terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poemas novos 13


Bailarina

você me pergunta se ela era bela?
eu pergunto antes, meu jovem,
se você sabe realmente o que é beleza
se já esteve diante de uma sem ter medo
ela era uma bailarina, isso não diz tudo?
quando se movia em seus músculos
modelados e suaves a respiração bem ritmada
o rosto de uma princesa
e os cabelos oh! os cabelos
com sua música própria
levando todos os olhos para onde queria
onde o espírito da música lhe soprava
por aqui gentil menina por aqui...
e seu cabelo louro nos impelia por toda a cena
menino eu também já vivi!
e jamais a esquecerei
por onde me levar minha abençoada vida!


                                Para as bailarinas Isabela e Isabelle

Igor Zanoni
Bailes

mesmo em dias de semana
há filas diante do bailão
na entrada do Bairro Alto
moças muito arrumadas
rapazes galantes
movidos a Red Bull e vodka
ou a outras misturas
mas todos bem cuidados
fazendo uma fila ordeira
para dançar música gauchesca
o dono do salão é empresário conhecido
muitos se destacam no ramo do lazer
cronistas esportivos
locutores animadores de bailes
a maioria das pessoas tem esse tempo
e esses luxos
o que acontece com elas?
vem de toda Curitiba
conhecer alguém
fazer um carinho
a vida para eles vale o que dura
conheci muitos desses rapazes
bastante sem juízo
mas para quê serve hoje o juízo?
essa é uma pergunta para todos
na cidade tensa
que vive de suas pulsões

                                      Igor Zanoni
Bairro Alto

a tarde cai com as crianças
que brincam de skate na rua
mas não sabem se brincarão amanhã
a tarde cai com os jovens que hoje
foram à escola e beijaram suas namoradas
mas não sabem se terão tanta sorte amanhã
a tarde cai ouvindo o papo dos velhos
que foram jogar no bicho e comprar pão fresco
mas não sabem como correrão riscos amanhã
a tarde cai com seu perfume de rosas e damas da noite
o perfume que nos acompanha a vida toda
mas que podemos deixar nas ruas amanhã
a tarde cai com o menino jogando bola
que ele se divirta hoje e quem sabe amanhã

                                          Igor Zanoni

Bairro Alto-Porteira Grande

seu José anda incansável no bairro
não encontra o que fazer
além de circular em volta de filhos e netos
e de vez em quando viajar para Porteira Grande
ele gostaria de viver no mato
lá é que se vive
aqui só se vegeta
não é mesmo?

                                       Igor Zanoni
Balada do Diácono


ele amava muito a Igreja
-oh poucos a amaram assim!
que decidiu dedicar-se mais a fundo
no conhecimento dos seus mistérios
e no trabalho da santa missa
por muitos anos foi humilde catequista
preparando crianças e neófitos
para os sacramentos da comunhão e da crisma
já criados os filhos e amando ainda mais
a sua fé ajudava nos trabalhos do culto
vindo a formar-se depois de longos anos
um varonil diácono com sua túnica alva
e a cruz no peito do seu querido Salvador
mas logo decidiu-se Este a testar sua Fé
impondo-lhe os cuidados de uma terrível doença
que baqueou seu corpo mas sua Fé
não transtornou
pegou-se com São Peregrino
mais ainda o sacrifício Do Filho foi seu também
e a todos que se aproximavam dos Mistérios
nada dizia senão o que indicava seu mister
e em seus olhos fitando os fiéis pensava
-mais do que essa vida e sua morte
daria eu ao Cristo e Sua Igreja
mais vida tivera e mais de sua morte!

