quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Estudando e me danando


Estudando e me danando

Fui alfabetizado por papai em quinze dias, aos cinco anos, pela cartilha de Tomaz Galhardo, aquela do vo-vô viu a u-va. Eu gostava de ficar com meu pai e esse acontecimento selou uma doce cumplicidade. Pude a partir daí ler os textos da Escola Dominical, na missão americana batista que havia perto de casa, e ganhei uma bela edição do novo testamento, ainda que com capa vermelha, o que não me pareceu apropriado. Comecei com a mesada que recebia a comprar edições facilitadas de grandes obras, que existiam em abundância, e os livros infantis de Monteiro Lobato. o primeiro livro que li foi presente de meu pai, Os Doze Trabalhos de Hércules, desse grande brasileiro. Entretanto quando comecei a fazer o então pré-primário, em uma escola que funcionava no bosque dos Alemães, a uma quadra de onde morávamos no Castelo, foi uma experiência terrível para mim. Eu não tinha nada a aprender ali, estudava e me divertia menos que em casa, e ainda passava no caminho por uma grande tenda de ciganos, que me sugeriram temer. O melhor desse triste ano foi um doce feito pela merendeira da escola, que me permitiu dispensar o horroroso lanche da escola-pão com banana, o famoso X-mico, e café com leite, eu que amava Nescau.
No ano seguinte fui para o grupo escolar, Dona Castorina Cavalheiro, para onde ia sozinho após um belo passeio de bonde pelos bairros próximos. Gostava sobremodo de comprar uvas japonesas, que só voltei a ver perto de um prédio da Universidade em Curitiba. O grupo me assustou um pouco, no primeiro dia mamãe me levou, e a um vizinho, dando-nos um beijo de despedida, o que achei excessivo e estranho, porque ela não gostava do meu pequeno vizinho e da sua família. Antes de entrar na classe formávamos filas por tamanho, cantávamos o Hino nacional e subíamos as escadas em ordem até nossa classe. Eu fui colocado bem em frente da mesa da professora, numa carteira dupla que dividia com o seu filho, José, que achava que por ser filho de dona Violeta não tinha necessidade de saber nada. No segundo ano primário papai foi transferido para o Segundo batalhão de Frnteira, em São Luis de Cáceres, e passei a estudar em um colégio jesuíta, de frades holandeses, o Instituto Santa Maria. Foi uma experiência e tanto, já que ia às aula com muitos garotos de família indígena aculturada, num imenso calor, em meio a freis, eu que era protestante, de batina imaculadamente branca com um crucifixo de metal como cinto, usado com generosidade em nossa cabeça quando não atinávamos logo com respostas adequadas. Papai era amigo dos frades, fez muitos trabalhos humanitários com eles e eu estava na escola fingindo que era outra pessoa daquela que os frades encontravam em casa ou no quartel, já que ali pequenas intimidades já eram intoleráveis. Em suma, a escola tudo fez para me afastar do que tinha em casa e do gosto pelo estudo. Apesar disso, como papai queria que eu fosse o melhor aluno possível, estudava muito, li mais ainda, mas com prazer. No último ano, na formatura, os alunos receberam seus diplomas na ordem de suas notas finais, e eu me senti angustiado quando vi que ganhara um modesto quarto lugar. Temi muito a repreensão do papai, e apenas um beijo carinhoso de mamãe me aliviou o pânico.
No ano seguinte voltei para Campinas, fiz o curso de admissão com o professor Walter Zink , muito respeitável, e tornei-me amigo da família Zink, muito antiga em Campinas e famosa pelos esportistas que havia dado ao Regatas. Passei em primeiro lugar no exame para o ensino fundamental e médio no Instituto Sedes Sapientia com bolsa de estudos integral, onde o professor Zink lecionava, mas optei para ir ao famoso Colégio Estadual Culto à Ciência, o melhor colégio do interior paulista na época, de onde só saí no segundo ano do Colegial para a Escola Normal, pois decidira pelo estudo de humanidades no qual este colégio era notável. Entretanto, na puberdade fui afastando-me progressivamente de papai, tanto por passar muito tempo longe de casa, por papai ter pouco tempo para a família e por sentir que ele desejava que eu me tornasse enganheiro e no futuro me associasse a ele em um projeto de construir e vender casas na Campinas que crescia até se tornar a metrópole de hoje. Nessa época passe a assistir