sábado, 12 de fevereiro de 2011

O Amor Desaforado

Igor Zanoni Carneiro Leão
O Amor Desaforado
Curitiba, 2006
Este e-book reúne poemas do segundo semestre se 2002. Relendo-os percebo a
intensidade com que vivi aquela época, muito amargurado pela separação da Estelita mas já
dando um balanço em outras relações também muito fortes, embora de natureza distinta. São
poemas domésticos no sentido de que seu espaço é recatado e íntimo. Gosto deles por sua
retórica, seu humor e por desenhar um período no qual, se não fosse a companhia da Anna, eu
estaria perdido nos desertos corredores da universidade. Dedico-os, pois, à Anna e aos meus
filhos, que sempre foram meus melhores amigos. Se desejar enviar estes poemas a um amigo,
faça-o livremente.
El niño
As oscilações térmicas das correntes de ar sobre o Pacífico
Fazem chover o verão todo no quintal
As bananas amadurecem depressa
Sentadas sobre a mesa as moscas esperam o tempo propício
08/12/02
É preciso aprender a esquecer
A deixar que o inevitável aconteça
A não procurar consolações vãs
Beijos que jamais foram dados
E que não voltarão
Num idílio que não pertence
À generosidade humana
Juntar-se à sua invencível tendência
De lutar sem boas razões
De morrer antes de pedir perdão
De esperar esconder o que espera
O seu inefável
Mínimo eu
05/12/02
Para Edméia
Remexer devagar as gavetas
Brincar com os cachos da menina mãe na foto
Descobrir como se guardam telefones
Que não são de ninguém hoje
E a fartura de borrachas sujas clipes enferrujados
Pedacinhos de grafite 0,5 e 0,7
Encontrar surpreso o seu anel
De prata e ônix
Suas outras jóias as avarentas mulheres de família
Repartiram entre si
E poemas que escrevi não lembro a que propósito
Que decifro como os de um outro , não eu
Orações a Santa Terezinha que falharam
Moedas sem mais nenhum valor
Museu de assombro, esquecimento,cinzas
01/12/02
1
Inexato amor
Que rouba no sete e meio
Me faz comer bolinha da terra
Brincando de casinha
Não me concede um beijo
Só se deixar olhar
Os olhos baixos
A pele rosa
A boca num esboço
Da precoce imemorial arcana
Sei lá forma de amor
2
todos os poemas (todos os textos)
são datados
dizem, pois, a que vêm,
ou são vãos
3
Aurora gosta no jardim das primaveras
Das dálias dos crisântemos
Mandou o jardineiro cortar uns finos bambuzinhos
Achando lá na sua cachola
Que era tudo mato
4
os cabelos envelhecem conosco
e saem logo dando a notícia
5
tudo que guardei dela
foi um lenço emprestado
para eu assoar o nariz
e que não quis de volta
30/11/02
Bem menino, plantei não se como
Um pé de pimentão no jardim.
Fui hábil, precoce, utilitário
E olhava comovido minha fazenda prosperar,
Que logo esqueci por uns Karman –Ghia
De plástico que nem abria as portinhas
24/11/02
Kali
Para Estelita
A malícia se inventa
Instintivamente
Se é preciso viver
Mas eu como posso não penso nisso
Procuro ser fiel
Às interpretações que vou descobrindo
Vejo assim tudo frágil e violento
O empresário e o operário
O padre e o fiel
Deus e sua criação
Meu desejo que bate no sonho
Na pulsação
Na ousadia e na validez
Vejo em tudo o retorno
Eterno como os encontros
Sempre os mesmos e sempre outros
Eterno como a memória reinventada
Como os novos beijos buscam os velhos
Como o saldo permite
Nova dívida
23/11/02
Nos bons poetas mal se percebe
O lavor duro
Que extraia com paciência do mais banal
O mais obscuro
E se contém adequado
Como convém
Mesmo se de lágrimas lavado
E com desvelo deixam sobre a estante
Sua herança
Seu dizer seu explicar
Que gosto têm as fontes do oceano
Que para sabê-lo são inúteis
Bússola e sextante
É preciso partir desarmado
E sem saudade
Deixar o Tejo
15/11/02
Escove os dentes com Sorriso
Enxágüe com Plax
Dê um beijo romântico
Essa doce invenção burguesa
16/11/02
Bananeira que não há
Profundidade do azul
Da flor do maracujá
Que havia
Havia
Deixou de haver
E já não há
16/11/02
É sobretudo assim:
Não quero mal entendidos
Que você busque as suas lágrimas
E se lambuze
Eu fico entre as marés
Dos almoços e das jantas
Dos tempos bons e das chuvas
Tudo tende à entropia
Dizia meu pai o científico e major
Daí a necessidade dos arquivos e dos panos de prato
Hoje não beijo amanhã não beijo
sossego o amor é isto
Não há nada mais bem repartido
Que o bom senso
O meu vem depois de duas doses
Não dessas que o garçom extorque
Mas não se extreme
14/11/02
Maria Aparecida
Como pôde tão menina e compadecida
Ensinar a este menino
O meu próprio amor masculino?
