quisera

Para Rosana, com amor


eu quisera destruir esta paisagem
que não me acolhe
que não acolhe os pobres os tristes
os sem juízo os amorosos
com um poder ultraeletromagnético
eu quisera dissipar essa penumbra
que põe mágoa nos olhos
a lágrima contida
e fazer nascer um arrebol
com tudo que eu tenho ainda de criança
meu medo de perder minha vó
de passear só em Paris
bem sei que Deus fez o sabiá
que não há cores como as das flores
todo dia me perco em meu jardim
e não alcanço o ônibus na rua
para onde irão? o ônibus a rua
quanto a mim buscarei minha eterna origem
esse mito dos desenganados
mas já não morrerei de tuberculose
que essa maldição já tem cura                     
_________________________________________________________________________


Relações

difícil começar
ou interromper relações
ambíguo cheio de perguntas
melhor o correr dos dias
a esperança de não ficar só
de que alguém ficará ao lado
e as ilusões e desilusões
cederão a uma conhecida amizade
mas isso não vem sozinho
exige uma base mínima de paz
e o dom de recomeçar
sempre que preciso
os homens e mulheres
confiam em sua esperança
esse é um dos requisitos
para a sua humanidade
para contar o tempo
medir distâncias
lembrar o que deve ser lembrado
e sempre que possível
deixar de lado ou perdoar
 o resto
_________________________________________________________________________
Retrato

meus retratos tristes me seguem
pelas estantes da casa
pelos documentos de identificação
nos quais me posto sempre submarino
como um inexato peixe
vagando em copos de cerveja
translúcido como meus olhos
olhando adiante atrás
para os três tempos
nunca me perdendo
sempre igual a mim mesmo
siderado
mas nunca aqui e agora
porque sempre estou atrás ou adiante
e nunca estou comigo
_________________________________________________________________________
Rosa

amo o azul do céu
o verde da relva
mas da rosa amo a rosa
no céu amo o arco-íris
as nuvens a chuva os balões
quando é São João
mas na rosa amo a rosa
na relva amo os besouros
a espécie mais numerosa da terra
a mais amada por Deus
amo as flores várias
e as crianças soltando pipa
mas na rosa amo apenas a rosa
a rosa completa a rosa transitiva
ponte para todo ser
mas que entre todas as flores
sabe ser rosa
a rosa em si e a rosa em tudo
princípio e rastro do mundo
_________________________________________________________________________
Saudades

tenho muita saudade das moças
de vestidos leves o rosto incisivo
de quem lê romances franceses
e acompanha as mudanças no mundo
tenho saudade das Áureas
das Yolandas das Noêmias
mas sobretudo muita saudade
das Adalgisas
meu paletó de linho
_________________________________________________________________________
Saúde

o amor nasce sozinho
em quem tem saúde
não são necessárias cruzes
 no caminho para que ele
nasça
as pessoas sãs amam a si
e aos outros
amam o dia a respiração
o corpo a vida boa
e os desejam como bens
de todos
as cruzes são sinais de falta
assinalam uma carência
o quanto distamos do amor
mostram nossa fraqueza
nosso desamor
nossa pobreza
a fome a enfermidade
assinalam distâncias
separações
daí sua advertência
do quanto há em nós
um ainda não
_________________________________________________________________________
Senhor

não encontrei o Senhor
entre os meus cálculos
minha razão não pôde anuncia-lo
mas sim as palavras tão simples
de velhas histórias da infância
que ficaram indeléveis comigo
e me impediram de ficar só
abandonado
_________________________________________________________________________
Sentir

saber o que se sente
não é dom gratuito
exige sabedoria
e esta método e vagar
não à toa os antigos
conversavam entre si
sobre o amor e a amizade
porque não são óbvios
nem se descobre por intuição
exige a mediação do outro
paciência e rigor
para serem definidos
e assim apuravam
as qualidades da alma
que aqui erra
desejando uma origem
clara e eterna
_________________________________________________________________________


