quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Baú 9

Zen

vez ou outra lúcido
vez ou outra sóbrio
vez ou outra sólido
vez ou outra zen


                           Igor Zanoni
Querer

falando de coisas que não estudei de forma sistemática e nas quais sou especialista como ser humano, penso que o que marca o ser é uma falta original. os psicanalistas localizam essa falta na gênese biológica e cultural da criança, que separa-se da mãe ao crescer em um processo doloroso e às vezes traumatizante. essa falta não pode ser suprida.todos sofremos dela, por isso os lacanianos nem falam em terapia ou em cura, não usam os termos psicanalista e analisando. não há doença nem cura, mas a matriz conflitiva do ser. mas esses conflitivos tornam o desejo humano uma força pessoal e cultural da máxima importância. associa-se sempre em religiões arcanas como o budismo a idéia de salvação à extinção dos desejos, ao abandono da roda da vida , identificando desejo a apego, a fixações do ser em inúmeros entes sociais e ao esforço contínuo em validar para si e para os outros essas construções. daí uma via longa que vai desse reconhecimento à sabedoria , tal como inicialmente exposto no Sermão das Quatro Nobres Verdades. mas sempre há de haver por todo um querer encontrar o caminho de salvação, ser um buscador do caminho, que é inefável porque foge às construções apreendidas pelas palavras cotidianas. Buda quis ser um buscador, extirpar o sofrimento e a impermanência das fixações, encontrar a salvação.
Em certo sentido, quis mais do que Jesus , que pôde abandonar-se à salvação que vem do Pai solícito e compassivo. Para Buda, o Pai pode ser identificado com uma natureza primordial, também perdoadora e solícita, comum a todos, mas que deve ser buscada de forma estabelecida nos diversos ramos budistas como uma busca de si. Há uma semelhança entre essa natureza, vista como um Buda Primordial ou Samanthabadra  e o Senhor de Jesus. Para Jesus também é preciso querer, esse querer chamado fé. Para os budistas, mesmo que a prática formal falhe ou seja imperfeita, pode-se acumular pessoalmente ao longo da vida do buscador méritos para entregar seu arrependimento ao Buda Primordial, e encontrá-lo em sua natureza íntima como luminosidade e liberdade. Mas é preciso fé e desejo intenso de entrega pessoal. Aí ocorre o “estalo” da salvação: Ah! De uma ou outra forma, é inerente ao homem querer, querendo ou não querendo, buscador disso ou daquilo. As pessoas sofrem por falta de sabedoria, mas é inerente à vida humana sua impermanência e fragilidade, a falta, a incompletude. As discussões sobre a sexualidade humana inserem-se aí. Pode-se querer alguém também sem sabedoria, sem ela a sexualidade não leva ao pacto de beneficiar a si e ao outro, de não tecer ilusões sobre si e o outro. Todos desejamos e a sexualidade pode ser vista como um desejo primordial, um desejo de viver e, no fundo, buscar o caminho. Assim foi vista em todo o Oriente em inúmeras filosofias e darshanas. A manipulação da sexualidade sem sabedoria não leva a nada, apenas cria mais sofrimento. Hoje vivemos sob o capitalismo que como nunca criou infinitos desejos, mesmo quando impossíveis de realizar. Criou uma enorme responsividade nos seres a tudo que ocorre. Invadiu a vida familiar, as trajetórias pessoais, para isso está destruindo o planeta. Nunca foi tão difícil encontrar o querer íntimo de buscar outro caminho que o oferecido todo o tempo. E no entanto muito fazem essa opção.



                                   Igor Zanoni
Quisera

eu quisera destruir esta paisagem
que não me acolhe
que não acolhe os pobres os tristes
os sem juízo os amorosos
com um poder ultraeletromagnético
eu quisera dissipar essa penumbra
que põe mágoa nos olhos
a lágrima contida
e fazer nascer um arrebol
com tudo que eu tenho ainda de criança
meu medo de perder minha vó
de passear só em Paris
bem sei que Deus fez o sabiá
que não há cores como as das flores
todo dia me perco em meu jardim
e não alcanço o ônibus na rua
para onde irão? o ônibus a rua
quanto a mim buscarei minha eterna origem
esse mito dos desenganados
mas já não morrerei de tuberculose
que essa maldição já tem cura


                      Para Rosana,com amor
          Igor Zanoni



R de...