Por quê de sonho inda hoje
Quando estou tão carecido
Com seus olhos baixos como se não visse
O que estava a teus pés
Minhas dores minhas rezas mudas
Como soube dizer-me o que eu não por mim
Não descobriria
Neste mar que se abria
Continuava
E não acabava?
A ti reza em mim o que serei
Que do que tenho sido salvei
Por teu amor mas inconcluso amor
09/11/02
O menino põe o dedo machucado
No copo de água com sal
As lágrimas salgadas descem pelo rosto
E aliviam a seu modo a dor
Com elas vem o ranho
Que também tem um gostinho de sal
E que o menino gosta de lamber
A mãe bem diz: logo passa
Mas limpe esse nariz
08/11/02
O rio Atibaia deságua no Paraguai
Porque Campinas dista minutos de sonho
De São Luis de Cárceres
Assim é minha pessoal geografia
Nada descritiva tudo explica
O irmão que se foi
A mulher que se foi
A mâe que se foi
O pai que se foi
Meu Deus isto é uma procissão
Que o Senhor encaminha
Pelas ladeiras do Bonfim da minha juventude
Minha primeira casa
Alugada
Meu primeiro filho
Que anunciei à madrugada:
Corram que é hora!
Hora de todos
Se felicitarem esquecerem o café
Não
se esse cheiro de hospital
Mas também o rio era estranho
Passavam peixes
Passavam barcos
Passavam os mais estranhos presságios
Na minha imagem boiando na água
Nenhum tão estranho como a vida
Que é assim tão diversa e tão mesma
07/11/02
Quantas noites passei em pé
Você com suas cólicas
Eu deixando sua mãe dormir
Porque ela está tão cansada
Cansados estamos todos
Mas felizes
A vida agora aponta
O que virá?
Hoje sabemos
E minha vida está ao meio
Não quero mais da vida
Quero você seus irmãos
Enquanto puder dar minhas aulas
Insolentes
Mais cabelos longos e grisalhos
Minha insistência em usar jeans e tenis
Em usar ônibus
Você não sabe
Mas eu carioca
Ir à missa foi uma transgressão
Rompi com o que pude nisso sou bom
A todos guardo
Não no silêncio inútil
Nas palavras frágeis
01/11/02
1
O amor corrói os óculos
Cerra os ouvidos
Multiplica em vão as palavras
Torna os gestos cada vez mais imprecisos
O amor dilui a paisagem
Faz do lobo um lobo
Tudo dissimula
Tudo trai
Esquece os anos
Lembra as dores
Esquece as mesmas dores
Culpa ou justifica
Segundo a conveniência
Para o amor até o dízimo da couve
É essencial à lei
O amor é generoso
Quando joga verde
E esquece que a primavera
Vem quando quer
Que ela também é arbitrária
01/11/02
Que seja querido
Que seja próximo
Que seja possível
Mas que não seja
Necessário
01/11/02
1
Na terceira fila de prateleiras
À esquerda
Na vetusta biblioteca do departamento de economia
Encontramos a primeira edição
Dos Sermões de Vieira
E um pouco além consultando uma passagem
Da Sagrada Escritura
O padre Vieira
2
Não falamos de alegrias vividas
Nem dos maus tempos
Partimos nossas vidas
E a sós cada um a seu modo
Não vivemos
31/10/02
3
O afeto é irreprimível
Podemos fingir transformá-lo
Em mil borboletas de papel dourado
O afeto fica em nós
Duro requerente
O afeto é este
Mas você sabe
4
Insuportavelmente é o mundo
Mais vasto que o meu coração
Não conta o vinho
Não conta o amor
Não sou poeta
Sou raramente zen e mesmo aí
Mais propriamente triste
01/11/02
Tão inquieto me faço
Se estou ou não contigo
Que quando te vejo a leste
A oeste te vejo se pondo
Se com a direita apontas o sul
Quero também o norte e a esquerda
E se no céu te colocas
Na terra ao teu lado vou nos deitando
26/10/02
Todas as palavras estão manchadas de desejo
