terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poemas novos 1

Zepelin
se eu tivesse um zepelin
iria chamá-lo  Rosangela Landgraf
que é um nome exato
teuto- feminino
lembrando a um tempo walquírias
e máquinas precisas bem azeitadas
voa no céu meu zepelin ausente
não assim Rosangela Landgraf
que é minha amiga sempre presente

                                                            Igor Zanoni
Tantas vezes

tantas vezes já não encontramos
nosso antigo brilho no olho
e o espelho não acolhe
o que não mais pode acolher
pois passou
a tarde distendendo as pernas
cobrindo as distâncias da mente
o gosto da amizade
da cordialidade
aproximando o mundo
até onde vai o mundo?
não muito longe
ele começa aqui
em nosso próprio eu
rico de promontórios
ilhas mares do sul
estrelas que nos guiam
como cruzeiros do sul

                                       Igor Zanoni
Tão

nesta idade
comer pouco
manter-se ativo
agradecer cada nova respiração
estar com os amigos
ser grato por esta vida
não desperdiçar
os momentos
que ainda temos

                                       Igor Zanoni
Tão bela e tão cálida

ela era tão bela e tão cálida
tudo na casa despertava
ao som de sua risada
por que agora está pálida
e distante
ela tão encantadora
despertando as horas
ressuscitando as crianças
os móveis
o gato e os corredores
sob que encanto está agora
tão distante como se houvesse
despertado para uma vida
que não havia
algum dia ela voltará a sonhar
e nós de nossa tristeza
voltaremos a acordar?

                                                                   Igor Zanoni
Tarefa

por onde andei
nem sempre pude estar
ao lado de meus companheiros
nem ler os seus jornais
e comemorar os mesmos aniversários
meu tempo interior me obrigava
a correr atrás de mim
a me tomar pelas mãos
e guiar-me até onde não sabia
toda pessoa é uma medida incompleta
que deseja ser inteira ao seu modo
disto não pode fugir
mesmo se quiser
pensaram os outros de mim
isto e aquilo
pude compreendê-los?
para que?
o mundo tem muitas velocidades
e tudo nele é desigual e heterogêneo
quem quiser viver com outros
deve saber que nem sempre pode estar
ao seu lado
que cada um descubra suas tarefas
esta é a melhor máxima moral

                                 Igor Zanoni
Taxi driver

gosto sempre de falar o que acontece
às vezes algo muito importante como
um motorista do ponto de táxi
foi esfaqueado esta noite na altura da garganta
outras vezes temas mais banais
o burrinho preto leva uma carroça de recicláveis
sobre os quais se alojam um cão
duas crianças e um rádio de pilha
mas quem pode me dizer o que é mais crucial?
o burrinho por exemplo e a família que leva e sustenta
daria uma ótima monografia gilberto freyriana
sobre a importância do jegue nos sertões metropolitanos
mesmo com estas dúvidas penso que falar
é mais importante que calar
que falar é ouro e calar é prata
falar é uma prioridade humana
é um direito fundamental defendido pela ONU
e caçado tão logo um pulha tome o poder
um poeta pode pouco
mas não pode tudo ser poesia?
então poeticamente digamos
os demais motoristas quase mataram de pancada
o responsável pela agressão
que horror! e no entanto esta é
a nossa poesia

                                                Igor Zanoni
Tédio


as soberbas cortes orientais
criaram sofisticadas raças de gatos
para evitar o aborrecimento
e o tédio
dos que têm tudo
e têm o mundo aos seus pés
também com o mesmo fito
os chineses inventaram
os fogos de artifício
as manufatura medievais
os tecidos suntuosos
os iogues indianos inventaram
por sua vez as formas de desapego
a um mundo ilusório

                                    Igor Zanoni
Telégrafos gritam

para quem não tem
o coração tranqüilo
todas as águas levam
ao mesmo moinho
toda conversa interior
é truncada
todo rosto alheio adverso
o próprio rosto no espelho
uma estranheza
pode-se estar saudável
mas sente-se doente
os sorrisos falham
falar com alguém
é uma imprudência
impõe-se uma urgência
à qual não se sabe responder
telégrafos gritam socorro
quem ouve esses gritos
silenciosos?