gosto de R de rua
de espaço de pensamento
da lua distante que passa
assombrando os peixes
gosto também de vinho
de beijos e esquecimento
dos violões que tocavam
nas madrugadas do tempo
em que a cidade era tacanha
e escassa
com menos igrejas que hoje
menos amor
e mais casamentos
gosto sobretudo de ti
ignorante de sua beleza
que perde seu tempo em reza
em conversar com a vizinha
contando onde fez as unhas


                                Igor Zanoni
Rain


1

com os dedos úmidos
massageie suavemente

2

você sempre toma a distância necessária
para bater um pênalti contra mim
que você mesma marcou


                             Igor Zanoni
Recado

quando procurava um cartão
para juntar ao presente que lhe havia comprado
que não fosse banal como algo que eu mesmo escreveria
nem fosse impróprio entre as muitas impropriedades
que há ou podem surgir numa frase e numa amizade
quando eu manuseava dezenas de cartões
tentando descobrir o que eu mesmo pensava
avaliando o texto com a figura e a gramatura do papel
e o tamanho não desproporcional ao presente nem à ocasião
quando eu me desesperava com o tempo
gasto nessa tarefa na papelaria
encontrei um cartão com a exatidão
 que só poetas às vezes sabem empregar
e que dizia nem tanto o que eu sentia
mas muito do que eu gostaria de sentir
o que você merecia que um amigo sentisse
como uma delicada gratidão e sensibilidade
feliz esqueci o cartão saí para o sol tomei sorvete
por isso mando esse poema contando
toda essa estória tão ao gosto das minhas idiossincrasias
e confusões que não fazem mal a ninguém


                      Igor Zanoni
Reencontro


é desagradável reencontrar pessoas
após um certo tempo
e descobrir que continuam
como sempre
que para elas o tempo passou
em vão
as outras pessoas que conheceram
os livros que leram
os acontecimentos do dia a dia
não foram aproveitados
para torná-las melhores
e mais sábias
não procuraram explorar
nem o mundo
nem o seu coração
não mudaram ou aprofundaram
com reflexão
as suas convicções
nada as moveu
nada as assustou ou deixou
pensativas e plenas
gastaram suas vidas
em juros e multas
e se tornaram com certeza piores


                          Igor Zanoni
Regato

havia um regato entre as folhas das árvores
ou voando entre as asas dos pássaros
os carros passavam longe
como pedras no leito de um rio
correndo nas vozes dos meninos
que brincavam na piscina de um condomínio
havia um caminho de trem
passava ali também o regato
no espaço que se curvava
no caminho da Serra do Mar
fiquei quieto um bom tempo escutando
os regatos urbanos exigem atenção
para que possam se reconhecidos e amados
sorte eu estar com bons amigos
brincamos felizes a tarde inteira
entre bêbados ciclistas velhos passeando
peixes urbanos que não reconhecem
o seu regato


                                           Igor Zanoni

Réguas

quando a régua de acrílico
foi inventada no meio do primário
quis deixar a de madeira
pobre e tortinha suja de tinta
das canetas a nankin que usávamos
e que borrava tudo
havia as de plástico de trinta centímetro
mas as melhores eram umas de cinqüenta centímetros
de belo material cristalino
hoje as réguas não têm importância
mas naquela época o estojo
de um aluno primava por ter
esquadros  transferidor régua lápis
números 1para desenho
e 2 para os rascunhos de aula
o caderno de desenho tinha de ter
folhas transparentes de seda
separando as folhas e não misturando
os esboços a pastel
era melhor também a recém criada
borracha plástica que a nativa
cheia de bigominhos na carteira
e era sempre difícil ter um bom apontador
os mais ricos tinham um de prender na carteira
fazendo as pontas com uma manivela
uma graça
mas um dos pontos altos era o compasso
que não devia ser o de prender o lápis curto
mas o de grafite
com ele sonhávamos ser engenheiros
e arquitetos
como eu e Manuel Bandeira um dia quisemos
mas também não pude


                              Igor Zanoni
Relações

muitas vezes as pessoas
 te dão boas vindas às suas vidas
preparam um café com leite
ou vão até mais longe
mas muitas te mandam às galés
mineirar ouro
colher café
por isso as relações exigem
não apenas obrigados e telefonemas
beijo abraços cervejas
exigem também ser remador forte
mineiro embriagado com os pés no rio frio
italiano parceiro nos fundos de São Paulo
você pode ser paciente
ou tentar outra das poucas sortes
do mundo
e em toda parte encontrar
a mesma opção



                                    Igor Zanoni



                                                  