Ser

ser é mais vasto que dizer
embora seja repleto de signos
estes têm uma gramática inconclusa
assim os surrealistas se aproximaram do ser
derretendo relógios ou colocando
na cena uma inusitada máquina de costura
por ser nem tanto inconclusa quanto plena
em demasia para o que vemos
quase sempre do ser
dizem que o ser é uno luminoso vazio
repleto de tudo
como pensar isso? calando
ou dizendo superlativos
_________________________________________________________________________
Sertão

que o sertão também é o mar
embora este negro
e o primeiro mais índio ou mameluco
e com seus próprios deuses
e rainhas
como sertão é o pampa
e pampa é a floresta
e o pantanal
mas a cidade grande não é nada
aqui não é vida
não há a santa misericórdia
e a esperança
e o abençoado anúncio do fim
princípio das coisas do alto
_________________________________________________________________________
Shantideva

um relâmpago na tempestade
mostra o caminho
_________________________________________________________________________
Silêncio

para onde foi o que se foi
para onde foi o esquecido
a infância perdida
a juventude perdida
tumulto de amigos
 que não pudemos conter
tumulto do nosso incontido
a vida sob tantos gestos
tantas conversas que teceram
nosso precário momento
o que conversamos?
hoje silêncio silêncio...
_________________________________________________________________________
Sinais

antes quando fazia um calorão
as pessoas sabiam dizer:
à tardinha vai chover
ou quando o poente era rubro
diziam: amanhã fará bom tempo
mas hoje ninguém diz nada
com propriedade
esta geração não sabe distinguir
os sinais dos tempos
_________________________________________________________________________
Sonho

a vigília não é exata
como o sonho
nem tão terrível
a verdade não mora nas ruas
durante o dia
ela é dom noturno
presente de um deus
ambíguo
mas que a ninguém
esquece
_________________________________________________________________________
Sonhos

o surpreendente e o coloquial
entrelaçam-se nos sonhos
para os quais tudo é eterno
infindo significativo
como um céu platônico
quando não nos dana demais
os sonhos são claros
quando não passam em segredo
uma chave que teremos
de procurar mais tarde
até nos sobressalta acorda
como se fosse demais
vivermos conosco
para o dia perdemos os olhos
porque está muito distante
à noite despertamos
para o mais íntimo e real
prazeroso ou tirânico
_________________________________________________________________________
Sábios


eu não te amo obsessivo
te amo calmo quando posso
um pouco tenso às vezes
mas sem cálculo
e sem grandes pretensões
eu não te torno um seguro
contra as agruras
porto contra o tufão
te amo dando a mão
para caminhar mais gostosamente
tudo o que sinto
me faz companheiro
para como São Francisco
mudar o que pode ser mudado
ter paciência com o que não pode
e ser sábio para distinguir entre ambos
solidários andamos
há muito perdemos a chance
de sermos sós e sem carinho
_________________________________________________________________________

estou só e é impossível
te mandar um telegrama
sem perceber tornei-me distante
não cabe mandar pelo Morse um s.o.s.
a tua falta é um problema analisável
por este ser meu tão racional
pior para mim que não sei
distinguir o eterno no que passa
que não sei te ver baliza rastro
em minha vida que coloco
em instâncias subliminares
do olvido e do pó
pior para você que tem um amigo
tão no seu canto
que um abraço é possível
assim como ver o cometa Halley
e que no entanto  ama
amar esse verbo sempre intransitivo
que te percebe tão bela
adornada por todo o humano
e torna-se pequena para que o filho cresça
para que não pereça o encanto
do incondicional entregar-se
e navegar na vida
que quase todos ignoram
por pequenez e inconstância
e que eu procuro errando sempre
o endereço
_________________________________________________________________________
Tarde de crianças



a tarde no verão enche a rua
de crianças jogando bola
ou descendo as ladeiras
em carrinhos de rolimã
que elas mesmas constroem
em mutirão trocando
peças entre si e muito esforço
também se anda muito
de bicicleta se faz papagaios
a maioria das brincadeiras
custa barato só é preciso
o tempo que as férias dão
as meninas brincam separadas
há grupos de meninos
e de meninas mas às vezes
se misturam em geral
nos domingos que reúnem
os pais e avós e os primos
trocam cd’s de videogame
a tarde se abre com suas velas
para um puro prazer
de gastar energia e amar amigos
indiferentes aos fatos graves
que preocupam os adultos
as crianças são soldados
da Ilíada
incessantes plenas vitais
_________________________________________________________________________
Tarde

eram duas senhorinhas
muito frescas para o calor da tarde
trocavam entre si as pequenas
maldades da vida
varrendo a calçada e regando o jardim
nenhum vizinho escapava
aos seus olhos
sabiam de tudo da rua e do bairro
mas eram muito bravas
exigiam os seus direitos
que ninguém cantasse alto à noite
que ninguém chegasse muito alegre
nem fizesse algo pior
eram o próprio tribunal do santo ofício
prontas a queimar em fogo lento
a menor falha
se eram mesmo falhas
as contingências em que se vê
quase sem querer de vez em quando
_________________________________________________________________________
Teatro