                                              Igor Zanoni
Tempo de urgência

hoje não tempo para a paciência do conceito
o espírito subjugado ao pensador profundo
por uma vida
hoje é tempo de uma ética de emergência
boas e fundamentais regras claras
que despertem o coração bondoso
joguem fora do barco o peso agora inútil
disso depende o amanhã
o tempo que temos é só hoje

                                                              Igor Zanoni
Tempo tempo tempo

é sabido que os sentimentos
possuem seu próprio tempo
e que não nos exprimimos 
conforme nossa vontade
mas segundo o modo
como ela pode se revelar
neste aqui neste agora
assim um menino cresce
com suas emoções dia a dia
trabalhadas em sua turbulência
e um homem se vê subitamente
o homem que não pensava
que chegaria a ser
viver é sempre novo
por essa tensão que possuímos
nossas pressões internas e externas
que nos oferecem palavras gestos
olhos mãos boca ouvidos
construindo esse ser
por natureza pouco hospitaleiro

                                         Igor Zanoni
Tempo tempo tempo

quando somos crianças
não nos importa nem pensamos
se o tempo é circular
e o inverno sempre nos surpreende
prendendo-nos em casa
logo aprendemos que há
uma longa ascensão
ligando a primeira série
à segunda e assim por diante
embora não saibamos o porquê
ficamos infelizmente maiores
já não brincamos tanto no pátio
e as disciplinas já não deixam
tanto tempo livre
depois caimos num vácuo
que se preenchia trabalhando
ou quando se tinha sorte
indo para a faculdade
depois dela somos
 uma grande ansiedade
para saber o que fazemos agora
e nos pegamos com novos compromissos
com os amigos escasseando
vivendo uma vida novamente
mais familiar
quando não nos empregamos
em algo sério
agora é por nossa conta
o pai gostaria que fôssemos
o que ele não pôde
e a vida de algum modo segue
dando a séria convicção
de que não passa de um caminho
semeado de pedras
mas pode não ser só isso
ou não pode ser só isso!

                                  Igor Zanoni

Tempo tempo tempo

naquele tempo tínhamos menos pressa
aconchegávamo-nos tranquilos
enrolávamos um cigarrinho de papel
alguém punha um disco na vitrolinha
e a calma dos Mutantes celebrava
nossa absoluta contemplação
do momento
fazíamos filosofia viva quase muda
já chegamos ao futuro
mas depois atônitos voltamos

                                        Igor Zanoni





Tenra infãncia

não nos lembramos bem dos amigos
da tenra infância
da casa onde moramos
dos brinquedos
sequer dos pais
mas uma impressão sem contornos
uma energia calorosa
vive em nós como uma fonte inesgotável
uma prazerosa nostalgia
da vida

                                              Igor Zanoni
                                          


                               
Teodicéia


quem é o homem para que Deus
dele se lembre?
O Senhor deve ter um imenso escritório
onde os telefones tocam o tempo todo
os e-mails chegam os casos urgentes
demandam ação imediata
e nem sempre se pode confiar nos anjos
é claro que a igreja já adianta
bastante o trabalho
com as confissões seus perdões as comunhões
mas quando sai da igreja
um homem se perde facilmente
no atraente mundo
e suas armadilhas nem sempre pessoais
mas coletivas
a humanidade sempre cambaleia
quando se manda um profeta ele é morto
ou os falsos profetas ocupam a cena
com suas receitas de vida natural
e as vantagens do leite de soja
há os que tentam ajudar
com comunidades rurais
mas por que sempre esperam por alienígenas?
ainda se lê “Eram deuses austronautas?”
mesmo em “Jê vous salue Marie”
há um papo meio por aí
e um anjo sem fazer a barba e o cabelo
insinuando que o Céu não é lugar
para gente limpa e apresentável
mas quem no fundo da alma é apresentável?
ai esses problemas talvez o Senhor supere
apenas com sua infinita bondade
enquanto toma um Ormigrein
e vai descansar em um sábado que não termina

                                                        Igor Zanoni

Tesouro

quando descubro algo precioso
sempre penso
por que só descobri isso agora?
a vida é breve
não se pode deixar de procurar tesouros
e quando achar um terreno
com um bem precioso
vender tudo na casa
e comprar o terreno