Relógios

há muitos relógios
muitos horários  datas
todo o meu universo explode
em prazos irreconciliáveis
compromissos inadiáveis
mas necessariamente não cumpridos
o sentimento de culpa nasce da liberdade
diz Schopenhauer
mas como se pode possuir
tantas liberdades contrárias?
como estar e não estar
senão sendo sincero e verdadeiro?
como ser e não ser?
sendo fiel a si
antes de qualquer querer
que os dias passem
que não se fale em culpa
eu sou simplesmente eu


                             Igor Zanoni

Réquiem

1

a morte de Edméia
foi uma festa fúnebre
a última vez em que estivemos
todos  juntos no mesmo dia
comprando um túmulo e dando banho
nas crianças
telefonando e vendo os amigos
trocando abraços comovidos
por um motivo que todos evitaríamos
sentindo depois como as rosas
ao envelhecer exalam
sudários e silêncios


2

não deixem meu nome tênue
na lápide tão pesada
espalhem-no aos quatro ventos
para que eu escute
o que não pude ver no mundo
não me deixem deitado numa cova
com azulejos e flores
para sempre
ou tanto quanto duram essas coisas
deixem-me sob uma árvore
sob uma mangueira madura
que meus olhos cegos sejam para os corvos
e o peito valoroso para os ratos
e as raposas
dêem-me à terra que se deu a mim
 como pôde
quero que meus ouvidos ouçam os pés
dos tatus e das galinhas
e os passarinhos
que levem de mim o que em vida não dei
porque minha vida foi curta e triste
encalacrada em pequenas mortes
eu que busquei a grande vida
que afinal a encontre


                          Igor Zanoni
                                   







Respirar

meu peito
campo que cruzo cedo
os dedos dos pés lavados
na chuva nos dejetos dos bichos
milagres noturnos que culminam
na bela e alucinada campânula
dos cogumelos
respiro sem tensão um pouco
da abóbada que envolve a terra
respiro sua bioquímica sua história
devolvo minha vontade de saúde
de espaço
reafirmo essa vontade nas coisas
tão próximas e no seu modo
no seu acolhimento à minha
estranha aparição
busco uma pátria originária
ela pulsa em mim em todo campo
em meu peito onde o coração
dispara sereno sua eletricidade
e constrói o céu com o azul e com tempestades
 humanos e terrestres


                                   Igor Zanoni
Retidão

uma pessoa não pode ser dita
com todas as letras
ela não é conceitual completamente
também tem antagonismos
cuja gênese e desenvolvimento
não se acompanham como num texto
sobre a revolução francesa
ou em uma conversa com um amigo
ou mesmo um psicanaista
não é cem por cento sã
nem é doente
suas crises seu sentimento de culpa
seu choro sua santidade
podem ser acompanhados
como se acompanha uma festa
ou um funeral u um dia comum
isso depende de nós 
depende de nós o amor
de nós que tampouco podemos
ser ditos


                           Igor Zanoni
Retiro

precisei fazer um retiro
em minha pequena modesta pessoa
fazer silêncio e oferendas
ao senhor da liberação
descobrir o espaço do mundo
abrindo espaço em mim
rever tantas pessoas
que eu tinha quase perdido
por ser tão metido e atrevido
tão falto de sabedoria
precisei construir uma área sagrada
uma varanda de ar
do ar que eu troco com o mundo
e que as florestas renovam
depois tecer guirlandas
de amor e boas vindas
a quem eu tinha quase dito não
mas que me esperava confiante
à beira do meu caminho


                             Igor Zanoni
Retorno


depois de dez dias de cama
hoje afinal saí para rever o médico
como me emocionou ver o verde da grama
entre as avenidas
quase chorei com a chuva
nos vidros do ônibus
revi no supermercado os bolos
os iogurtes os chocolates
a roupa das pessoas hoje notei
como cada uma se veste para a rua
e as avenidas cheias de carros brilhantes
como me pareceu bela
esta tosca Curitiba!



                                  Igor Zanoni

                                 Retrato

meus retratos tristes me seguem
pelas estantes da casa
pelos documentos de identificação
nos quais me posto sempre submarino
como um inexato peixe
vagando em copos de cerveja
translúcido como meus olhos
olhando adiante atrás
para os três tempos
nunca me perdendo
sempre igual a mim mesmo
siderado
mas nunca aqui e agora
porque sempre estou atrás ou adiante
e nunca estou comigo


Igor Zanoni
RMC


Campo Magro Campo Magro
tuas costelas já foram contadas
pesadas foram na balança
e achadas em falta!
Magras mesmo
tuas costelas foram quebradas
caminhões vazios
fingindo empresas de mudança
limpam suas casas
enquanto as crianças brincam
e os adultos se viram
Ai de ti ! Ai de mim!
Ai da imensa
Região Metropolitana de Curitiba!



