segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Teologia da libertação

entre as dificuldades que sempre tive para idealizar a teologia da libertação, como tantos ao meu redor fizeram, está uma virtual identificação da teologia do Antigo Testamento com a luta de classes. conheci agentes de pastoral que tinham enorme dificuldade para entender os escritos de Paulo porque preferiam a história das lutas pela Terra Prometida como um modelo ou uma história exemplar das atuais lutas do povo de Deus. não tenho dificuldade para aceitar a luta de classes nem a existência de um povo de Deus mas não aprecio especialmente a conquista de Canaã nem vejo nela um projeto divino. como uma teologia histórica, com muita frequência os que a admiram percebem que vivemos na história e temos de agir aí como seres contextualizados a partir de nossa situação de pobreza, mas esquecem que vivemos também na eternidade e que não é possível reduzir a eternidade à história.


                                                      Igor Zanoni

domingo, 21 de setembro de 2014

Reino


quando o cego passava na tarde ensolarada eu me sentia preso em outro tempo, doloroso e incerto. uma das suas mãos tocava o ombro de um garoto, que o guiava, e vendia vassouras coloridas e rodos. quase todos os cegos vendiam tais utilidades domésticas, mas nunca vi minha mãe se interessar por estas assim oferecidas. seus olhos não eram protegidos por óculos, que então eram caros, e apareciam turvos e brancos, incapazes de dar ao rosto uma direção ou um semblante que eu reconhecesse. este era um momento silencioso e de pesar, como o das procissões, e me parecia que o cego vivia em um reino que não era deste mundo.


                                                                  Igor Zanoni

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Alberto

1
embora fosse economista como eu e , também como eu, formado no velho departamento de economia e planejamento econômico da unicamp, alberto era culto, algo raro na tribo, e adorava ler filosofia e ciência tanto quanto beber seu natu nobilis. disse-me em um dia mais ameno que einstein baseara toda a teoria da relatividade na proposição de que algo se move. isto porque, se algo se move, todo o mais se move. sorriu confiando-me essa magnífica ideia. eu não conhecia como não conheço nada sobre isso mas gostei muito do que ouvi, e passei a aplicá-lo a quase tudo na minha vida.

2
desde sempre, parece-me, li interminavelmente moby dick, primeiro como uma aventura terrível, depois cercando-a de símbolos e compreendendo a baleia como deus, a vida, o inconsciente e assim segue, mas a estória fica melhor sem essas intermediações pois simbolizar o símbolo é tolo e redundante. nunca saberei o que é a baleia, mas morrerei dela da mesma forma que o capitão ahaab, em alto mar com um arpão na mão e uma ideia fixa na cabeça.


                                                                           Igor Zanoni


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Tímido

a cabeça inquieta
uma conversa para ganhar tempo
enquanto penso em outra
mais adequada e propícia
se é que existiria
se é que eu poderia
nessa péssima impressão que eu crio
com essa figura no entanto tão minha
tão o que sou
e que você não percebe ou não liga
girando rápido o rosto para ver
um cacho do seu cabelo
depois quem sabe se tenho sorte
a cor dos olhos e a umidade da face
e poder ter elementos nunca suficientes
para sonhar seu rosto
amealhando tentativas
alívios breves diante das fontes internas
do meu pesar e contentamento
entrelaçados como rosas
que você não recebe
não presta atenção

                                                  Igor Zanoni

Mitopoético

todos conseguiram entrar no fusca mas já dormindo com a exaustão da noite eu me aguentava melhor e dirigi até Campinas devagar sob a tempestade os vidros fechados os óculos colados na estrada invisível ouvindo incansáveis baladinhas de paul mc´cartney tudo muito lento e calmo como prometia não ser a vida


                                             Igor Zanoni