                                     Igor Zanoni
Tibete

até apenas cinqüenta anos atrás
nos Himalaias tibetanos
de raras ervas e lerdas marmotas
e iaques úteis para quase tudo
quando o povo ignorava outras terras
e solitário rezava ás suas deidades
bebendo chá com manteiga
e farinha de cevada
para matar mais que a fome o frio
os mais inquietos mestres pregavam
a transitoriedade do mundo
e refugiavam-se em cavernas ermas
até se iluminarem
de uma forma hoje quase inapreensível
essa luz que não se apagou ainda
nos desafia por seu rigor
o seu amor ao mundo e aos seres
quando não havia quase motivos para  ambição
nos enriqueceu
quando o prazer era quase nulo
trouxe alegria ao mundo
pois este não está diante dos olhos
mas no coração e na mente atenta

                                                           Igor Zanoni
                                            
Tigre

às vezes sangra-se de um tigre
sem nome
sem endereço
sem referências
dizer tigre é apenas uma ilusão
que convém a uma sede
tão grande de dilaceramento
Borges notou na palavra tigre
sua beleza
a evocação de um terror insuportável
mas nunca se sabe o que se pode ou não
suportar
então digo tigre
mas morro de medo

                                     Igor Zanoni
Tigres

a dor de cada um
tem correspondência na dor coletiva
que a humanidade juntou sobre si
e que não podemos nunca
ver senão na nossa vida
um pouco no nosso dia a dia
às vezes vemos dores alheias
que nos assustam
mas não são alheias
fazem parte da dor coletiva
e agora são também nossas
assustadoras mas nossas
a dor de cada um
é um caminho para dores alheias
mas cuidado com elas
você não é tão forte
e os tigres rondam

                                        Igor Zanoni
Tijolos

quando na distante Campinas
empreiteiros pequenos construíam
casas financiadas por hipotecas
para os garotos havia uma mina
de pequenos cacos de tijolos
entre muitos terrenos baldios
e ruas vazias
com eles riscávamos canchas de futebol
jogos de bets e amarelinha
era o fim de uma infância
ainda mal urbanizada
que permitia o bonde 10
lento ganhar o ponto final
na pizzaria Torre di Pisa
entre meninos pendurados
ou que sentados quietamente
excitavam o sexo com os solavancos
éramos meninos remediados
e alguns pobres
morávamos em um confim
políamos nossa vida
esfregando tocos de tijolos
a alma um pouco ao Deus dará
e Deus deu

                                                 Igor Zanoni
Todo poema

a todo poema cabe cantar
esse movimento que gira
o tempo do coração
a todo poema cabe roer
essa corda em que
nos achamos pendurados
esse eco de tempos primordiais
de que não nos livramos
nada é mais próprio em nós
que nosso abismo
nossa prisão
nosso eco
a todo poema cabe a rouquidão
do lobo do mar
suas saudades
suas cicatrizes
seu cachimbo
o desejo de matar o dragão
de sete cabeças
que só responde a Deus
todo poema deve dizer palavras vitais
deve dizer pois do que se morre
ou pelo que se está disposto
a ser um assassino
deve falar do que evanesce
como um arco-íris
como um jogo perdido
como um silêncio afinal quebrado
pelo que tanto desejamos dizer
e mal dizemos

                                             Igor Zanoni

Tolo

tolo mas respeitando os sábios
suportando toda dúvida com fé
mas pensando incessantemente
em cada ensinamento recebido
preparando sempre um coração puro
não desejando nem desdenhando
mas abrindo as mãos
para o que for concedido
sem confundir belas palavras
com as palavras necessárias
desejando cura e não honra
fugindo sempre do cansaço
e da má vontade

                                     Igor Zanoni
Tom


1
escrevo meus textos na escola
para os meus alunos
leio para eles
quero contar como é divertido saber
Monteiro Lobato pensava o mesmo
e inventou o Sítio como pretexto
para falar de Hércules e da gramática

2
meu gato me segue feliz
enquanto dou um jeito na cozinha
achando que estou brincando com ele
esse é um gato que vê a vida
cor de rosa!