Anzói scopo de dadosentando abolir o acaso
A palavra que nomeia o mais frio e o mais distante
Guarda a paixão do Titanic
Incluindo as próteses glamourosas inspirando
O susto e o beijo no amor que súbito
Se faz único e verdadeiro
Até que outra palavra eficaz surja do abismo
Cria a luz para não errarmos tanto o caminho
26/10/02
Esse poema assovio
Não serve como poema
O que é ótimo
Nem chama passarinho
Nem brinca com moça bonita
É inútil nesses casos
O que já é mais grave
É um poema que nem mata nem cura
Mas consola
É um poema digamos homeopático
23/10/02
Lira dos Quinze Anos
Eu queria condensar
Na química terrena tão banal
De que se fazem os amores que não terminam
E os vinhos excepcionalmente bons
Mais: o seu relaxamento atento
A sua inquietude aceita e resolvida
E a noite tão rara de estrelas em Curitiba
Num verão curto que serve o gosto
Do verão de Fortaleza e de Cuba
Queria poder deixar de ser tão político
Tão poético tão religioso
Não andar também com o fio de prumo nas mãos
Tocando os muros
Deste vasto arrimo
Queria poder viver sem esperanças
E não precisar tanto da tua pele
A lembrança
23/10/02
Auto-ajuda
Por que fiquei tão aflito
Por que a raiva quase me perdeu?
Será que a mim também
O mundo tornou intolerante
Será que me cabe escrever
O obituário dos imbecis
Que aliás vivem
E passam bem?
Oração
Lembra Pai do dia em que nos fizeste
Que nos predestinaste o mundo
Como lar
Não como desterro
E aliás só temos o mundo que nos deste
Outro não criamos
Daí esse desespero
Que beira o pecado
De tantos pecados
Que perdem o mundo
E se perdem juntos
16/10/02
Vindo um tempo de requerer-se a companhia
Dos que já não podem acompanhar-nos
Não porque não o desejem os que podem
Mas por não partilharem as mesmas intrigas
Ciúmes questão de opinião
Por não estarem aqui antes mas
Vindo depois e aos poucos por gerações
Já a cidade dos mais velhos ainda presentes
Pôde e pode chamar-se São José dos Ausentes
12/10/02
Às sete chega o leite
Às sete e meia sai o pãozinho
Às vezes estou tão só
Mas lembro: casando sara
E às oito tomo um lanchinho
14/10/02
Você, tão leve e tranqüilizadora
Longa noite longo inverno
Entre as canções pagãs fino- ugrianas
E a neve que não pára de reafirmar
A pureza do branco e a inexistência de horizontes
Nas estepes siberianas
Que nunca conhecerei
14/10/02
Toda flor é importante
Senão para você, que é amarga,
Para a borboleta que dela se mantém
E nesse exercício faz nascer outras flores
15/10/02
Conversa íntima
1
É melhor falar
Das coisas caras e importantes
Dando voltas e mais voltas
Mentindo por meias verdades
Ou compulsivamente
Deixando que a concha de uma palavra
Calculadamente dita
Esconda a carne que quer viver
E que em nosso cerne vive
12/10/02
2
Por essas coisas tão caras
Estamos ora unidos
Ora separados
Sem saber quando
Por quanto tempo
Culpando a vida
É certo: culpemos a vida
E bola pra frente
12/11/02
Tiago
Quando eu quero falar com o Tiago
Em primeiro lugar eu lembro a grana
Que ele me emprestou e não paguei
Depois o número de livros discos filmes
Viagens vinhos cujas pistas ele me deu e foram ótimas
Em seguida lembro de todas as pessoas que o amam
E da quantidade de classe da mulher que ele tem
Esses números juntos formam o do celular do meu amigo
Que no momento está em Marte dando um rolé
09/10/02
Poemas queimados
Nas desilusões do amor
Cedo se foram borboletas negras
Por que o amor não era azul?