                     Igor Zanoni
Romanos

                       
                                                                                     Para o Rev. Felippe Carneiro Leão        


               a razão permite discernir
  entre o verdadeiro e o falso
a compreensão de um logos
que é comum a todos
e serve como suporte
 para  a  vida comunitária
por isso ela é a base da lei
e indica o que é lícito e o que é ilícito
é a base de uma vida
segundo o corpo
e sua necessidade de proteção
e cuidado
mas essa disciplina do corpo
que a lei explicita
é burlada por meus desejos
que obedecem a ditames
particulares e egoístas
por isso eles devem ser cativados
mediante a fé
em uma vida segundo o espírito
segundo o logo de Deus
que brota do coração fiel
que desta forma torna a lei
letra e norma
e a substitui por genuíno amor
aos outros
e faz da perfeição a prática
interior da virtude


                                 Igor Zanoni
Romântico

não sou filósofo sou poeta
imaturo como poeta e como homem
filio-me à generosa tradição romântica
a mais acessível e universal
escrevo mas não sei um poema de cor
nem lembro bem o que escrevi
escrever é conversar
sentir apoio e compreensão nas palavras
às vezes desleio outros autores
às vezes transleio
noutras sou mais original
e por isso mais tosco
às vezes obscuro burro
não faço projetos
meu maior objetivo na vida
é conter meu corpo em suas medidas
ele que quer transbordar
no amor no dia
tenho necessidade de ser urbano e razoável
mas isso me oprime
não quero elogios a nada do que sou ou fiz
trocaria minha vida
pela vida lúcida e saudável do meu gato



                                Igor Zanoni
Rosa

amo o azul do céu
o verde da relva
mas da rosa amo a rosa
no céu amo o arco-íris
as nuvens a chuva os balões
quando é São João
mas na rosa amo a rosa
na relva amo os besouros
a espécie mais numerosa da terra
a mais amada por Deus
amo as flores várias
e as crianças soltando pipa
mas na rosa amo apenas a rosa
a rosa completa a rosa transitiva
ponte para todo ser
mas que entre todas as flores
sabe ser rosa
a rosa em si e a rosa em tudo
princípio e rastro do mundo

                                 Igor Zanoni
Rua


quando ando por essas ruas
tão só, tão quieto
onde só se ouve distante um motor
como se o carro não houvesse sido criado
junto com os seres e os jardins
percebo o quanto a velhice é novidadeira
e retorno à infância na qual eu não sabia nada
nem falar ou escrever
ela é o campo dos homens a sua natureza
o tempo no qual se convivia com os deuses
nem sempre benévolos
e a vida não tinha qualquer propósito
nem o bem nem a verdade
e a salvação era desnecessária
claro nem sempre as crianças
podem viver assim
eu mesmo trago de lá a minha insônia
a minha insegurança os meus pontos cegos
mas envelhecer não melhora ninguém em nada
traz apenas a tentativa trágica
de voltar a ser criança
quando era possível alimentar-se nos seios
de Vênus Afrodite
e depois por que não?
jogar bola ou conquistar Tróia
nada pior que fazer essa tentativa
de modo maduro e inteligente
conversando sobre cultura
com o analista ou o professor
melhor beber morrer jovem
viver como queriam os românticos tuberculosos
que celebravam a morte próxima
nos bordéis e nos charutos
eu envelheci
e a novidadeira velhice me faz sair para essas ruas
tão só, tão quieto 
escutando escutando escutando


                             Igor Zanoni


Ruído

                                             Para Demian

há um ruído de fundo
no meu sistema solar
são três ou quatro sentidos
são dezenas de olvidos
a caixa d’água enchendo
o vizinho fazendo o bebê dormir
e os planos da casa própria
devidamente reestudados
envelopados em novo projeto
de refinanciamento da vida
é a vista que cega
as idéias que perdem o rumo
o crédito e também o débito
que a conta é um bilhão de quasares
zeros
buracos negros
disputando a final com o Boca
na Copa Santander-Libertadores da América
que paradoxo!