aulas pela manhã, á tarde jogava bola na escola ou me internava na biblioteca lendo romances, ou saía com amigos como o Márcio para o Clube dos Poetas ou para o Centro de Ciências. Eu amava literatura e era muito agradecido a quem me apoiava paternalmente. Fui bom jogador de futebol, basquete, handeball e outros esportes, com o recém falecido professor Stuck, enérgico como um sargento, mas que tinha carinho por mim. fui ótimo aluno de português e literatura, francês, história, geografia,filosofia, religião,biologia, que me fascina até hoje, mas para as outras matérias como matemática ou química, fazia o suficiente para não ser reprovado e só. Não entendia onde elas levavam, mas no fundo era uma maneira de não ir me tornando engenheiro. Enquanto não me faltaram professores persuasivos fui ótimo aluno, caso contrário não.
Passei no vestibular no curso de filosofia da USP em 72, para desgosto de papai. Lá estudei bastante mas são Paulo era outra cidade que a acanhada Campinas, fiz um pouco de tudo: estudei, vi cinema, comecei a pintar e cheguei a expor, fiz muitos amigos, mas também conheci a ditadura que ignorara até então num mix com sexo-drogas-rock”roll. Foi bom e péssimo, e estava muito longe de meus inícios, não tinha um grande amigo, precisava de ajuda psicológica que papai recusava por não gostar de psicanálise, ele, um homem criado no Serviço de Amparo ao Menor, que fizera sozinho sua vida exitosa.
No segundo ano fiquei com fobia e ansiedade extremas, não consegui fazer filosofia ou ficar só em São Paulo e voltei para casa. Passei no ano seguinte no vestibular da Unicamp em Ciências Humanas, fiz o curso básico com intenção de me dedicar à lingüística, mas papai me obrigou a fazer economia por achar que assim eu teria assegurada a independência financeira.
Embora o curso de economia fosse ótimo e contasse como ainda conta com professores diletos e grandes pensadores, só consegui fazê-lo por ter muito professores que me ajudaram emocionalmente e nos estudos, e por estar na época casado com Edméia e precisando trabalhar para manter a casa e permitir que ela também estudasse. Mas eu não tinha nada com economia, foi um período estranho.lembro que papai me deu com prazer a Teoria geral do Emprego, do Juro e da Moeda por achar que me ensinariam a ter dinheiro na vida. Ele estava sériamente preocupado comigo, mas não sabia o que fazer, principamente por achar que eu me tornara comunista. Edméia fez lingüística, sendo muito bem sucedida. Tornei-me um dos melhores alunos da minha turma pois tinha facvilidade para compreender o curso, fui direto para o Mestrado, outro período difícil, e ao concluí-lo, no amargo estertor da ditadura, aceitei um convite do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social, ligado à Secretaria de Estado do Paraná. Eu mal sabia onde ficava Curitiba, vim só pois minha pequena família, Edméia, Gabriel ( aos quais se somava agora o recém nascido Tiago) tinham de concluir o ano letivo. Nessa época minha mulher já estava terminando seu mestrado em lingüística, na área de fonética e fonologia.
Em resumidas contas, fazer a graduação e o mestrado foi uma tarefa muito dura, e eu me senti bem melhor no ambiente livre de pressões de Curitiba, de onde nunca saí. Exceto entre 88 e 91, quando voltai para fazer o doutorado. Foi outro período escolar duro para mim, porque no Ipardes eu tinha um grande espaço para estudar o que queria e ganhara muitos amigos excelentes. Além disso, estava com um bom psicoterapeuta. Queria fazer o doutorado para ingressar na Universidade, o que consegui em um concurso em 95, encontrando ali vários ex-ipardianos. Mas o doutorado foi um estresse enorme, e a Universidade também. Estudei e trabalhei bastante, mas de forma mais limitada e controlada. De qualquer modo, eu escolhera minha vida. mas parecia ainda atrás do espaço que só um pai compreensivo pode dar. isso encontrei em alguns terapeutas, que recordo com carinho, e na amizade solícita de alguns companheiros e de minha família.
Curioso mas nem tanto é um sonho recorrente que tenho de não haver feito o doutorado, e de que preciso fazê-lo. Paciência. A vida é uma comédia de erros.
                                                                                                                       Igor

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