11/10/02
Quando a tempestade está próxima
E não há um pára-raio à vista
Quando se está longe de casa e é tarde
Mas não há mais vales-transporte no bolso
Quando se quer uma companhia tranqüila
Com a qual se possa conversar sem constrangimento
Quando aos cinqüenta anos se quer companhia
Para fazer umas asneiras próprias dos vinte
Quando se quer falar de Deus
Sem dar nem ouvir sermão
Quando se quer falar de amor
Sem ser julgado ateu
Quando não se tem motivo algum para ficar só
(é preciso um bom motivo para isso)
É ótimo encontrar você Anna Luísa
09/10/02
Deus está tentando terminar o céu
Você não quer suar um pouco
E ajudar pegando uns tijolos?
07/10/02
Quantas balas precisarão ser perdidas
Antes que uma fure o seu jornal
Quantas pessoas precisarão sangrar
Antes que teu sangue aflore
Quantos pobres oram do seu último recurso
Que você ignora
Quantos precisarão orar
Até que você mesmo se sinta pobre
E ore
Quantas vezes você desejou sua mulher no último ano
Em que noite você ficará acordado
Com a mais lúcida integral positiva
Salvadora dor de cabeça
07/10/02
Por que você pisa tão leve
Abafando o tamanquinho no tapete
E prende, austera, o cabelo?
Por que serei tão leve
Atrás dos óculos que gravam
A impressão do entendimento
Mas também de distância
Distância que eu meço em braços
Mas que não sabem nadar
Mas você me assegura
Aqui é um porto
Provisório se quiser
Se gritar adeus
06/10/02
Mas há uma hora boa
Em que você sentirá
O tranco do leme
Nas marés
Às vezes é preciso ir muito longe
Dar várias voltas e sempre
Conferir as referências
Às vezes basta sair um pouco pelo bairro
Mas sabemos nem sempre andar
É o maior problema
Às vezes é preciso pensar com outros
Problemas (antes tão alheios)
E chorar ao subir na calçada
Nós que atravessávamos a rua
Rindo por motivos só nossos
Às vezes é preciso pegar nas mãos
Olhar nos olhos
Essas coisas banais e emocionantes
E há uma paz na qual apostamos
Que buscamos
Mas sobre a qual ainda há um não
Um pode ser
Um tente de novo
Porque amigo mesmo em plena idade madura
Custa bastante ser feliz
05/10/02
Farrapo hegeliano
Existes para si
Quando não estás aí
Comigo
É quando menos sou
Em mim
E para mim não estou aí
Com nada
04/10/02
Forever
1
Demian Castro, bom tenista,
Bom judoca, bom professor,
Quando meio alto se tranca
No banheiro com um sax alto
Que esquece de aprender
Quando mais abaixo
2
Ser estar permanecer
São verbos que ligam
A ave ao seu voo
O pobre à sua fome
O pároco ao seu vinho doce
O virtual ao manifesto
3
A boca nunca se une a outra boca
Como nos sonhos que se dão ao trabalho
De no beijo mostrá-lo tudo:
Detalhes de dentes, sede, pulsão
Nenhum beijo dado vale um beijo sonhado
4
Ninguém viaja em navios naufragados
Exceto os náufragos e os sobreviventes
03/10/02
Não faço oratórios para vocês que todas amei
Figurações de santas cuja função
É perdoar e compreender
De todas me tornei cedo descrente
Tão cedo quanto de mim
Faço poemas que me custam
As horas em que estou longe
Em que rogo a pele sobre a pele
A vida sem sua contabilidade exaustiva
O amor que não quebra o encanto
Se digo seu nome
E vive entre os materiais da vida
Sem esquecer a pétala a maçã
Toda a doçura que escapa
Como desnecessária confissão
27/05/02
Aos onze anos obriguei papai
A comprar uma foto de uma trapezista
Mais ou menos da minha idade
Os maiores amores são esses
Carentes de reflexão?
Arquiteto de uma continuidade amorosa
Perdi o retrato
Trapezista certamente ela já não é
Atemporal construi o significado de paixões futuras
27/11/02
Planos amplos e inclinados
Nos quais ninguém se mantém
Vãos livres insustentáveis
Na linha de três horizontes
No primeiro o barco se vai
No segundo ainda está no porto
No terceiros perdeu-se em si
No quarto horizonte
Tememos todos pelo futuro
22/09/12
Sinto muito não pude te entender
O arroz quase queimara no fogo
E era hora dos meninos irem para a escola
Havia um programa no rádio
Naquele país com tantas fronteiras
Será que havia uma guerra?