                                          Igor Zanoni
Trabalhador

por trás desse rosto está decerto
uma vida de trabalho precoce
de poucos cuidados médicos
de pouca escola e pouco carinho
de roupas baratas e muita aguardente
este rosto é marcado por muitos sulcos
também precoces
e este corpo forte de trabalhador
precisa do almoço com muito feijão
arroz carne macarrão
para agüentar o tranco do dia
e encher o vazio no corpo
não sei como é o homem atrás desse rosto
pode ser bom talvez carinhoso
talvez vá a uma igreja
talvez nunca tenha lido um livro
mas tenha uma opinião de como os livros são
ou de quanto ganha a gente que sabe ler um livro
faço hipóteses a partir da minha vida
que terá decerto poucos pontos de contato
com a desse trabalhador
sentado com seus colegas rudes de trabalho
para o almoço
por isso tudo que digo pode ser insensato
gostaria de fotografá-lo como Sebastião Salgado
ou fazer um super oito dele almoçando
o baralho do mundo deu-lhe poucas cartas boas
como faz com a maior parte das pessoas
 e eu não tenho nem como lhe dizer bom-dia

                                                    Igor Zanoni
Transparente

eu pensei que era transparente
e não precisava dizer o que sou
como sou
as pessoas me veriam apenas!
e nesse engano perdi amigos
perdi amores
todos gostam de estórias
com um bom enredo
e personagens adequados
e eu já não sei se vivo isto ou aquilo
e se me iludo


                                       Igor Zanoni
Transverso

as pessoas percebem em si
primeiro a falta a carência
porque é um falso imperativo
de que neste mundo é preciso
ser rico e ter poder
a partir daí se levantam atitudes
de reposta
para se isolar na riqueza
da melancolia e da interioridade
ou para buscar uma riqueza
material em seus diversos signos
parceiros amantes objetos
em suma dinheiro
uns poucos podem ter o dom de viver
uma solidão criativa
ou uma parceria não manipuladora
esses são resíduos
que a religião ainda ecoa
nos momentos em que não está
buscando também poder e riqueza
ecoa como adormecimento
para que ninguém sinta sua posição
de pobreza para si
enquanto gera dinheiro para outro
ou apenas sobra em um mundo
transverso
incidental

                                           Igor Zanoni
Trevo

quando as nuvenzinhas cinzas
aparecem sobre minha cabeça
saio para ver no jardim
as flores rosas do trevo
que não como a rosa rosa
é gratuito nasce à toa
vira praga diz o jardineiro
trevos azedinhos
nascendo em frágeis buquês
do nada surgem no jardim
não tem na floricultura
tudo que é leve neve nave ave
fazem sua sintaxe
com flores rosas do trevo

                                  Para Fabiana
                               Igor Zanoni
Tudo a seu tempo

tudo tem o seu momento
os homens têm o seu tempo
o que lemos ou escrevemos
sempre é datado
as canções que amamos
depois amamos menos
com o hábito
tudo que nasce pode não
correr para o fim
mas sempre para uma reinvenção
talvez algumas questões
sejam entretanto definitivamente
solucionadas por nós
até sem percebermos
como sentimentos amorosos
ou então pelas reformas ortográficas
e outras coisas de somenos

                                               Igor Zanoni

Tudo passa


todos sabem que
“tudo passa, tudo sempre passará”
como cantava Lulu Santos
mas espera-se que não passe
todos desejam que pelo menos
este amor seja eterno
a engenharia genética quer criar
o homem imortal
todos sabem que um dia
tudo pode acabar
mas não sabem ao certo
o que acabará
até quando usarei cabelos compridos?
até que idade serei bela?
a indústria tenta respostas
as companhias de seguros
tentam aumentar seus mercados
assegurando o que podem
é possível sair dessa paisagem
com um grande desapego
para um grande iogue
nada melhor que uma respiração
funda

                                             Igor Zanoni
Um amor é quase tudo

por mais que os pais
 ensinem às crianças o seu rosário
todas aprendem com a vida
a pensar e decidir sobre ele
sentimentos e razões íntimas
não podem ser muito partilhados
quanto mais alguém se sente
livre e saudável
mais encontrará o que guardou
de melhor em sua história
mas para isso é preciso reservas
de bondade e de esperança
que lhe dêem certa autonomia
como disse o poeta muitos estão sós
em uma multidão de amores
mas um amor na vida ensina
quase tudo