                                             Igor Zanoni
Banheiro

quem nunca escovou os dentes
olhando pelas janelas do banheiro?
a cidade em volta com seus postes de luz
melancólicos
parece um daqueles lugarejos
que se atravessa nas viagens de ônibus
e não se sabe bem onde está
se já estamos no Paraná
ou ainda em São Paulo
os olhos de sono pensam no amanhã
mas pouco
nestes lugares estamos em um intervalo
onde nada mal acontece
estamos longe da vida
tão perto de nós
quando estamos sós no banheiro

                                  Igor Zanoni
Barco

você fez um belo barco
aconchegante e arrojado
tem velas cabines timão quilha
parece bem com os dos livros
que líamos quando pequenos
mas estará pronto para o mar?
um barco não anda sozinho
você tirou seu diploma de capitão?
tirou sua licença
fez a inspeção na capitania dos portos?
e o mar? conhece suas correntes
suas baías seus recifes
suas zonas de pouco vento
e de tufões?
se fez tudo isso capitão
ice a âncora compre rum para o tédio
e amuletos para uma boa dose de sorte!
quem sabe para onde você vai?
você tem alguma idéia?

                                       Igor Zanoni
Beatles

no seu programa de entrevistas
penso que na Record
Hebe Camargo perguntou a um estudioso
o que achava dos Beatles
que preferiu não responder
dizendo que a palavra lembrava
incômodos besourinhos
desde então quase parei de ver TV

                                                              Igor Zanoni














Beethoven

para quem acha a vida difícil
e sofre com sua insegurança
melhor consultar as tábuas de marés
a tabela periódica
ou a tábua de logaritmos
mesmo a escrita musical é interessante
quem diria que por trás de tantos garranchos
pode existir a Nona Sinfonia?

                                             Igor Zanoni
Beijos

ao contrário do que pensam
os economistas
nem sempre a oferta se iguala
à demanda
assim nem todos os que precisam
de beijos os encontram
e abraços são dados no ar
diante de placas de “não há vagas”
para  alguns há escassez e sede
para outros o tranqüilo
amor e o deleite
é claro que ajuda saber-se quem é
o que procura
o melhor é ser bondoso
e um pouco indulgente
nunca há uma pessoa totalmente feia
ou repulsiva
e as belas também cometem deslizes
e ficam velhas
o amor deve ser criativo
ele é mais um calmo artesanato
para pessoas simples e bondosas
que uma atividade bélica
e corporativa

                                                      Igor Zanoni
Bem aventurados

bem aventurados os pobres
que se valorizam e se organizam
que vêem no pobre um próximo
e no poder um instrumento de retidão
e ética
bem aventurados os pobres
que confiam no que pode transcendê-los
seus filhos sua cultura sua ação
e exigem do poder modéstia
que não vêem no teatro do mundo
um sacramento e um culto mundano
antes crêem nos gestos diários
de amor e amizade
e de alegria

                                                 Igor Zanoni
Biblioteca

nas mansões sempre se guarda
um generoso espaço para uma biblioteca
que testemunhe o apreço dos seus proprietários
pela grande cultura e seus pendores
de amantes e conhecedores de arte
e das obras sutis do pensamento
entre as paredes recamadas de estantes
sofás moles que proporcionam
o conforto do corpo para a comodidade
do espírito
cinzeiros pesados para os charutos
cachimbos e outros raros objetos
que perfumem o ar masculino
tornando-o opulento e lânguido
há garrafas de caro uísque
e o compartimento apropriado
para que os vinhos vivam
sua inerente eternidade
exceto quando o espírito
após páginas da grande
e rarefeita beleza de um romance
ou um tratado jurídico
sorve sereno os espíritos
de uma dessas garrafas de colecionador
pois o grande Baco também lia
entre as muitas tarefas que o safado
conduzia

                                        Igor Zanoni
Bichos de vidro

quando menino vi
mestres ambulantes
que derretiam com um pequeno
 maçarico
longas varetas de vidro colorido
criando à nossa frente
com gestos hábeis
enfeites como pequenos animais
figuras de anões
o que lhes vinha à cabeça
ganhavam a vida com tostões
de basbaques de olhos arregalados
como eu que fazia papai
parar na rua para vê-los
tive uma coleção enorme
de bambis elefantes girafinhas
que eram ricas como jóias
melhor ser artesão que apenas
vender coisas como agulhas
ou bilhetes de loteria
faz as ruas mais encantadoras
mesmo que a arte seja simples
hoje ela saiu da moda
mas Tenessee Williams
escreveu uma linda peça
sobre uma loja que vendia
essas maravilhas de vidro
que ninguém mais faz ou compra