O rio fazia uma curva lenta
Em certos portos se podia tomar banho
Conversar de pé em meio aos peixes
Outro insinuava um poço
Melhor não pensar no desejo
Melhor perdoar
Meu bem
Anúncio
Preciso desesperadamente de uma mulher
Que ame bem
Cozinhe bem
Tenha uma saúde melhor que a minha
E jamais precise de meus conselhos
20/09/02
Uma frase tão linda
Um cisne escondendo os pés
21/09/02
Desculpe não pude me conter
E você não soube lidar comigo
Foi tudo
Quebrei minha imagem
Inútil dizer sinto muito
Peço sem a menor esperança
De ser perdoado
21/09/02
Eu te trazia uma flor
Mas o vento a desfolhou
Eu te trazia um soneto
Mas de tão vetusto me deixou
Rumo a um sarau na corte
Pensei em apenas vir
E apertar calorosamente sua mão
Mas minhas mãos se enfiaram nos bolsos
E ali ficaram duras teimosas
Não pude dizer nada
Não pude nem te tocar
Deixo em meu diário este poema imberbe
Na coleção das vergonhas juvenis
Que não acabo de perpetrar
Teu último poema
Te perdeste de mim
Enquanto fugias do frio que tornava insuportáveis
Teu tênis a blusa de flores a cabeçada
Que a gente sabe vai dar mas dá com gosto
Perdeste meu sonho achaste estúpido
Não me culpe algo em mim sonha
Eu também de mim tantas vezes me perderia
Se pudesse
Mas tu podes Afrodite
Recolhendo amor como imposto sem dedução
Absorvida funcionária de escrúpulos
Meus calos não te doíam é claro
Há sempre a dificuldade de bordar as palavras
Cerzir as frases dissolver parágrafos
Quando a vontade é calar e ver o Jornal Nacional
E há também o espírito do tempo
O contexto vital todas essas coisas
Que meu voluntarismo jurou dinamitar – em vão
20/09/02
Quarta – Feira
1
As menores orelhas bastam
Para os melhores perfumes
Que por isso só precisam
De pequenos frascos
2
De tantas mudanças em minha vida
Não vi mamãe envelhecer
Não vi meu irmão morrer
E a casa no Castelo ficar grande e antiquada
Depois que vim para cá e não saí mais
Percebi que a minha vida tinha lapsos
Desvios irreparáveis tantas pessoas às quais não me apeguei
E me faltam ou saltam em meus sonhos
Como retratos buscados hipotéticos
Irreparáveis
Fui ficando depois mais de bairro
E aprendi a fazer um trivial aceitável
Que eu me vá primeiro que vocês
Como Parmênides penso que a vida
É permanência e tempo que não passa
19/09/02
Se você se sentar nesse jardim
Logo terá companhia de pombos sujos e famintos
Poderá perguntar se há posturas municipais em relação aos pombos
Se migraram de algum lugar perdido e se adaptaram aos jardins urbanos
Se tiver bom coração lhes oferecerá pipocas
E pensará que a renda do pipoqueiro depende dos pombos
E da aura mística e pacífica de que a cristandade os revestiu
Mesmo sujos e famintos
E sem receio de mendigar a você pipocas
Se quiser mudar de assunto compre um jornal
Os sensacionalistas logo dizem a que vêm:
Insinuar que os atletas do seu time fogem da concentração
Se atrasam nos treinos
E que por tudo isso seu time vai mal mas que a diretoria tomará providências
Mostrarão a impunidade e o sangue-frio dos marginais
E pedirão a polícia no portão de cada casa e dentro da
Maioria das casas pobres e famintas
Tudo culpa do governo que não ensina a pescar
E dos pobres e famintos que compraram freezer a prestação
Segundo a última pesquisa de domicílio esquecendo que não teriam
Peixe para colocar no freezer
Guarde a página do meio: há uma mulher de costas insinuando
Que você é um homem que sabe o que é bom
Do que gosta
Por isso se senta na praça alimenta pombos compra e lê
O jornal
Aqui nada é excessivo
O inseto sabe algo nele sabe
Como não se perder no amplo parque
E o vento traz o exato prenúncio
De outra primavera
Pessoas em profusão trazem flores
E compram paçoca nos carrinhos
Para agüentar até o almoço
Aqui nada é excessivo
Que a tudo nos conformamos
Ao amor inesquecível
Aos heróis inolvidáveis
Aos anos que não nos tornam sábios
E comedidos
Oh vida tudo passa como pode
Tudo virá às vezes como pedimos
Às vezes não
Oh azul desolação!