                                  Igor Zanoni
Um Cara

um cara grande como um precipício
seco como um agente funerário
tolo como um gato mal-acostumado
que gostava de umas e outras
mais de umas e de outras
discorria embora pouco
sobre o que de mais banal havia
não viajava
jamais tinha visto um horizonte
sua vida era pão pão terra a terra
entretanto media todos por si mesmo
como qualquer um mede
nunca fez falta a ninguém
mas sempre chegou nas festas
meia hora atrasado
saiu de um livro de Dickens
como o Sr. Pumblechook
ou Mr. Scrogge
mas se fosse como estes interesseiro
e avarento
haveria algo a dizer dele
como não era fico sem assunto

                                   para Mateus
                                   Igor Zanoni
Um dia

um dia você vai me dar razão
um dia você vai entender seu pai

                                   Igor Zanoni
Um dia a felicidade

um dia a felicidade baterá
à sua porta
como uma revendedora de Avon
com as últimas novidades
para deixar você linda
mas cuidado para não abrir
para estranhos!
você há de amar em vão
acreditando em falsas promessas
cuidado com as imitações!
você sabe como ter certeza
de qual é seu parceiro ideal?
sabe distinguir o homem
com que você sonha?
é claro que você não sabe
ninguém sabe
como disse Drummond
“amar se aprende amando”
isso valerá para os dois
mas esperarão com paciência
por vocês mesmos?
você sempre achará que talvez
não valha a pena
às vezes preferirá sentir-se
iludida
o amor é uma pátria estranha
quem pode ter nela cidadania?
não há mágica
o amor é um trabalho cansativo
quem disse que a vida
foi feita para acomodados?

                                     Igor Zanoni
Um entalhador

um entalhador abriu uma oficia no bairro
fazendo pequenas placas comemorativas
escudos de  clubes de futebol
imagens do papa e da Virgem
não vai além disso mas sua bancada
não basta para atender os pedidos do bairro
vamos ver quanto isso vai durar
mas neste bairro recheado de igrejinhas
que não fecham pedindo milagres
este homem encontrou uma maneira
de orar com as mãos

                                         Igor Zanoni
Um homem comum

é raro o homem
que anda no seu passo
atravessando por exemplo
uma praça
entre pombos pessoas esperando o ônibus
carros circulando em sua névoa de carbono
polícia prostitutas
passantes diversos rumo a mil itinerários
e conserva seu coração atento
sua mente silenciosa
entre os objetos indispensáveis do seu dia
e é em suma um homem comum

                                           Igor Zanoni
Um homem de ação

um vizinho se casou e queria filhos
precisou fazer um longo tratamento
e afinal sua mulher teve uma filha
à qual deu o significativo nome de Vitória
era bancário há longo tempo
e formado em contabilidade
com as fusões dos anos noventa
perdeu seu emprego
mas com o dinheiro do PDV quitou a casa
e guardou o resto
passou a dar aulas por hora em uma faculdade
ali fez um mestrado e doutorado bem rápidos
tornou-se consultor da Associação Comercial
entrou numa chapa do Conselho Regional de Economia
ficou conhecido e mudou para outra faculdade
na qual logo se tornou chefe do departamento
comprou um pequeno apartamento na praia
para onde religiosamente vai nos feriados e nas férias
agora estuda inglês
e prometeu aos filhos que no final do ano
visitarão a Disneylândia
este é um homem de ação
que não me convida para suas festas
embora sejamos vizinhos e ambos professores
                                                                                                       Igor Zanoni
Uma canção

uma canção tocou
e eu não ouvi
como não ouvi nenhuma
outra naquele noite
outro à sua frente
não sabendo como ficar
de modo adequado
sério sucinto delicado
eu que nunca
você lembra aquela noite
você às vezes me lembra
parece uma canção do Caetano
de certa forma só
naquela noite
até hoje


                                   Igor Zanoni

Uma criança

quando se vê em uma criança
os traços de seus pais
ela distraída no ambiente
ou acompanhando como pode
as conversas familiares
pode –se pensar em outros traços
com os quais ela terá de lidar
e que enforma sua alegria
sua tristeza seu gênio
e nesse momento tomamos
se somos prudentes
cuidado conosco
pois também entre nós
uma criança nasceu
e nos leva bem ou mal adiante