                                         Igor Zanoni
Big Brother

ninguém tem privacidade
os segredos custam e rendem dinheiro
você pela internet escolhe
sobre quem você quer saber
os últimos lances de Robinho brigando
com o time do Man City
Madonna de preto e óculos escuros
visitando favelas no Rio
as confissões de Tevez sobre seus desejos
 para o futuro
Dilama sendo blindada
dos efeitos do apagão
tudo rola de maneira deslavada
em tempo contínuo real
como um Big Brother global

                                   Igor Zanoni

Biquini cavadão

para alguns basta um olhar
para outros basta um toque
outros ainda precisam de um empurrão
mas há os que não se movem
inseguros tímidos como eu

                                                     Igor Zanoni
Bom dia Brasil

não gosto do dia cedo
quando alguém assiste
o Bom Dia Brasil
tomando café preto
e ouve as esperanças
sorridentes ou graves
de um dia cheio
com providências a tomar
gosto dos dias langorosos
quando se acorda cedo
mas demora-se a abrir a cortina
toma-se o lanche devagar
entre assuntos familiares
o mundo deve ficar
antes da porta da casa
o resto é invasão de domicílio

                                        Igor Zanoni
Bom tempo

não se alegre demais
 com o bom tempo
ou se entristeça
quando chove ou faz frio
as estações sempre se sucedem
e não há um dia como o outro
faça como o lavrador
que não só se mantém sereno
com o tempo mutável
como conta com suas
mudanças

                                 Igor Zanoni
Bombeiro

a melhor ação
a mais gratificante
deve ser salvar a vida de alguém
daí minha admiração pelos bombeiros
que na minha infância eram chamados
os soldados do fogo
meu pai era bombeiro quando nasci
e como sempre gostei dele
é possível que eu os admire por isso
salvar a vida de outros
 transformou a vida de muitos
como a de Albert Schweitzer no Congo Alemão
criando com dificuldade um tratamento
para a doença do sono e se expondo a ela
como muitos crêem que Jesus salvou
a vida de quem o ama
isso explica o ardor dos crentes
com a diferença de que julgam salvar vidas
de um fogo eterno
no inferno onde haverá
choro e ranger de dentes

                                                          Igor Zanoni

Bons e velhos hábitos


contra a nossa dificuldade presente
de nada vale reviver os bons e velhos
hábitos e crenças
Brecht disse isso em um poema
lembra-se de como tremíamos
quando crianças?
como era ambígua a relação
com nossos pais nossos professores
ou o venerável padre
como nos atemorizávamos?
de nada vale recriar ilusões
refugiar-nos na velha e boa história
como o último homem bom
pregando aos desvalidos
o presente é obscuro
muito mais o que vem!
não há Deus que nos salve
talvez nada nos salve
de que vale rezar Salve Rainhas?
mas temos felizmente o presente
e os recursos que nos restaram
vamos usá-los com prudência
sejamos prudentes
usemos o presente inteiro
as coisas talvez não tenham
solução agora
mas um dia bem podem ter

                                                     Igor Zanoni
Bons relacionamentos


ele tinha lumbago e espinhela caída
ninguém adivinhava que ia sair dessa
mas comprou um cachorro poodle
e passou a freqüentar
o recém inaugurado boteco da esquina
hoje só come fora
dando pitaco sobre o prato
passeia depois com Fifi
assustando meu gato
impressionante o que fazem
bons relacionamentos
para o lumbago e a espinhela caída!

                                                    Igor Zanoni
Brigas entre irmãos

eu sou eu e você é você
mas nem por isso vamos brigar
porque se a vida me tivesse tornado você
e tornado você em mim
eu não gostaria que você brigasse comigo
só porque eu seria você

                                             Igor Zanoni

Bruno

ele é um rapazinho doce e atento
embora goste da vida até
um sensível hedonismo
com uma inquieta quietude
o amor à música
aos livros de aventura
ao desenho 
que o levam quem sabe até onde
até mudar o curso na faculdade
para desespero do pai
vital como os jovens saudáveis
o sono não o pega
quando se trata de amigos
ou da namorada de sempre
nunca se sabe onde está
por todo o perímetro urbano
da cidade
tem festas e compromissos sérios
ajuda a mãe que o mima
como o seu único filhinho no mundo
ela sua única mãezinha
a todos dá uma mão
parece uma estranha centopéia
com mãos em vez de pés
seus pés estão no seu Fiat
 o carro mais rodado da cidade
que o leva para seus cem destinos
felizes os que têm tantos destinos!