                                   Igor Zanoni
Sabedoria


a grande sabedoria toma corpo
no acolhimento a quem vier
e for tomado como seu igual
no discernimento com que
alguém se faz inteiro e firme
e se resguarda do mal
e tudo na proporção harmônica
da dança do universo
esses são os prolegômenos
da grande liberação
muitos são bondosos pacientes
humildes equânimes
mas sempre se pode ser
mais ou menos
mais de uma qualidade
menos de outra
atingir a grande liberação
exige ser uno consigo e o universo
essa é uma antiga sabedoria
é preciso ser um senhor da dança




                                                                                      A Sua Eminência Chagdud Tulku     
                                                                                 Rinpoche

Sabiá

1

o rouxinol o melro
o sabiá a andorinha
o colibri a garça
o patinho feio
todos conheci primeiro
nos bancos de escola

2

a lebre a tartaruga
o coelho branco
aprendi a ver bem
com Lewis Carroll
que inventou o turpente

3

a literatura persa depende
de bons conhecimentos
de ornitologia

4

o Leviatã a gazela o carneiro
os peixinhos do mar
simbolizaram os desígnios
do Senhor

5

conhece-se a fauna da Úmbria
no século XII lendo a vida
de São Francisco


6

a vida culta e espiritual
seria impossível sem os passarinhos
o lobo ou os animais fantásticos




                                             Igor Zanoni
Sábios


eu não te amo obsessivo
te amo calmo quando posso
um pouco tenso às vezes
mas sem cálculo
e sem grandes pretensões
eu não te torno um seguro
contra as agruras
porto contra o tufão
te amo dando a mão
para caminhar mais gostosamente
tudo o que sinto
me faz companheiro
para como São Francisco
mudar o que pode ser mudado
ter paciência com o que não pode
e ser sábio para distinguir entre ambos
solidários andamos
há muito perdemos a chance
de sermos sós e sem carinho

                                       Igor Zanoni
Saliva

1

não custa tanto em dinheiro
mas em carne nervo sentidos
mijo merda saliva

2

a vida não tem palavras adequadas
sabem os poetas e suspeitam os outros
os bêbados os solitários os apaixonados
os buscadores do caminho
e os que não buscam nenhum caminho
a vida é subterrânea e irrompe
de forma quase sempre surpreendente
e incontrolável
quando triste choramos
quando alegre rimos
quando duros passamos fome
com algum no bolso compramos
frango assado e cerveja
quando não é tão má
também não é tão boa


3

o pijama tão confortável à noite
torna-se ridículo de dia
talvez devêssemos dormir de smoking
e nunca beijar antes de uma champanha
o pijama é uma vestimenta artificial
com o qual os mortos deveriam ser enterrados




                                     Igor Zanoni
Salvação

a salvação se decide
nos gestos cotidianos
nas mãos que juntam
as mãos dos próximos
e se põem como as mãos da mãe
da irmã do pai do marido
em gestos que nem se percebem
porque é nosso meio
nosso ar
nossa justiça diante de todos
nossa segurança íntima
fundamentais como os fluxos
universais como os céus


                                Igor Zanoni



Sansara

sansara  supõe nirvana
assim como pecado supõe salvação
o ying supõe o yang
e o dois supõe a unidade
o Nilo supõe o grão
o indígena supõe a mata
a Terra supõe o Sol
o ódio supõe o apego
e ambos supõem a paciência
o jóia supõe o ouro
o cheio supõe o vazio
o copo a boca
a língua a clara visão
de quem vê e sente compaixão
e logo medita buscando
o que não precisa ser buscado
se sansara é nirvana



                                   Igor Zanoni
Sartreana

bom amar quem se quiser
bom não ter hora de voltar para casa
bom beber sossegado
boas essas idéias francesas!



                            Igor Zanoni


                          
Saudade

1

às vezes lembra-se muito os vivos
e se esquecem os mortos
noutras se esquecem os vivos
e sente-se imensa saudade dos mortos

2

quando moça mamãe morava na Piedade
depois de casada morou no bairro da Saudade
eu morei moço no Bonfim
depois me mudei para o Bom Retiro
muita gente que subia morava no Castelo
mas os mais ricos criaram a Nova Campinas


                                  Igor Zanoni


                              
Saudades

tenho muita saudade das moças
de vestidos leves o rosto incisivo
de quem lê romances franceses
e acompanha as mudanças no mundo
tenho saudade das Áureas
das Yolandas das Noêmias
mas sobretudo muita saudade
das Adalgisas
meu paletó de linho


                                  Igor Zanoni
Saúde

o amor nasce sozinho
em quem tem saúde
não são necessárias cruzes
 no caminho para que ele
nasça
as pessoas sãs amam a si
e aos outros
amam o dia a respiração
o corpo a vida boa
e os desejam como bens
de todos
as cruzes são sinais de falta
assinalam uma carência
o quanto distamos do amor
mostram nossa fraqueza
nosso desamor
nossa pobreza
a fome a enfermidade
assinalam distâncias
separações
daí sua advertência
do quanto há em nós
um ainda não


