quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Poemas novos 10


Futebol

o rádio de pilha o jogo de botão
a página esportiva e o carisma de Pelé
fizeram-me cedo conhecer como torcedor o futebol
embora não seus aspectos técnicos
e saber muito menino a escalação
de todos os esquadrões do interior paulista
além dos times grandes
o placar das maiores partidas
o preço pelo qual um jogador foi comprado
de modo que a época do futebol arte
encontrou em mim um apaixonado diletante

                                        Igor Zanoni
Desejos de bruxa

neste dia da criança
você vai levantar cedinho
tomar um café com leite
sem tirar a nata com a colherinha
depois vai tomar banho
lavar bem atrás da orelhas
cortar unhas
pentear o cabelo
por roupa nova
cuidado não amasse
não pule
fique na sala
que já já vamos na missa
e almoçar na vovó
comendo tudo no prato
na hora do presente
já sabe
no Natal ganha dobrado
se só tirar cem na escola!

                                               Igor Zanoni

Desencanto
embora nos percamos nas tarefas
que nos impomos por comodismo
ou pelo que achamos bom e preciso
de quando em quando sentimos
que não estamos identificados
com quase nada do que está aí
e nossa vida emocional profissional
política e assim por diante
segue com um alinhavo
que precisamos fazer como pessoas
que acham necessário e prudente
conhecer sua história
e entender o seu pertencimento
ao mundo que está aí
bem como seu decidido desencanto

                                                              Igor Zanoni
Desenhar na água

há desejos corrosivos
desviam a vida de qualquer sentido
fazem a alma buscar o que é falso
iludem os propósitos
que nossa breve vida pode ter
criam aflições
que o sábio pode evitar
porque suspende a ansiedade
por estados desumanos
querer ser feliz é desumano
querer ser amado e elogiado
sentir-se infeliz e desejar evitar
a infelicidade é desumano
pedir a alguém que nos faça feliz
é cruel e insensato
melhor buscar outros caminhos
desenhá-los na água

                                              Igor Zanoni




Deserto

incomodados interrogamos
o horizonte mas nada vem
nada acontece
o tempo passa em vão
a rigor o tempo é desnecessário
a espera inútil
e toda a contração nos músculos
os sonhos interrompidos
a vigilância do real
concerne a uma vida
que já não é a nossa
como se um antepassado
em nós vivesse e nos obrigasse
a cuidar dele
cuidar de suas posses
de sua vida aparentemente frágil
mas muito mais forte que nós


                                           Igor Zanoni
Desrazão

a desrazão das pessoas
gira em torno de poucos pontos
que turva a vista clara
a energia criadora
e cria um vendaval na casa
em uma luta pelo poder
mas que poder?
buscando o que?
às vezes a vida humana
é pequena para dar conta
de tanto sofrimento
que as pessoas dominadoras criam
para quem tem o azar
de cair sob sua sombra


                                 Igor Zanoni
Desrazão

em cada desrazão há
uma razão oculta
que talvez não possa mais
ser desvelada
em cada angústia a sombra
de um amor selado
que talvez não possa
nunca mais ser conhecido
em cada dor em cada luto
há uma luta profunda
que talvez se perca
no músculo no nervo
e siga para outras regiões
fundas e silenciosas
não se enamore da solidão
e da angústia
elas perdem a alma
não se sabe para qual
potência escondida

                                        Igor Zanoni

Destino

sua atenção se perde
em testemunhos insignificantes
o sono se perde
o corpo dolorido não se distende
horizontes de bruma
impedem a visão do trajeto
o que deveria se esquecido
permanece como pesadelos
que imitam a vida
a atenção é necessária
para se encontrar o verdadeiro
destino

                                        Igor Zanoni
Destino

meu pai chamava-se Siddhartha
os seus irmãos tambem tinham
nomes esotéricos
toda a sua vida entrou e saiu de igrejas
sempre estudioso e dedicado
estudou as filosofias da Índia e o ioga
tinha um completo domínio
do sono e da vigília
e fazia vôo astral
no entanto era militar e dentista
trabalhava bastante e criou muitos filhos
o destino de um homem
está apenas parcialmente inscrito
no seu nome