                                          Igor Zanoni

Cabritos

1
cabritos comem jornal
podem sobreviver à custa de papel
os coelhos são muito macios
e não só os branquinhos
há cachorros ferozes que mordem muito
mas os cachorros de rua
são amigáveis e precisam de um lar
se tiver um cantinho de quintal
jogue quirera e arroz cozido
para os passarinhos
é uma pequena homenagem
ao seu encanto

2
nós não conhecemos todos os bichos
um tufão na Indonésia há dois anos
revolveu camadas de terra e de água do mar
mostrando inúmeras espécies desconhecidas
não conhecemos bem esse bicho que nós somos
todo cuidado é pouco
nenhum carinho é demais

                                                    Para Isabelle e Isabela

           Igor Zanoni
Cachorros de rua

não há maior fraternidade
que entre os cachorros de rua
tudo compartilham
a comida que acham
o sono nas horas quentes do dia
o amor despudorado
a morte quando um deles
cai sob as rodas de um carro à toda
nas ruas selvagens do bairro
esses cachorros lembram
o paraíso perdido e virginal
e nos fazem crer no amor
simples e sincero da criação

                                        Igor Zanoni
Cachorros na rua

cachorros se conhecem cheirando
o focinho as partes íntimas
mas sem pudores
deitam-se no calor
nos raros gramados
provocados pela falta de calçadas
circulam pelo bairro tranqüilos
sem dono quem sabe se com vacinas
se doentes
antes havia o terror das cachorrinhas
quem tivesse um cão deveria por
coleira com nome e endereço
distinguia-se o cão doméstico e amistoso
do reles cão sem emprego e sem lar
hoje há os ferozes cães enjaulados na casa
que os carteiros adoram acertar com um soco
protegidos pelas cercas
e os amáveis cães de rua
prediletos de Brigitte Bardot
e da Associação protetora dos Animais
dos budistas
de todos os esquisitos
vez por outra morrem atropelados
pelos automóveis alucinados 
por tudo que eles representam
de anacrônico no planeta
que já era

                                                          Igor Zanoni
Cada manhã

cada manhã ensina sua sabedoria
a outra manhã
cada anoitecer ao anoitecer seguinte
cada beijo evoca outro beijo
todo ser humano chama outro ser humano
cada estrela chama o cosmo
onde acham-se mares perdidos
e aminoácidos como os do nosso corpo
como podemos dormir
se nem tudo ainda está em seu lugar
intoxicados de emoções
ditamos nossa alma
em poemas  orações
e declarações de amor

                                     Igor Zanoni
Caleidoscópio

cada desejo é um desenho
em um caleidoscópio
que deve nos encantar
por isso dura um instante
e logo cede lugar
a outro desejo
no brinquedo que gira
somos por natureza  inconstantes
mas algo nos deve
envolver no jogo do mundo
por isso temos um caleidoscópio
que gira em seus desenhos
desejos de papel colorido
que encanta nossos olhos
famintos do mundo
mas incapazes de se deter
vorazes
como um cão comendo
sua ração
como se ela fosse fugir
e assim mais mal do que bem
construímos o mundo
e o mundo nos constrói

                                             Igor Zanoni

Caminho

hoje já não temos de colocar
esperanças em mentiras
mas temos de entendê-las
e assim poder criar para nós
ao menos algumas verdades
ao menos como hipóteses de trabalho
como planos a serem no futuro corrigidos
um passo é dar as mãos a quem confiamos
que é frágil e pode pouco
como nós somos frágeis também
e podemos pouco
mas que conosco faz caminho
caminharemos por nossa vida
com verdades que como as estrelas
em nosso céu nublado
são poucas mas se destacam
do profundo negror do céu noturno
e marcam nosso caminho
que fazemos ao caminhar