                                Igor Zanoni
Uma mala de japa

a vida demora muito
a se mostrar mais afetuosa
e recompensadora
isso só vem quando nossas tensões
são compreendidas e vividas
de tal modo que não nos envergonhamos
sabemos: ah lá vem você
ser alguém deste ou daquele modo
é um projeto de vida quase impossível
podemos conquistar algumas impressões
significativas
elas ficam como a paisagem
do nascer do sol em outra praia
mas que é a mesma que se freqüentava
em todas as férias
lembro de alguns rostos queridos
muitos gestos amigos
leituras privilegiadas
canções que foram feitas para mim
quando eu for para o céu
como certamente irei
porque de vez em quando o pressinto
levarei tudo isto em uma mala
ou melhor
em um japa-mala

                                           Igor Zanoni
Uma outra coisa


1
em que as pessoas pensam
quando dizem isto ou aquilo?
acho que em coisa bem diversa
nem pensamos como falamos
os pensamentos são fluxos
com uma sintaxe só sua
que a linguagem tenta disciplinar
e à qual deseja impor uma lógica
mas os momentos em que se fala
são sobretudo aqueles
nos quais se rememora o mundo
mas este vem antes como um susto
sabem os filósofos
e quando se fala torna-se uma outra coisa

2
talvez a maior semelhança entre nós
e os gatos
é que todos podemos pensar
em várias coisas ao mesmo tempo
a mulher que bate o tapete
pensa no encontro da noite
o empregado subordinado
gostaria de cortar a língua ao patrão
e o gato de olhos fechados
ouve o rumor das asas do pássaro
o mundo são aparências
mas onde encontro sua quintessência?

                                             Igor Zanoni
Umbrais
1
para conseguir algo
é preciso às vezes passar uma porta
você pede que a porta se abra
e ela permanece fachada mesmo que grite
por isso se diz “surdo como uma porta”
ou também “burro como uma porta”
o que não é exatamente o mesmo

2
muitas passagens têm um sentido
ou lembram sentidos que você
não mais considera verdadeiros
a história em que eles vem envolvidos
é bela mítica ou poética
por isso você gosta de ouvi-la
e ela se torna para você tão real
como se fosse verdadeira

                                                           Igor Zanoni
Universo

pai joga os filhos de uma passarela
e se joga em seguida na praia de Peruíbe
na França um pai degola a filha
e se mata a seguir
outro joga por imprudência o bebê
de um andar alto onde moravam
um casal em um segundo sem pensar
atira a filha também por uma alta janela
o que pensam os que caem na sua queda
como conciliam o amor aos pais
e o fato de terem sido empurrados por ele
cada notícia provoca outras
que correm o mundo em uma bárbara
reverberação das carências do mundo
muitas pessoas já não acham
o mundo um lugar que valham a pena
preservar ou viver nele
cada segundo dezenas de assassinatos
dezenas de assaltos em todos os grandes países
a violência cotidiana as fúrias da vida
o tempestuoso mar de fogo
a subida do inferno
a ascensão de uma luta pela morte
os quase perdidos fundamentos do universo
e da visão do universo

                                           Igor Zanoni
Utopia

só se pode amar uma nação
projetando sobre ela uma utopia
como só se pode amar
seus homens e mulheres
a partir do que poderão ser
no futuro
eu os amo a partir de mim
em algum ponto espero a todos
assim como em algum ponto
eles seguem avançando
e me acolhem

                                    Igor Zanoni
Utopias

pessoas memoráveis
são esquecidas
causas justas se revelam
inadequadas e cheias
de sofrimento
as utopias acenam a amargura
do seu irrealismo
um erro segue-se a outro
em uma corrente
que escraviza
mas a densidade de cada um
enche a vida
de sonhos
ela que é apenas sonho