                             Igor Zanoni
Segredos

o dia é um contínuo de pequenos cofres
cujas senhas estamos o tempo todo
procurando descobrir para que flua
passamos de um gesto a outro com cuidado
para que a vida tenha sentido e coerência
costurando retalhos de muitos contextos
preparamos roupas novas uma vida permanente
o segredo da razão é a vigilância
respiramos nos movemos sem pressa
buscando o tempo certo da música
que cure nossa insensatez
dia após dia buscamos nitidez clareza
quando isto não ocorre os outros  percebem
não nos achamos no fluxo do mundo
mas estagnados em tempos indistintos
confusos dissociados



                                   Igor Zanoni
Semente

a semente é tão pequena
disse Jesus
que pode tornar-se a maior
das árvores
quando cai em bom terreno
a semente é tão pequena
afirmou Siddhartha
que se interior é vazio
por isso dela brota
o grande Dharma
quando toma a forma
de um coração bondoso



                        Igor Zanoni
Senhor

não encontrei o Senhor
entre os meus cálculos
minha razão não pôde anuncia-lo
mas sim as palavras tão simples
de velhas histórias da infância
que ficaram indeléveis comigo
e me impediram de ficar só
abandonado


                          Para Felippe
                        Igor Zanoni
Sentido

sempre se deseja encontrar
o sentido
ele é nossa fé e nosso pressuposto
ele organiza nosso ser
nossa saúde
põe-nos de pé quando estamos frágeis
no tumulto do mundo
o buscamos
em nossas vidas tumultuadas
ouvimos seu chamado
e o repetimos como podemos
mas nunca com a graça desejada
de uma caixinha de música

                       Igor Zanoni
Sentir

saber o que se sente
não é dom gratuito
exige sabedoria
e esta método e vagar
não à toa os antigos
conversavam entre si
sobre o amor e a amizade
porque não são óbvios
nem se descobre por intuição
exige a mediação do outro
paciência e rigor
para serem definidos
e assim apuravam
as qualidades da alma
que aqui erra
desejando uma origem
clara e eterna


                                       Igor Zanoni
Ser

ser é mais vasto que dizer
embora seja repleto de signos
estes têm uma gramática inconclusa
assim os surrealistas se aproximaram do ser
derretendo relógios ou colocando
na cena uma inusitada máquina de costura
por ser nem tanto inconclusa quanto plena
em demasia para o que vemos
quase sempre do ser
dizem que o ser é uno luminoso vazio
repleto de tudo
como pensar isso? calando
ou dizendo superlativos



                                   Igor Zanoni
Sertão

que o sertão também é o mar
embora este negro
e o primeiro mais índio ou mameluco
e com seus próprios deuses
e rainhas
como sertão é o pampa
e pampa é a floresta
e o pantanal
mas a cidade grande não é nada
aqui não é vida
não há a santa misericórdia
e a esperança
e o abençoado anúncio do fim
princípio das coisas do alto


                          Igor Zanoni
Sessão

1

a doutora Selma disse que o HC
está cheio de pombos nos pátios
e que os piolhos entram pela janela
do consultório onde atende
no antigo Hospital Santana
nos fundos do HC e arrendado por este
no andar de cima a porta está lacrada
e há milhares de pombos
no andar de baixo havia um necrotério
que nunca sofreu uma assepsia
neste vão entre micróbios e piolhos
transcorre nossa análise
recheada de impropérios
 ao reitor da universidade
e bem longe da bela Viena de Freud


2

pela primeira vez na vida vi
um caminhão de uma fábrica de ataúdes
era metálico e grande
tentei calcular quantos ataúdes conteria
seus modelos e até preços
não sei quantas funerárias
há em Curitiba
os grandes cemitérios lajeados e floridos
exigem mais que os antigos marceneiros
e marmoristas
antes as novas fábricas de ataúdes
de caminhões reluzentes
agentes da concorrência capitalista
como qualquer caminhão
mas que não entrega nada que se use em casa
ou na rua ou no trabalho
antes se compra preenche
e enterra logo
e no caminho assusta os que passam
pensando na doce vida
que logo passa