                                                        Igor Zanoni
Caminho depois do caminho

caminhar até se acabar o caminho
e depois

                              Igor Zanoni
Campo
o campo é silencioso
mares infindos de soja e milho
eucaliptos onde nenhum pássaro canta
pinheirais  quietos
às vezes algumas vacas comem
parte da  paisagem
entretanto sobre ele pesa
o destino da nação e do PIB
a taxa de inflação
nestes planaltos desolados
ninguém passeia
não há trabalhadoras  saudáveis
apenas quietude
mesmo insetos não zunem
não há nada que atraia uma criança
ninguém canta
ou brinca ou mesmo trabalha
                                                             Igor  Zanoni
                                                        
                                                
Canja

antes quando as crianças adoeciam
ficavam uma semana de cama
não iam à escola
tomavam chá e muita canja de galinha
como animais doentes se recolhem
à toca esperando sua natural recuperação
hoje uma febrinha uma coriza
e todos correm para o médico
medicam-se sem nenhum cuidado especial
e no dia seguinte estão na escolinha
porque os pais também têm de trabalhar
ninguém pode ficar doente
e adoecer faz parte da vida
não se pode viver como se deve
esperar o tempo bom de novo
e enquanto isso ficar sossegado como um gato
em uma almofada quente


                                                Igor Zanoni
Cansado

estou cansado dos nossos motivos
dos argumentos
da monótona repetição
das nossas ênfases
ninguém é mau
mas pode-se tornar
sem grande interesse
bastante humano mas entediante
há pessoas que se votam à monotonia
eu me canso em quinze minutos
não estou indo nem voltando
apenas pensando na vida

                                             Igor Zanoni
Cantiga

meus poemas não te mostram
minha tristeza
porque você está encantada demais
com sua própria melancolia
como uma menina que brigou com a amiga
você chora desconsolada
nunca nunca vai sarar
e no entanto eu mesmo às vezes
mostro minha alegria e canto cantigas
de quando eu era criança
mas você não ouve
nem dança

                                                Igor Zanoni
Canto de trabalho

eu aprendi a manter no coração
as palavras dos que sentiram
em suas vidas
e na vida do suas comunidades
o Senhor
sinto que Ele se move todo o tempo
embora pareça imóvel
na força que sustém cada segundo
seria confuso se Ele fizesse milagres
ou atendesse nossos pedidos
como um pai que atende seu filhinho
as pessoas se veriam livres
de compromissos
e esqueceriam de suas vidas
é melhor pensar na vida
como um lugar em que vivemos
como se estivéssemos sozinhos
mas sempre com uma prece
para que não nos sintamos
demasiado desamparados
seja a prece um canto de trabalho
que os lavradores entoam em sua faina

                                          Igor Zanoni
Captain Beefheart

todos nós que amávamos
o Capitain Beefheart e o Sargent Pepper
nos incluímos nas fileiras
da sua buscadora alegria
e suas drogas investigativas
tecemos uma beleza que prezava
este mundo em sua originária serenidade
em suas moléculas de colírio
e caleidoscópio
macrocosmo/ microcosmo
que as filas do Mac Donald
e os shows dos artistas da Disney
empurrrou para os vagões dos trens antigos
que faziam o percurso
São Paulo-Santos 
pela janela a mata Atlântica iluminada
em seu halo santo
e os amigos a namorada a família a escola o futuro
em um plano que não podíamos discernir
pois uma é a etapa de investigação
outra a da exposição dos seus resultados
outra como um relâmpago rasgando a noite
a busca inerente do homem são
a perguntas que não cessa
a voz ainda sem palavras
que não sabe o que dizer
apenas que veio do interior
que a vida veio correr
por caminhos insuspeitados
dessa dor edênica
latifúndios de melancolia
que a mão selvagem do colonizador
bruta deixou
mas quer buscar seu seio e viver