                                              Igor Zanoni
Vale Vida

quando eu estava no grupo escolar
aprendia que as pessoas humildes
exerciam trabalhos também humildes
mas essenciais para todos
como coletar o lixo
ou arrumar casas e passar roupas
hoje os humildes são alvo
de auxílios miseráveis
para uma alimentação mínima
o que muitos condenam
como ação indevida do Estado
ou são alvo da violência das milícias
que exterminam sistematicamente pobres
a título de simpatizantes ou suspeitos
de ligação com o tráfico
mesmo que a pena de morte
e ainda por cima sem julgamento 
seja inexistente no País
um dia receberemos um vale vida
que dará direito por exemplo
a certo tempo de vida
e passaremos  um tempo
senão como úteis membros humildes
da sociedade
como cães de rua que a caridade protege

                                          Igor Zanoni


Valioso


tudo que é indispensável
e pode ser necessário
a qualquer momento
cabe no bolso
a carteira as chaves o lenço
a edição de bolso
mas há coisas ainda mais valiosas
que se leva na mão
como o terço da senhora
que vai à novena
ou o anel de compromisso
da adolescente
ainda mais valioso é o que se leva
no coração
como a palavra do Senhor
e o nome dos filhos
e dos netinhos

                                          Igor Zanoni
Varanda

houve uma varanda
onde um sol coado levitava
a poeira da casa em suspensão
e o tempo
o tempo era sempre o mesmo
para quem só tinha por missão
olhar as dimensões menos olhadas
do ar
quantas vezes isso eu repetia? 
infindáveis
o corpo um pouco amedrontado
dos meninos calados
das crianças quietas
do meu quieto então

                           Igor Zanoni
Velho amor

este é um mundo em que os aviões
às vezes desaparecem sem explicações
em que na Europa social se morre
de tanto frio
e no Brasil de vendavais dilúvios bíblicos
nunca houve tanta igrejas mundiais
e universais e internacional
agora não sem os vulgares pastores
mas com aureolados apóstolos
nunca se morreu tanto à toa
embora os investimentos prometam crescer
e o governo está feliz tentando dizer
que é disso que precisamos
mesmo assim se reencontram antigos amores
pelo Orkut ou apenas andando de ônibus
e se fazem promessas juras
Natais dos velhos presentinhos
e amigos secretos
a você dou de novo meu velho amor
meu velho amigo

                                    Igor Zanoni

Velho Marinheiro

há momentos nos quais só resta
ficar firme e tocar para a frente
mas não é bom oscilar
a razão é uma boa conselheira
no que toca aos princípios
destas horas difíceis
nada melhor que uma aliança
entre o coração e a razão
sob domínio férreo da última
ela permite ver o que é possível
e fazer como o velho marinheiro
que durante o nevoeiro
leva o barco devagar
como canta Paulinho da Viola

                                             Igor Zanoni
Velhos
1
velhos como eu
são como criancinhas
sem maldade sem malícia
apenas gostam de rir sábios
dos que levam a vida
tão a sério
2
na hagiografia não se fala
de santos sorrindo
apenas Francisco segundo se sabe
amou fêz versos e canções
e nisto está um passo à frente
mesmo de Jesus
embora sua vida tenha sido
excruciante como a Dele

                                                   Igor Zanoni
Velhos craques

quando Pelé foi para o Cosmos
o Santos se eclipsou perdendo
mesmo outras grandes estrelas
como Toninho Guerreiro
e passou a depender
 das categorias de base e de velhos craques
viveu antes períodos um pouco melhores
e outros piores com
Ailton Lira Joari e Rubens Feijão
e estrelas quase extintas
que matavam seu gosto pela bola
mercadejando aqui e ali
seu talento intato nas pernas já sem velocidade
vi assim todos os grandes
Dario Mendonça Eder Sócrates
que seleções de veteranos não foi o Santos!
não é fácil envelhecer jogando bem
lembro de Campos do grande Atlético Mineiro
o centro avante mais habilidoso que já vi
este país desgasta seus artistas
que não conseguiam se aposentar
saudades de Manuel Maria de Edu Marangon
ah se a lógica do coração
se impusesse ao mundo !