                           Igor Zanoni


Sexta

giro devagar pelo bairro
tão devagar quanto os corvos
no céu que gira acompanhado
pelas vistas dos girassóis
mais fiéis e exatos
que os ponteiros uníssonos
do posto de saúde
da escola
do consultório odontológico
do Banco do Brasil
giro por amor a essa paisagem
que nunca cessa de mudar
com os novos condomínios
de apartamentos minúsculos
as centenas de igrejinhas
as conversinhas secretas nas esquinas
enquanto eu mesmo mudo
a minha paisagem
ganhei foros no mundo
das crianças
dos aposentados
dos velhos sem destino certo
dos filhos que cresceram
da minha crescente ociosidade
que preencho tornando-me afinal
um homem sem pretensões
e sem tantos conflitos
que me mobilizavam tanto
e hoje já não entendo


                                  Igor Zanoni

Shantideva

um relâmpago na tempestade
mostra o caminho


                        Igor Zanoni
Silêncio

para onde foi o que se foi
para onde foi o esquecido
a infância perdida
a juventude perdida
tumulto de amigos
 que não pudemos conter
tumulto do nosso incontido
a vida sob tantos gestos
tantas conversas que teceram
nosso precário momento
o que conversamos?
hoje silêncio silêncio...


                              Igor Zanoni

Silêncio



amo o silêncio dos cavalos marinhos
dos pequenos peixes
sobre os quais recai tão pouco a gravidade
cujos corpos se contêm serenos
embora rápidos ou quedos
em seu desperto sossego
amo suas paisagens sem limites
que se transmutam se viajamos
mais um grau a bombordo
ou se as barbatanas dorsais
disparam por esses limites
tão precisos
tão próprios de peixes
e ao seu silêncio que repousa
em sua natureza verdadeira


                        Igor Zanoni

Silêncio

                                                 Para Rosana

tantas vezes se sonha com a mão
que desfará em manhã e calor
seus pesadelos
tantas vezes se deseja ser amado
como se o amor fosse um sentimento
unívoco e sublime
tantas vezes se deseja o silêncio
que cale as assustadoras vozes
que parecem subjugar nossa vida
tantas vezes rogamos aos deuses
e aos vizinhos pais amigos
que criem esse doce abrigo
que desfará o esperado futuro
tantas vezes nos precipitamos
para relações que mal compreendemos
e exigimos delas calor e fidelidade
e no entanto a paz não é tão distante
e inconclusiva
nem a serenidade condena ninguém
à solidão
é apenas o reduto de compaixão
que deseja que o sofrimento
cesse para todos
que a todos acolhe em nossa natureza
e já nos sentimos mais em casa
nesse mundo que todavia
é sobretudo nosso


                                        Igor Zanoni



Sinais

antes quando fazia um calorão
as pessoas sabiam dizer:
à tardinha vai chover
ou quando o poente era rubro
diziam: amanhã fará bom tempo
mas hoje ninguém diz nada
com propriedade
esta geração não sabe distinguir
os sinais dos tempos


                           Igor Zanoni

estou só e é impossível
te mandar um telegrama
sem perceber tornei-me distante
não cabe mandar pelo Morse um s.o.s.
a tua falta é um problema analisável
por este ser meu tão racional
pior para mim que não sei
distinguir o eterno no que passa
que não sei te ver baliza rastro
em minha vida que coloco
em instâncias subliminares
do olvido e do pó
pior para você que tem um amigo
tão no seu canto
que um abraço é possível
assim como ver o cometa Halley
e que no entanto  ama
amar esse verbo sempre intransitivo
que te percebe tão bela
adornada por todo o humano
e torna-se pequena para que o filho cresça
para que não pereça o encanto
do incondicional entregar-se
e navegar na vida
que quase todos ignoram
por pequenez e inconstância
e que eu procuro errando sempre
o endereço


                                             Igor Zanoni
Sofrimento

um poeta escreveu
“meu Deus, por que tanto sofrimento
se lá fora há o lento deslizar da noite...”
não sabemos porque sofremos
a vida a noite passamos de um momento
a outro insensatos
e a noite desliza com seus lírios
seus lótus efêmeros
o cheiro das damas-da-noite cobre
o escurecer no bairro
e ainda tentamos organizar o sofrimento
quando o melhor seria desorganizá-lo
 desorganizar-nos
deixar o diafragma admitir
o que tenso não permite
a invasão do corpo da mente da energia
pelo difícil amor aos outros
e dos outros


                                                              Igor Zanoni
Sol


agora faz muito sol
mas um dia choverá
talvez hoje quem sabe amanhã
é preciso comprar capa sombrinha
galochas
arca se vier o dilúvio
semente se vier a chuva boa
no tempo propício
telhado novo se inundar tudo
e tivermos que subir no telhado
mas hoje faz sol
o preço da alface eleva
o índice da inflação
é bom que chova
para que meu salário estique
mas se chover
terei de comprar quem sabe até
telhado novo
com chuva ou com sol
sempre se está só mais ou menos