                                         Igor Zanoni




Carente

a tristeza está escrita na história
de quem é triste
esta história pode ser lida
melhor pode ser contada
a alguém que também procure
perceber seus indícios em si
e em um diálogo descobrirem
a face mais íntima da tristeza
melhor do que se perder nas pedras
e na chuva
é procurar mesmo aí um caminho
que leve para seu rosto
o rosto com que nasceu
para a partir daí retornar
retomar o rumo que as coisas
nos dão
por que são coisas são duras
e rebelar-se não com a melancolia
esse prenúncio de morte
mas com a possível alegria
de viver uma vida menos
carente e menos desejosa

                                              Igor Zanoni
Carente

sentir-se carente é péssimo
o budismo fala de reinos
nos quis seres muito carentes
sofrem por nunca poderem
 sentir-se satisfeitos
o nosso estado em uma vida complexa
é a carência em muitas formas
que explodem quando passa uma moça bonita
e sem sentir nos voltamos
ou quando passa um carro
e pensamos se é um novo modelo
e quanto custa
todas as nossas faltas estão diante de nós
somos projetados todo o tempo
para o infindável mundo
como se tivéssemos de possuí-lo
todavia uma mente aquisitiva
é preferível a uma mente pobre
que nada retém nada deseja
de nada sabe
e passa pelo mundo
como se o mundo pudesse ser ignorado
e as pessoas pudessem ser descartadas
há um sentido em que o desejo
nos é necessário
quando faz bem aos outros por suposto

                                                       Igor Zanoni
Carma

cada momento que vivemos
reafirma nossa vida preciosa
na nossa inerente fragilidade
tudo que é nosso recebe valor
o sentido da chance
a importância de perceber
o valor de cada movimento nosso
dizem que o preço da santidade
é a contínua vigilância
esse é o preço de qualquer vida
em nosso mundo perigoso
e volátil

                                                   Igor Zanoni
Carnaval

no carnaval suspendemos o mundo
esquecemos a chuva
brincamos como pagãos
depois vem a terrível quaresma
tempo de penitência
e arrependimento
de jejuns e mortificações
fazemos o carnaval porque esperamos isso
ou a quaresma é punição
pelos pecados da nossa suada carne?

                                    Igor Zanoni



Carne

segundo Darwin o homem
foi muito bem sucedido ao conseguir
adaptar seu corpo ao uso da carne
há nele um imenso desejo de matar
e de comer a carne de sua presa
na impossibilidade virtual de caçar
eles se divertem fazendo churrasco
e guiados por um Dioniso atávico
bebem fumam olham as mulheres
ouvindo músicas sertanejas
enquanto carnes chiam na grelha
e na vida

                              Igor Zanoni



Carne Viva

triste ou alegre a vida
brilha tão intensamente
que nos expomos ao seu calor
como lagartos ao sol
pouco percebemos dos irmãos
amigos vizinhos
exceto o que nos concerne
de modo imediato
inquebrantáveis heróis
mas sensíveis em nossa
carne viva
tudo nos toca em nós sofre
ou goza

                                  Igor Zanoni
Cartas de amor

escrever cartas de amor é uma arte
com mil ardis
para manter sempre a distância regulamentar
mas não afugentar o correspondente
dar-lhe alento
esperança vã
refinar sua escrita para que se torne
um confidente
 um inventor de situações
um mago da reconstrução de sua vida
tantas vezes arruinada pela rotina
e a desesperança do cotidiano
por isso as vaga para correspondentes
nos sites
são limitadas e bem recompensadas
é um negócio em franca expansão
Carloina 25 uma foto
é um belo nome idade já madura mas ainda jovem bonitinha
24 horas disponível para um coração cansado
as cartas são respondidas por uma equipe profissional
de jornalistas aposentados
líricas professoras de português desempregadas
enfim um negócio bom para todo mundo

                                        Igor Zanoni

Casa

algo vive em nós
tão mal sabemos
que antes nele vivemos
oculto de nós como o universo
que começa em nosso corpo
e atinge o oceano celeste
como o conheceríamos?
mas às vezes somos dóceis
e ele se insinua
como alma espírito tao
clara luz inconsciente
são nomes que tomamos
 como setas no caminhos
e como suas marcas
até chegarmos em casa

