domingo, 26 de outubro de 2014

Semente


um verso budista diz que assim como uma semente de gergelim é repleta de óleo, assim a vida é repleta de sofrimento. mas o sofrimento é uma percepção de sua própria vida à qual uma pessoa pode sempre dar conteúdo novo e ativo, re- significando e redirecionando-a. em um homem ímpar nesse sentido como francisco, a crise existencial que nele se gestava, até se abrir em longa enfermidade e depois em uma cura, implicou muitas perguntas, tentativas práticas de seu encaminhamento até uma serenidade obtida apenas próxima da sua morte. a igreja buscou apropriar-se desse itinerário criando a lenda de que francisco recebeu os estigmas da cruz, mas francisco não foi jesus nem duplicou a vida deste como modelo, o que seria impossível pois tinha sua própria vida, seu próprio sitz in lebem. tinha sua própria história permeada de suas perguntas e da busca de sua liberdade, e entendia jesus, como todos nós, de sua própria e particular maneira. apenas francisco pôde sofrer de sua própria, inconclusa e aberta maneira, de modo criativo e sem resignação. a vida não é repleta sem mais assim desse sofrimento, tanto que se reconheceu muito tarde a dimensão da figura ímpar de francisco diante de seu tempo, que a igreja logo percebeu e buscou neutralizar.   


                                                               Igor Zanoni

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Tomar conta

eu e heliana nos conhecemos há muito muito tempo, e vivemos mais do que poderíamos contar, com mais pessoas do que eu mesmo poderia lembrar, e hoje me dói saber que ela vive no outro lado do mundo. mas o melhor que recebi nesta amizade foi andar conversando por ruas compridas no centro, eu muito mais ouvindo, é verdade, e sem compreender muito, é mais verdade ainda. as mulheres são perfeitas quando cuidam de alguém, quando fazem companhia sem medir o tempo, apreciando o sol quando aparece e um sorvete mesmo da kibon.  claro que são perfeitas de muitos outros modos, pois elas são reconhecimente superiores aos homens, mas chegam a um degrau além  quando nos põem ao seu lado e quietas tomam conta de nós como algo mais que o dia traz e aceitam, quando gostam disso, é verdade.


                                                                    Igor Zanoni

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Dinheiro





é claro que o governo deve dar
dinheiro para quem não tem dinheiro
e para quem tem também é muito claro
o dinheiro não traz felicidade
o governo também não traz nunca felicidade
mas não queremos que o governo nos dê felicidade
queremos que dê para todos nós apenas dinheiro
o resto fica por nossa conta
ele só precisa fazer a sua parte
                                                                                  Igor Zanoni

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Massas

nos promissores anos vinte, oswald de andrade, entre outros, decidiu por um fim ao “lirismo comedido” e escravocrata ainda característico da poesia brasileira. contra tudo isto escreveu o lapidar: “amor/humor”. filiou-se ao recém fundado partido comunista do brasil, onde encontrou aversão por uma poética que não seria supostamente compreendida pelas massas e não poderia assim se tornar agente da revolução no país . oswald respondeu com sucinta elegância : “ um dia as massas vão comer/ o biscoito fino que fabrico”. ele foi nosso brasileiro vielímir maiakovski. muito novo comprei o “poesias reunidas oswald de andrade” e mais tarde lembrava estes poemas com geraldo e renato, discutindo balanço e perspectivas no limiar da nossa vida adulta.


                                                                      Igor Zanoni

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Lucidez


o Senhor Buda viu nossa psique não como átman ou ser cuja natureza é necessário compreender para que retorne em um ponto de nossa trajetória a uma comunhão com Bhrama. preferiu vê-la como um agregado de muitas disposições, que mantém uma solidariedade ao mesmo tempo que uma nociva dispersão, ligadas à nossa ação e à nossa visão do que acontece. ele não criou uma ontologia, antes uma prática para a busca da felicidade baseada na compaixão, substantivo que se desdobra em bondade, gratidão, generosidade, equanimidade, amor, paz, paciência e muitos outros. é uma sabedoria como prática da virtude, é uma prática da sabedoria que se herda dos ensinamentos e se experimenta,  a partir de nossa criatividade, do autoexame meditativo no ponto do nosso caminho, do tempo que é preciso transformar . tampouco os ensinamentos devem ser examinados como condição para serem experimentados, pois antes disso devem ser experimentados, assim como alguém picado por uma cobra deve tomar um antídoto ao invés de indagar especulativamente sobre a cobra. conhecemos muito pouco de nós, mas é possível ser criativo nesse desconhecimento, não nos conformarmos ao que nos coube e aqui nos trouxe, fugindo da ignorância e do fatalismo, como é prudente fugir de uma casa em chamas. nisto consiste a lucidez, se não com desapego, ao menos sem demandas afetivas  desastrosas.


                                                                    Igor Zanoni


domingo, 19 de outubro de 2014

Lírios


certos lírios de cristal
não podem ser ditos
mas os guardamos bem
em jardins perenes
aí a esperança não se extingue
qualquer ação pertence
a um tempo seu
para o qual convidamos
tudo o que sabemos e não sabemos
o que passa ( o vento o rio a tarde o amor )
acompanhamos minuciosos
como uma criança correndo
em um parque
porque é criança e há um parque
mesmo que digam sempre
como somos tão crianças


                                                                 Igor Zanoni