                          Igor Zanoni
Solar


é verdade que de manhã
a luz do sol deixa o quarto em doce penumbra
afugentando o bardo do sono
com suas imprecisões e dando à vida
novos sonhos
mas isso não basta para conhecer
o que se pode conhecer da luz e do sol
é preciso lavar o rosto
trocar o pijama
e com decisão sair para a rua
a isto se chama coragem e lucidez


                            Igor Zanoni
Solidão


a minha solidão de criança
que se espalhava na rua e me fazia
seguir quieto no último banco
do bonde em seus solavancos
e chiados do fio acima
seguindo itinerários que eu não criei
nem desejei
mas achando no caminho alguns tesouros
as uvas japonesas na esquina da escola
alguns poucos amigos
que milagrosamente conservei
e a cidadania em Campinas
foi o início da minha descoberta
do que era ser homem
datado lido destinado
muito tempo depois buscava
 minha irmã Mônica no mesmo portão
da escola que me apavorava
e criei uma solidariedade com irmãos
ou colegas que leram o mesmo caderno
de Débora Pádua Melo Neves
com suas lições de Educação Moral e Cívica
ou tiveram sobre si
as mesmas expectativas de seus pais
mas tudo isto foi marcas na solidão
de brasileiro
que o brasileiro é sobretudo um só
e em todo lugar permanece um sertanejo
que cria espaços no ar
onde se refugia com suas milícias
de reservas e contenções
quem sabe isto o salve


                                Igor Zanoni
Som

1

quando assistia com mamãe
os musicais da Tupi tinha gosto
até na tristeza de Agostinho dos Santos
e Wilma Bentivegna
 decorei muitas canções de Maysa Matarazzo
mas odiava os programas com Vicente Celestino
e Hebe Camargo

2

nunca me fez tanta companhia nenhum disco
como os antigos de Caetano
Cinema Transcendental Cores,Nomes
Bicho Qualquer Coisa Transa Domingo
como eu amava as canções claras e calmas
nas noites que eu atravessava estudando
ou refazendo infindáveis tabelas de pesquisa
com minha TI-58
ainda não havia o micro só o computador
de cartões perfurados
que eu só aprendi a usar no Mestrado


                                Igor Zanoni
Sonhado

os portugueses como raça nostálgica
inventaram tempos verbais
longínquos e imponderáveis
eu sonhara ter sonhado que me amavas
mas me enganaste
todos os adolescentes antigos
passaram pela época de se exprimir
desta forma galante
e os novos não se furtam
a achaques semelhantes
por tudo no dubidativo do passado
é a melhor forma de infelicidade


                                   Igor Zanoni




        
Sonho

a vigília não é exata
como o sonho
nem tão terrível
a verdade não mora nas ruas
durante o dia
ela é dom noturno
presente de um deus
ambíguo
mas que a ninguém
esquece


                                       Igor Zanoni
Sonhos

1

as pessoas de paz amam
a vida no campo porque há mais
espaço para ficarem longe dos outros

2

eu hoje sou esse ser irascível
mas amei muito Silvana Mangano,
Audrey Hepburn, Rommy Schneider
e, é claro, Natalie Wood

3

o pior sentimento é o de culpa
pois todos gostam de parecer santos



                                             Igor Zanoni


Sorvete


é verdade que tudo passa
mas nem sempre passa o sorveteiro
às vezes passa um sorveteiro
com sorvetes de que não gosto
caseiros
o garoto sustentando com a mãe a casa
mas não têm sorvetes da Kibon
como o delicioso Chicabon
raramente para compensar
passa o vendendor de biju com seu tambor
em cima do qual sorteio
quantos bijus posso ganhar
com minha notinha de cruzeiro
há também o palhaço com algodão doce
mas disso não gosto
detesto quando ele vem apitando
nunca vi mais chato



                                       Igor Zanoni
Sozinho

de repente me descubro sozinho
em uma praça tão cheia
e os trechos de conversas
surgem como estórias
que posso mas no fundo
não posso compreender
Deus também um dia sentiu-se só
mas criou Adão
e também outra vez encontrou
um amigo dileto Enoque
e o levou para si
as pessoas sonham com o amor
a política os negócios
outros como dizem buscam
finalmente a sua paz
mas eu sou dividido demais
para sonhar
entretanto de alguma forma
por enquanto penso em enviar
por aí esses poemas
inúteis confusos
retraçando itinerários que tomei
vários ao mesmo tempo
e que eles são um pálido substituto
dos meus desejos


                        Igor Zanoni

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