                                       Igor Zanoni
Casa tomada

quando o revi alguns anos depois
suas dificuldades com a vida
haviam-no transtornado tanto
que sua casa estava com o reboco
 do teto caindo com as chuvas
e um entupimento da calha
ele havia se refugiado no quarto
cercado de livros que começava
apenas a ler e abandonava
mas sustentavam sua inteligência
na qual depunha as chances
de recuperação de suas relações
e profissão
não tomava banho não se alimentava
dormia o dia todo e à noite
a insônia era enfrentada
com pílulas tomadas sem critério
abusivamente
saia às vezes de seu refúgio
para alimentar-se em minha casa
devorava a nossa janta
depois como estava supermedicado
esquecia-se de tudo
e voltava à sua rotina peculiar
cheirava mal
uma arrumadeira visitava-o toda semana
e fazia o possível pela casa
e  por suas roupas
mas ele se esquecia de pagá-la sempre
consultava o analista
havia naquele tempo para ele
uma romantização da análise eu creio
e a vida prática fugia
pelos desvãos de uma compreensão
que transcendia o dia a dia
para refugiar-se em outros sonhos
alimentando outros sonhos
e tudo se adiava adiava
em um hiato feito de dificuldades
que não podia suportar
e no entanto ele não sabia

                                        Igor Zanoni





Casablanca

tudo mata aos poucos
o próprio corpo produz
o  seu antídoto
rezem por ele a novena
com o pedido:
“play it again, Sam!”

                             Igor Zanoni
Casaco

desejar de volta os velhos sentimentos
é procurar num baú o antigo casaco
com suas pulgas e carrapatos
pensar que existiu um velho casaco
que o abrigou tantos invernos
é uma invenção que se desfaz
sem que notemos muito bem o motivo
vestir o velho casaco é sonhar
com paraísos artificiais longe das mãos
podemos com essas mãos pegar
quando quisermos
as coisas que inventamos?

                                       Igor Zanoni
Casal

este casal um pouco sabe
o que viveu
um pouco não
que muito esqueceu
os anos decantaram sua pátina
de convivência regular
feita das mesmas implicâncias
os mesmos almoços
onde a família é um espelho
um lugar para buscar o amor
que já não possui
os gestos as falas
são ditos em uma caverna
um dia ouviremos
o seu eco
com mais nitidez

                                  Igor Zanoni

Casal de velhos

ela está deitada no sofá
vendo novela ao lado do marido
que está sentado numa poltrona próxima
sente uma corrente de ar frio
e exclama: feche a janela!
mas ele não entende: heim?
ela repete e ele ainda não entende:
o que? o que foi?
ela repete o velho veneno:
está surdo! esse velho fica
surdo à noite!
penalizado faço um carinho sem jeito
 no velho
e saímos para a noite fria
que não promete nada de bom

                                              Igor Zanoni
Casario

em cada casa muitas histórias
vale a pena escutar todas?
conhecemos por alto seu cerne
as brigas com a escassez
o trabalho com os filhos
as idas e vindas nos casamentos
quem estudou quem tenta
recuperar tempos perdidos
um agora vai que não vai
e o jeito de andar de se vestir
de andar
de buscar sábados feijoada
sabemos quem é católico
quem evangélico
muitos são do candomblé
vale a pena escutar seus arrazoados?
é possível amar aquele que desce a rua
mas amar a todos?
é possível reduzi-los a algum
denominador comum?
vistos de perto são todos interessantes
com o tempo cansam um pouco
mas nos finais de semana
recuperando o cansaço da semana
nada melhor que um giro
na vizinhança

                                          Igor Zanoni
Castelo

pelo rigor do sonho
reconheço cada rua
suas inclinações e declives
cada relíquia encravada no bairro
um bar ainda lá
uma banca de revistas
muito menos no bairro que está ali
não me perguntem o que significa ali
mas sobretudo em mim
no bairro que me vive
tal como um dia vivi
ou sonhei que vivi
de modo que mesmo em Curitiba
o Castelo vive em mim
e me protege e aprisiona
como um senhor antigo
em seus dias letárgicos