Elegia fúnebre
Faz frio e os morcegos pendurados nos saibros do teto
Caçam sementinhas de mamão no cortinado
Leio sem D. Maria ter passado para casa
A história de Joana D’Arc que mamãe me deu
Com uma imensa dedicatória.
Corre o ano da morte de Kennedy
Aqui não há jornais mas pressinto
Que papai está tenso.
Por isso dormi cedo.
Quer dizer: não durmo.
Gostaria de perguntar porque posso ler sobre Joana D’Arc
Mas preciso ignorar quase tudo sobre Kennedy
Gostaria de estar com papai
Mas estou com medo de sair de baixo do cortinado.
1
O corpo é um poço de desejos
E ama as contradições
Que como se sabe não se resolvem
O corpo é mesmo um jumento
Mas nele vive o que há de mais caro
Enquanto as palavras se desavêm
Vicio aprendido no colégio
2
Se você ficar tempo suficiente
Ao lado de uma morena pequena
Os cabelos cheirando a roseiras
E as unhas sempre recém feitas
Você terá uma chance em mil de conquistá-la
Mas se ela chamar-se Ana
Sua chance diminuirá desoladoramente
3
Na vastidão oceânica dos diálogos
Com a minha alma
Acho-a infelizmente bem burguesa e comportada
Antes de abrir a segunda garrafa de champanha
4
Eu te amo mais que o primeiro homem
Que teve a rara idéia de olhar o céu
E apaixonar-se pela estrela da tarde
Seguiu-a até encontrar-se nunca soube como
Em casa no mundo.
Não nos separamos
Quase sonhando você cruza o jardim
Onde a roseira já não vive
E os caminhos se perderam no mato invasor
Ainda quase sonhando
Você pega um ônibus
A cabeça recostada numa almofada
Cheirando a um desinfetante
Que ajuda a dormir
Você então chega a uma rodoviária
Onde o café vem morno e doce
Mas ninguém sabe se há quarto
Para uma noite
E quase sonhando você continua
Mas não nos separamos
Tão longe e partidos
Perdemos a chance
De estar separados
Adeus meu amor adeus
Ao lado do telefone mudo
Da caixa vazia do correio
Para a posteridade digo:
Amei esta mulher como pude
Se não bastou
que bastasse a minha vida
Adeus
Quetrágico! e que solitário!
Palmas e silêncio agora para
O próximo ato
21/08/02
O amor é passado
Ainda que vivo
E esta casa antiga
Faz-se de moça
Na conversa dos meus rapazes
Eu leio e bebo
Dois passatempos solitários
E às vezes quando me angustio muito
Escrevo
E se já quase não me suporto
Te telefono
19/08/02
Quando passar o verão
Das diarréias
Virá o inverno torrencial
As cobras buscando abrigo
Dentro das casas
Trabalho sempre haverá
Por toda parte há miséria
E o freizinho não tem tempo
De lavar no tanque a batina
10/08/02
Setecentos portugueses carregados de café
Mediram-se a distância de um braço
E subiram a escadaria
Para aprender o segredo do cê-cedilha
11/08/02
O tempo interior é o anel
No qual retornam
Os sussurros no sótão
A carrapeta
O soldado desconhecido
A protofonia que mal cabe
No rádio
Contudo tão próxima
11/10/02
Quanto mais te busco mais me afasto
Da minha vida
De meu verdadeiro amor
E o que quero não é
Aquilo de que estou mais carecido
Incerto num caminho incerto
Jogo migalhas de pão enquanto sigo
09/11/02
Eu quero destruir os espinheiros
Que cercam o castelo onde você dorme
Sob o dossel antigo que entretanto
Nem o pó ousa tocar
Eu sou só um cavaleiro
Que às vezes faz triste figura
Mas se você me ajudar
Destruirei tudo o que me impede
De devolver à vida clara
O pajem que terminava
De servir o seu chá
O lacaio que (há quanto tempo?)
Ousava tocar nos vestidos
Que trazia da lavanderia
O brilho da perda que a espera
Momentos (quantos?)