Marta sucinta medida apolínea
disse na única vez que falamos
que fazia teatro se eu sabia
a importância do teatro
naquela nossa atualidade
eu amava futebol
timidez doentia apesar
dos níveis de testosterona
não respondi olhei
Marta descer balançando
a rua
_________________________________________________________________________
Tecer

esta senhora tão postada
na paisagem da tarde em sua sala
com as agulhas na mão tece
seus pensamentos nos quais flutua
com rápida nitidez
o mundo seu se une em uma abóbada
sob o qual se recolhe
como a virgem em seu díptico
mas as suas mãos não sabem nada
apenas seguem
como o sol
segundo a sua destra natureza
_________________________________________________________________________
Tempestade

1

a tempestade vai passar
como nuvem rósea ou sol claro
como dia perfeito para um piquenique
ou destruindo antes tudo no caminho
a tempestade vai passar
deixando dias claros até outra tempestade

2

as coisas ficam sempre onde as deixamos
mesmo que não lembremos onde
os mecanismos funcionam
pelo menos até faltar energia ou quebrarem
são feitos para durar sem liberdade
para fazerem outros programas
mas o mundo crucial não é assim
ele surpreende muda
como a tempestade que antes de passar
varre o Caribe de beleza intensa
_________________________________________________________________________
Tempo


no íntimo você não se preocupa
com o dia de hoje
mas com um tempo de seu coração
para onde confluem
passado presente futuro
as imagens se trocam
evocando as imagens arquetípicas
daqueles que formaram
seu ser seu meu
para esse tempo você sempre volta
nos sonhos e a custa o oculta
no dia pois é pesaroso
mas oblíquo te espera
nas tuas fraquezas
e sempre te diz mal você saiba
_________________________________________________________________________
Tenda

essa minha humana condição
tão frágil
foi a de Jesus e de Buda
contam-nos as histórias
dentro da matéria do mundo
somos com eles matéria
e queremos ser com eles sentido
 do mundo e de sua matéria
sua força criativa e sua revelação
assim queremos
em nossa fragilidade
contam as histórias que um dia
o sentido do universo e do homem
se fez material humano carne
e armou entre nós sua tenda
andou com seu bastão
e sua tigela
tudo em nós paciente se faça
se cumpra
imitação dos grandes seres
que cumpriram seu sentido
humildes imitemos
como quem se descobre
e toma sobre si sua vida
e a dos outros
_________________________________________________________________________
Tentativas

amassei várias vezes a brasa do cigarro
entre os restos no cinzeiro
um olho fechado para evitar a fumaça
o pensamento fixo que torna o tempo
incoerente e imóvel
inúteis as tentativas para não ter de conviver
com todo o absurdo que cerca a vida
mesmo de um cara simples como eu
inútil tentar livrar a cara
vou tentar manter a leveza possível
dizer bom dia aos que passam
abotoar a braguilha quando for ao banheiro
e escovar o dente da manhã
quem sabe iniciativas como essa
dêem a leve impressão
de que a vida é convidativa
de que essas são questões de somenos
de que ainda não é preciso apelar
como Philip Marlowe quando está exausto
para dois uísques duplos
_________________________________________________________________________
Tom Jobim


Tom Jobim morreu sem aviso
ele era ainda novo e bonito
cheio de alegria e de certa inconseqüência
que os amantes da vida têm sempre
por exemplo em suas letras
entretanto era um príncipe entre os poetas
o melhor dos maestros
morreu como quem vai à esquina
comprar cigarros
_________________________________________________________________________
Trevas

a noite é negra
mas mais negro é meu coração
triste destino o do talento
buscar consolo em versos ralos
cingir seu crânio de louros divinos
e depender de charutos e clorofórmio
amar as grandes amantes
e contentar-se com as moças simples
que o amam mas não atingem
chorar lágrimas acerbas
sem um sentido preciso
exceto o que se respira
na noite negra do estro desperdiçado
na cidade que dele prescinde
na burguesa mediocridade dos contentes
ergo minha taça de louvores
ao amanhã que dessas correntes
irá me libertar
e a todos os byrons perdidos
nos subúrbios
a cabeça rolando
sobre espumas flutuantes!
_________________________________________________________________________
Universo

ao contrário do que muitos pensam
o universo não anda como um relógio
antes são os relógios que
devem ser acertados pelo tempo
do sol e dos planetas
_________________________________________________________________________
Utopia

