terça-feira, 20 de setembro de 2016

Um bolo de ameixas



ela usava um piercing entre os dentes incisivos, duas bolinhas prateadas. olhava para mim de modo insistente, mas sereno, enquanto embrulhava o bolo de ameixas que eu havia comprado. avisou que agora ela fazia também bolos com recheio e cobertura, que havia levado um para o aniversário da filha, perguntou se eu não queria experimentar. ela era alta, vinte e tantos anos, usava um anel também prateado na mão direita  mostrando que não era casada mas tinha um compromisso sério com alguém. olhava com insistência, repito porque isso me atraiu e incomodou ao mesmo tempo. passei a imaginar a vida com sua filha, quantos anos teria a menina, se ela era filha também de seu namorado, se a moça ia se casar ou se iria trabalhar fazendo bolos na loja para manter as duas. bom, a cabeça dá voltas, alias bem previsíveis. a moça não era bonita nem feia, era uma jovem, os jovens em geral são interessantes, ainda mais com o piercing estranho e as mãos lentamente embrulhando meu bolo de ameixas. demorei mais para sair da loja do que eu planejava, fiz uma compra vagarosa, olhando e pensando na moça que me olhava falando do aniversário da filha e dos seus bolos com recheio e cobertura, talvez não costumasse falar com ninguém e não falasse comigo senão para se distrair. seu piercing brilhava, ela possuía uma boca com dentes compridos, toda ela era longilínea, as mãos também eram grandes, e embrulhavam devagar o bolo, era um bolo simples, redondo, com ameixas, parecia gostoso, ela devia ser mesmo uma boa doceira, tinha um jeito doce também, agora digo, na hora não disse, nem a mim muito menos a ela, aliás, tenho um imenso talento para manter-me reservado especialmente em situações que me confundem.


                                                                   Igor Zanoni

domingo, 18 de setembro de 2016

Apenas um toque


as minhas mãos nas suas
não solte não me deixe
sinuosos meus dedos se enroscam
entre seus dedos
em confiados movimentos
não me deixe em minha vida perigosa
você é tão serena
brinca com o que passa
por favor não seja esse o meu caso
retenha-me prenda-me com suas unhas
estamos andando eu tão inseguro
atenha-se ao que faz
leve-me pelas mãos
eu não tenho medo do ridículo
basta me tocar
com a pontinha dos seus dedinhos


                                                                 Igor Zanoni

sábado, 17 de setembro de 2016

O Inventor da Solidão




em certo ponto do caminho a memória torna-se uma tarefa específica, a de recuperar e conferir sentido a uma vida entremeada de personagens especialmente vigorosos, com as quais mantivemos e ainda mantemos uma relação em diversas paisagens geográficas e emocionais. esta relação, à medida que lembramos, recolhemos em histórias que confluem, como regatos que chegam a um rio maior, ou como histórias dentro de histórias, sejam as da vida cotidiana ou aquelas que lemos na infância, como a de Pinóquio, ou do profeta Jonas. estes submergiram no ventre de um monstro e na sua escuridão sentiram-se sozinhos mas capazes de articular a solidão com a memória e com uma liberdade enfim conquistada pela ação e pelo valor. a história se preenche pois com a relação ambivalente ( cálida entretanto) com o pai e a sua projeção no relacionamento com o filho, como o que veio antes e o que veio depois, como a pessoa que fomos antes e fomos mais tarde, a pessoa que inventamos, dando à palavra invenção sua carga de criatividade com a herança de nossa bagagem. assim fazemos nossa história no seu delicado e complexo percurso, até chegarmos ao momento em que colocamos, como no livro de Paul Auster, a folha em branco outra vez à nossa frente e só podemos escrever: “Foi. Nunca mais será. Lembre-se.”



                                                         Igor Zanoni

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Inquietude

deste momento sou sempre arremessado
por um desejo que não reconheço
enquanto meus pensamentos correm
tecendo a trama de uma solidão inconsútil
meus olhos fixos trazem a nostalgia
de um lugar preciso
a quietude de um dia parado
o mormaço bom de dezembro na praia


                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Talento



remexendo com um espeto
(cuidado com os respingos ferventes)
este tempo que parece infindo
mas que apenas repete
um parêntese na vida da humanidade
travo na boca
meu maior talento
o assíduo exame da vida interior



                                                              Igor Zanoni