Antes da festa
Basta que você sonhe comigo
Que em você tenho meu sonho
Acordado e amigo
É preciso cumprir o dia
Com rigor e método
Estar atento aos seus interesses
E de seu posto
Saber ver nos gestos cotidianos
As marcas iminentes
As desejadas e as indesejáveis
Do futuro
Mas se for impossível
Esta estrita observância
Se desculpe:
Qualquer um pode errar e erra
A cadência precisa do dia
27/07/02
Quando você não está comigo
Eu perco a hora
O leite talha
O chuveiro queima
Eu volto para a cama
Sozinho
26/07/02
Muitas amei de um amor tórrido
Incandescente
Entre beijos alcoólicos e palavras
Que buscavam
O universo
E que brotavam entre a saliva
E o esperma
Muitas amei democraticamente
Como mulheres entre mulheres
Eu, sinceramente, humilde
E lúcido
Homem entre homens
Mas que sabe que não há
Órfão no mundo
Nem potências celestes
Nem infernos
Além dos que cotidianamente
Joga no jardim
O motoqueiro da Folha de São Paulo
Mas este amor cujo nome não sei
Este corpo aflito que reparti
Entre você e você
Esta fração de humanidade ressuscitada
Para você guardei
A você eu devo
Que a você me devo
25/07/02
Eu te amo com um amor de mãe
Que não sabe estancar
A cólica do filho
Com o amor de um menino
Pelo pássaro que a custo apanhou
Mas soltou ao descobrir
Que sempre serão dois
Que jamais voará
Eu te amo com um amor
Aprendido trabalhado
Que o amor não é loucura
Mais incontida razão
23/02/02
Certamente eu
Certamente você
Beijamos a filha no quarto ao lado
Ignorando e que talvez ela ignore
Adormecendo ao lado de quem divide nossa cama
Decerto ignoramos se finge dormir
Se dormiu cansada de nos esperar
Certamente eu
Certamente você
Jamais saberemos quem somos
Nesses sonhos
E nos nossos
Um dia lhe direi: pode partir
Mas agora há essa sede
Essa lua silente
E os ônibus já recolheram
Agora há esse tempo do indistinto
Tempo de imaturidade
Em que ignoramos
Esses rinocerontes
Que comem nosso jantar
Vemos só esse colibris invisíveis
Que adejam os brincos de princesa
Da minha instância querida
Que teu beijo traz de volta
Ah essa aurora querida
Sua cólica seus panos quentes
Um dia lhe direi: pode partir
Mas há quanto terá você ido embora!
Resta essa sede silente
E essa lua insaciável
21/07/02
Toda minha vida vai
Rio que inteiro se despeja
Em mar?
Sem deixar marca
Na paisagem antiga
Seus cacos de desejo
Despojos de amor ardente
Catálogo de males pelo cartão de crédito
E como herança
Um débito
Tudo em minha vida vai
E esse silêncio rancoroso
Minha mãe meu pai
Que rói meu peito
Como uma tuberculose
08/07/02
Ama demais
Quando perde o amor
É por demais abandonado
Por um tempo não distingue
As horas do sono das da vigília
Não percebe se tem fome
Se deseja algo que não o amor antigo
Por um tempo não percebe
O que devia ser claro
Como norma da prudência:
Que as pessoas amam mal
E pouco
15/06/02
Aqui te trago
Um verso do dia dos namorados
Que não fomos e que trocamos
Por um amor calmo e constante
E que estará sempre contigo
A teus pés
Nos instantes largos e nas eras
Que o coração não toca mas esperamos
Sejam nossos
E das coisas que amamos
Nosso vinho
Nossos filhos
Nossa confiante preocupação
12/06/02
A gota na telha
O bater do coração
O ritmo do relógio
O ladrar do cão
Estes vieram
A horas ermas
Dizer que durmas agora
Meu anjo
Tudo certo entre nós dois
Com otres vezez quatro doze
A prova real eu lembro
Mas a dos nove esqueci
Bebi uma parati
Trazida do Ceará
Diretamente das mãos de Anna
Com um trago vou bem
Com dois já vou bem melhor
Tentei por todas as formas
Conquistar tua cabeça dura
Porque seus cabelos são macios
E seus peitos dois mamõezinhos verdes
Perdi o bonde das dez
Ah por favor não durma
Que eu preciso de quem me adormeça
Lembrei que a alegria é a prova dos nove
Hoje estou bem contente
Será que amanhã estarei triste?
20/05/02

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