quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Escola 1


Escola 1

Entre os muitos aspectos que distinguem a escola de primeiro e segundo graus da minha geração entre o final dos cinqüenta e o início dos setenta, um pouco ao acaso posso citar um sentimento de solidariedade social criado no que Ricardo Bielchowsky chamou de “o ciclo ideológico do desenvolvimentismo” e que a ditadura militar não pode apagar ou perderia de todo sua já contestada legitimidade . Ele significava que ao menos ideologicamente todos  tinham lugar á mesa da Pátria, com seus serviços úteis mesmo quando modestos como o do indispensável lixeiro. Este por sua vez tinha um salário real provavelmente muito maior que o se seus colegas atuais, o que dava maior consist~encia á fábula. No banco da escola, manejando nossas canetas de pena de aço molhadas num tinteiro de vidro, sabíamos que não nos perderíamos no futuro. Estávamos na escola, e ignorávamos os que não estavam, nossos pais tinham profissões liberais ou eram operários, militares, corretores de imóveis, mas todas essas profissões garantiam o sustento da família e as expectativas quanto às crianças podiam ser vividas em um clima pacífico. É claro que haviam as “crianças da rua”, os mais pobres, e nós, os ascendentes de classe média, mas as primeiras eram nossos amigos, vinham à nossa casa assistir conosco programas de televisão, que pouco tinham. Eu passava meus finais de semana com a arrumadeira da casa, cujo marido era ferroviário e morava numa vila com um cinema onde pela primeira vez vi faroestes e filmes de Walt Disney. A apartação social estava longe da que viria a acontecer nos anos oitenta, com sua pobreza abjeta, suas drogas, seu lixo midiático e sua miséria. Os professores também eram muito respeitados, porque sabíamos da sua importância para nós, especialmente os mais pobres de nós. Mais do que isso eram um dos nossos, nossos segundos pais, a escola era nosso segundo lar. Eu tive professores no primário e ginásio experientes, que tinham posições respeitáveis na cidade, escreviam livros e tinham excelente formação, ganhavam razoavelmente, como nossos pais, e dispunham de tempo para nos desasnar. Aliás poucos de nós entravamos no primeiro ano sem saber ler ou escrever , não por ter feito um eventual pré-escolar, mas porque essas eram coisas que o lar patrocinava, o pai ou a mãe eram os primeiros mestres, os mesmos que nos punham em precoces aulas de piano e de francês. Eu havia lido toda a coleção de livros infantis de Monteiro Lobato quando entrei no primeiro ano primário, o que me facilitou enormemente o estudo. Já nesse ano fiz minha primeira redação assinada para o jornalzinho da escola, dizendo o que queria ser na vida: escritor. Essas sobras a escola aproveitava para dar-nos um estudo mais meditado, mais pensativo.Conversávamos muito com o professor ou professora, seu filho era nosso colega ou estava em alguma classe mais adiantada. a escola podia contar também com mais recursos, tanto físicos-como uma enorme sala de canto com diversos instrumentos musicais,uma biblioteca, uma oficina de marcenaria, um laboratório de química e outro de física,além de uma quadra de esporte coberta e um campo de futebol de dimensões oficiais-como de tempo livre para se perder na biblioteca ou organizar torneios esportivos ou literários. Eu passava quase o dia todo voluntariamente na escola, e ela era mais ou menos como todas as boas escolas de Campinas , uma cidade então pequena mas em firme crescimento abrindo vagas para uma ascendente classe média. Eu nunca fui muito estudioso, mas o que gostava de estudar era música ao meu ouvido. Por exemplo, as aulas de Gramática, nas quais estudávamos gramática lendo Os Lusíadas, ou as aula de Literatura, que o professor gentilemente passava lendo Fernando Pessoa ou as coletâneas de poesia brasileira de Manuel Bandeira, o famoso “Flor do Lácio”,ou a coleção de Massaud Moisés  de literatura brasileira e outra, similar, de literatura portuguesa. Aprendi sem perceber geografia, história, francês, inglês, filosofia, menos as outras matérias, e joguei um pouco de todos os esportes, nos quais não me destaquei senão pela vontade e vigor físico. Mais tarde, no então segundo grau, fiz Letras, tornando amigo pessoal de vários professores, que visitávamos em casa, e discutíamos ali o Brasil e o mundo. Nossos pais nunca participaram muito, diretamente, deste mundo. Sentíamos a nossa responsabilidade, que era aceita de forma leve e confiante, e como a escola nos fazia pensar e estimulava a associação de alunos dos vários colégios, nos politizávamos cedo. Lembro que em maio de 68 tomamos bondes de assalto em Campinas, dando floridas voltas no centro com meus imberbes 15 anos. Penso que essa democracia escolar tinha limites, por exemplo, na separação do recreio de meninos e recreio de meninas, a proibição de fumar, a vigilamnte inspetora e a monárquica diretora, que fazia tudo andar de certo modo apenas porque elas estavam lá e sabíamos disso. Ninguém andava sem uniforme, nem corria nos corredores, nem cabulava aula ou alterava o boletim de notas e freqüência, diariamente revisto, todos cantávamos de cor o Hino Nacional. mas já amávamos os Beatles, Caetano Veloso, sabíamos de cor as músicas líricas de Chico Buarque. Nosso material didático também era muito bom. Meus livros de matemática eram de Ary Quintella,  o de física um manual em dois volumes americanos que até hoje meu cunhado que é físico usa para preparar trabalhos ou aula no seu emprego no Parque da Ciência em Curitiba, o de francês era o da Aliança, o famoso G. Mauger, e assim por diante. Mas tenho especial prazer em lembrar que meus livros de história eram assinados por Sérgio Buarque de Holanda. Tive amigos e namoradas que eram excelentes alunos, o que nunca fui, exceto quando me interessava particularmente. Nem todos foram muito longe, porque nem só de escolas era ou é feita a vida, mas elas eram um bom ponto de partida depois dos anos no lar e na igreja.

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