                                           Igor Zanoni
Velhos Mestres

é sempre essencial reler
os velhos mestres
neste tempo de estudos
 e pesquisas “de ponta”
ao menos para reaver
a sua inspiração
e o seu alento

                                        Igor Zanoni
Veludo

eu não conheço a aspereza
de sua pele
a pressão dos teus lábios
seu hálito eu apenas adivinho
suas palavras fluem numa torrente
que mal tocam meus pés
e já me deixam ao largo
não sei quanto você apertaria
nos braços
não sei como você me vê
me imagina
se me sonha
eu a vejo mal
aos poucos
corto-me no teu veludo

                           Igor Zanoni
Vento

oh vocês que tomam felizes
sua cerveja na calçada
ergam seus copos
para a vida que passa
reflitam um momento
façam o silêncio
que um dia haverá de fazer
sobre seus corpos
quando sua insensatez
for julgada e para sempre
o vento alegre
brincar com o pó
levantem o chapéu
para as chances perdidas
lamentem a vida
que generosa se deu
e envolveu indiferente
pássaros homens flores
chorem por seus poetas
por seus profetas
que as pedras mudas
sejam seus acusadores
que os bichos os acusem
na sua serena originariedade
quando tudo julgado
não restar senão
o brincar solitário
do vento

                                        Igor Zanoni
Vento

poucas sensações me são tão gratas
quanto andar em espaço aberto
com o vento batendo no corpo
acho que ela é uma reação
à minha vida atamancada
nesta cidade chuvosa
e sem paisagens amplas

                                                       Igor Zanoni

Ver as pessoas

perto da minha casa há um bar
pequeno que vende pinga cerveja
e ovo colorido
seu dono é muito elegante
tem um setenta anos
é magrinho sério
usa roupas quase sociais
fuma em frente ao bar
de pernas cruzadas
em frente ao seu Gol vermelho
que às vezes encera com capricho
tem clientes da sua idade apenas
ou quase
os velhos todos do bairro o conhecem
pelo apelido
mas eu acho desrespeitoso fazer isso
aprendi a gostar de ver as pessoas
é um dos prazeres da vida
um dos mais difíceis de adquirir

                                           Igor Zanoni
Verão

1

o calor chega abrindo os armários
a geladeira
cortando os cabelos
aumentando o número
dos que fazem regime
as viagens ao litoral
crescem as vendas no varejo
o décimo terceiro alivia o bolso
o verão é um pequeno tira-gosto
de paz e prosperidade

2

quando começam a florir
todas a um tempo
da soberba rosa
à humilde flor amarela dos trevos
os besouros entram nas janelas abertas
mas não os besouros de outrora
grandes verdes envernizados
com suas mansas carapaças ancestrais
não os pés de guambês imensas
nem o tempo em que se cultivavam gerânios
as begônias os antúrios
nas frescas varandas
isso passou

                                                Igor Zanoni
Verão

níveas nuvens
entornam guarda-sóis
professores passeiam guarda-pós
verão por todos os poros
para espanto dos polacos
é sinal dos tempos
diz o livro santo
pipocas voam nos cinemas
o avatar voa em 3D
tudo é história
que entra por um pavio
e termina por um fio
maravilha

                                     Igor Zanoni

Verão pluvioso

neste verão as mudanças climáticas
chegaram a nossa ilha dos mares do sul
instabilizando as mentes
de nosso melting pot
que fugiu desde dezembro
para sabe-se lá onde
o fato é que os shoppings estão vazios
as joalherias estão vazias
e apenas as casas pernambucanas
fazem sucesso com as modas de sempre
para aposentados e pensionistas
aqui há muito se mataram índios
cortaram-se araucárias
e se instalaram os alemães polacos
ucraínos e italianos
cujos primeiros descendentes
têm mais de oitenta anos e aparecem
nos livros de Dalton Trevisan
esse conservador empedernido
depois veio a pobreza sem eira nem beira
fundar bairros distantes
onde só se chega de langorosos ligeirinhos
alguns subiram de vida e trabalham
como mecatrônicos na Renault
a sóbria companhia francesa de automóveis
mas a maioria hoje lota as igrejas protestantes
de fundo de quintal
e nem bebe uma boa Valesa
a melhor vodka a sete e cinqüenta
prefere o chopps paulistano
de modo que só a quaresma
 veio repor os ânimos nos seus lugares
enrolados nas bandeiras do nosso desacreditado
futebol mas como Deus é grande
segundo dizem tudo pode melhorar
é esperar agora
pois a esperança é a virtude dos necessitados

                                                 Igor Zanoni




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