1

Furtado já nos falava
desta aldeia chamada Babilônia

2

também nos falava que as utopias
devem nascer da sociedade civil

3

ao Estado cabe ser uma arena
para a construção da utopia e do futuro
_________________________________________________________________________
Vacuidade

tudo que existe está repleto
do que existe em torno
do que existiu um dia
e se projeta para o futuro
como o seu legado
tudo o que é
é unido a todos os seres
e lhes dá existência
perceber isso elimina o abandono
mas lembra a responsabilidade
universal pela paz
nossa e alheia
pois nada é dual e tudo fala
por uma só voz
a isto se chama estar vazio
de todas as pretensões
_________________________________________________________________________
Ver

não acredite em tudo
que você vê
melhor: não acredite
nem na metade
sossegue: para pior ou melhor
o mundo é sempre
bem diferente
do que pensamos
_________________________________________________________________________
Versos

gostaria de fazer versos
como John Donne como John Keats
gostaria de fazer versos
como Manuel Bandeira
mas sou um homem modesto
faço versos com a minha cara
fragmentos de pensamento
do fogo elementar
 que me cozinha lento
_________________________________________________________________________
Viagem

em nós nada começa ou finda
não há um ponto morto
a partir do qual engatar a viagem
consultar mais uma vez os mapas
a viagem não cessa
embora sem propósito
sem destino
não há um eixo silencioso
a partir do qual ordenar
o que parece fora de lugar
há silêncios mas são breves lacunas
onde se reata o marulhar infinito
do sangue do pensamento
nós não esquecemos
tudo nos pertence
queremos tudo que é nosso
o mendigo mais humilde
é o rei de sua cabeça
e em torno dela tece
guirlandas de pretensões
e de sua vida desapercebida
mas sempre vida
tão extenuante e veloz
quanto qualquer outra
_________________________________________________________________________
Vida

quando perdemos um amigo
dizemos é a vida
quando nos sentimos doentes
dizemos também
se nos passam a perna
dizemos é a vida
quando nossas forças não bastam
é sempre a vida
de modo que a vida entre nós
não tem bom conceito
_________________________________________________________________________
Vingança

eu guardo minhas mágoas
em papel de bala
para derreter na boca
à noite na cama
que é lugar quentinho
para se chorar
com gosto apuro
minha vingança
que é ao contrário
 um prato que se come
gelado
doce como sorvete
_________________________________________________________________________
Virgens

oh virgens
oh vestais divinas
aos vossos pés de vento derramo
minhas lágrimas de purpurina
oh divas salientes
oh metafísica
lanço aos quatro pontos cardeais
minhas decepções sentimentais
oh carnavais
que acenais com o ás
oculto nas mangas
oh incansável eu que vos persigo
vestido de catavento
_________________________________________________________________________
Yma Sumac

hoje parece estranho
mas naquele tempo
a orquestra usava todos os recursos
para acompanhar a voz altiva
de Yma Sumac em The Virgin of Sun God
e os mambos se sucediam
na voz ora aguda ora muito grave
bamboleando pela tela da televisão
 nesse momento mamãe aproveitava
para ir ao banheiro
eu esperava a próxima atração
hoje já lamento não ter apreciado
tudo como deveria
_________________________________________________________________________
Zen

vez ou outra lúcido
vez ou outra sóbrio
vez ou outra sólido
vez ou outra zen
_________________________________________________________________________
Às vezes

às vezes sem graça
às vezes sem sal
às vezes sem ar
às vezes sem chão
às vezes só sem dinheiro _________________________________________________________________________
Água

aguaceiro
faróis tremeluzem
caos no transporte metropolitano
desejo de casa e sono
sob as marquises do mercadorama
taxistas e sem teto disputam espaço
a telefonista compra pão de queijo
e um potinho de iogurte
os motoboys entregam pizzas
porque há quem coma pizza em casa
quando chove
os estudantes se agarram às mochilas
o ar abafado enche
o pulmão comum da cidade
antes considerada do primeiro mundo
hoje em eleições anódinas
nas quais os mesmos vereadores
manterão as mesmas clientelas
a chuva não lava nenhuma sujeira
e acumula papel molhado
nas bocas de lobo
a cidade não precisa de chuva
a tarde anacrônica
é uma sopa indesejada
que não mata a fome de ninguém
_________________________________________________________________________






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