                                           Igor Zanoni
                                           
                       
Catita

veio-me á lembrança Catita
que corria comigo na casa de vovó
para você isso não faz diferença
para mim marca a distância
entre a minha efêmera maturidade
e a eternidade de minha infância

                                     Igor Zanoni
Catolicismo

Beth disse que eu sou católico
porque gosto muito do Egito
há aí um grão de verdade
mas amo também o sereno Buda
e Shiva e Krishna com suas consortes
Durga e Lakshimi
vejo minha vida pelo Tao Te King
e sou indeciso como são Francisco
embora às vezes cordato como Mohammed
se pudesse teria na sala ícones ortodoxos
e uma imagem do doce Jesus
o Supremo Iogue
mas como homem de minha geração
meu livro texto é Moisés e o Monoteísmo
do papai Freud


                                    Igor Zanoni

Ceia

a ceia já indica de que é feita
a vida
de carne
de pão e de vinho
e o destino da vida
a morte
vencida pelo Senhor com sua morte
e ressurreição
por nós todos
mas a morte diária
a vida diária
deve ser redimida por nós
todo o tempo 
convertida de carne
em prazeroso amor
pois o deus não vive nossos passos
a menos que o tomemos
sobre nosso corpo

                                                Igor Zanoni
Celebrity

acho que pessoas famosas
têm uma propensão a sentirem sós
começam a falar de suas intimidades
como se estivessem em um desfile
de lingeries
ou então convenceram-se da importância
de tudo que fazem mesmo que seja
ou principalmente se for
uma contravenção ou uma juvenil quebra
de decoro
assim falam livremente de como fizeram
sexo no vestiário
no intervalo de uma partida de vôlei
ou como usaram uma substância proibida
para vencer uma partida de tênis
mesmo o Maradona não faz isso
a rainha da Inglaterra então
não diz nada que não seja
claro bonitinho e charmoso
e devo confessar que tem uma
prudente discrição 
mesmo sendo uma rainha
em pleno século XXI

                                                 Igor Zanoni        
                                      

Celular

o celular é o avesso
da arte da conversa
os rituais taquigráficos da fala
seu direcionamento ao aparelho
o interlocutor suposto
porque anunciado pelos gritos
no ônibus na rua cheia
jamais visto pode ser qualquer um
a cabeça pendida
o celular é a trama da ausência
fala de quem deseja falar
a fala sem costura
o desejo inconsútil
sinais do tempo e do mundo
vencidos e mudos

                                          Igor Zanoni
Celular
as pessoas não esperam alguém
chegar como é esperado
telefonam para saber se esse alguém
já está chegando
também não esperam chegar em casa
ligam do carro do ônibus da rua
para qualquer um falando alto
em um excesso de deselegância
o celular não apenas dá a impressão
de que se está mais informado
como sobretudo preenche
qualquer tempo vago
tensionando os momentos de relax
por exemplo olhar pela janela
e perder-se em devaneios
diante da paisagem pessoal 

                                                             Igor Zanoni
Ceticismo

é essencial um certo ceticismo
diante das tolices alheias
mas também diante de nossas
crenças e convicções mais arraigadas
isso permite mais leveza
neste mundo em que nos prende tanto
a gravidade
sobre nosso pequeno âmago originário
tecemos papéis ofícios
e considerações
tomamos decisões erradas por insensatez
temos orgulho do que pensamos
como por exemplo de que a terra é quadrada
ou que todos os gatos são pardos

                                        Igor Zanoni
Céu Aberto

1
neste sábado de inusitado
céu aberto em Curitiba
entra as notícias de novas mortes
por gripe
e outras pelas enchentes
pareceu-lhe a melhor coisa a fazer
por um mp3 nos ouvidos
e comer uns pastéis com chocomilk
como se sua própria companhia
desse-lhe suficiente prazer

2
o sábio é como aquele que do seu baú
tira coisas novas e velhas

3
nem sempre se pode escolher os amigos
os amigos são os que se aproximam
melhor não reclamar deles
deixar quieto ficar sussi


                                                 Igor Zanoni

Nenhum comentário:

Postar um comentário