                                                   Igor Zanoni
Destino

as igrejas e partidos populares
sempre são amplas frentes
formadas para combater
um inimigo comum
exigir coerência e coesão
é absurdo
daí o lema da tolerância e do diálogo
mas quando um grupo não precisa
fazer concessões
usa o exorcismo e a excomunhão
tão bem quanto o exílio e a prisão
fora disso há Lao Tzu, Jesus, Buda
que não fundaram igrejas
e viviam no seio de sua íntima natureza
contam-se nos dedos
os mestres que os imitaram com perfeição
ou Juscelino e John Kennedy
que eram quase unanimidades
talvez porque dançassem bem valsa
o destino de todos porém
foi a traição

                                          Igor Zanoni
Desumano

encontrar no silêncio
o refúgio das pedras
e dos túmulos
o som do mundo
antes e depois de nós
cessar todo sonho
toda apreensão
todo desejo
os lábios fechados
a mente quieta
o coração calado
encontrar o não eu
é o que resta
em um mundo desumano

                                   Igor Zanoni
Deus pessoal

não podemos senão
de modo muito imperfeito
imaginar qual foi o Deus de Jesus
de Paulo ou Francisco
pois cada geração e cada indivíduo
só pode descobri-lo ao seu modo
para se aproximar Dele
é preciso pensar e pensar
depois esperar
sem saber o que esperar
na sua situação na vida

                                   Igor Zanoni
Deuses

1
em vez de um Deus único e imutável
acho melhor pensar em relacionamentos
com o divino
e que há tantos deuses quanto homens e mulheres

2
gosto dentre os santos de Francisco
que lendo Umberto Eco se percebe
quase parou também em uma fogueira
dos santos populares e utilitários
sem dúvida não é possível esquecer
Nossa Senhora Desatadora de Nós
e Santa Rita dos Impossível
Manuel Bandeira gostava
da Nossa Senhora da Boa Morte
que também convém não esquecer

                                          Igor Zanoni
Dia

por que se diz que a tarde desce
ou a noite cai
pelo movimento do sol com certeza
mas por uma aura que cada etapa do dia possuía
a noite guardava segredos e assombrações
em geral o entardecer era triste
e a manhã como um renascer
bem fundado da esperança
hoje passamos pelos dias atropelados
tentando sair do caminho dos outros
que tentam nos incluir
sob suas asas de ferro e pontas agudas

                        Igor Zanoni              
Dia das Mães

mãe só tem uma
mas o pior é ter de dividi-la
com o pai
e ainda agüentar irmãozinhos
chatos

                                          Igor Zanoni
Dia radioso

1
se em um dia radioso
e mar calmo de porcelana verde
um homem encontra
um lindo peixe azul
cheio de vida
não tem dúvida
admira-o mas em seguida
vai fritá-lo

2
os sábios desconfiados
do poder maligno dos desejos
e inclinações ao gozo
buscam desde a mais remota
antiguidade a ataraxia
a extinção e a paz
porque a vida parece
demasiado indomável

                                         Igor Zanoni
Dickens e Poe

apesar de seus valores familiares
e utilitaristas os vitorianos
gostavam de especular sobre o Além
assim também Dickens
na bela coleção de Histórias de Fantasmas
algumas são bem humoradas
e lembram o estilo de Aventuras de Mr.Pickwick
outras são de fato pavorosas
e mostra outra face do escritor
que chega a lembrar Poe

                                   Igor Zanoni
Dinheiro

alguns pensam que só serão felizes
depois de ganharem muito dinheiro
os pobres com pouco a mais no orçamento
conseguem melhorar de vida e ser gratos
mas não há dinheiro extra que garanta
solução para as queixas dos ricos
o economista vulgar pensa que cada um deve ser feliz
com o que contribui para a sociedade
à esquerda se critica o dinheiro
como um mal fundamento para a sociedade
à direita se critica os que não tem dinheiro
como incapazes e sem valor
o grande pensador propôs uma sociedade
cuja abundância tornaria preocupações
com dinheiro uma espécie de doença
os ecologistas acham que se deve contentar
com o mínimo para salvar a vida no planeta
o dinheiro é um temas principais de Dostoievski
na crítica á sociedade russa de seu tempo
os santos desprezaram o dinheiro por amor a Deus
o Dalai Lama pensa que o segredo da felicidade
está sobretudo no coração bondoso
quem hoje aspira a um coração bondoso?



                                  Igor Zanoni
Disciplinas

há disciplinas que não são
ciência nem filosofia
tampouco artes de viver
mas buscas da natureza humana
como o cinema a literatura
a psicanálise

                                 Igor Zanoni
Discussão

tolice buscar propósitos éticos
e religiosos no amor
o amor é seu próprio propósito
nele nunca há soluções
para sanar o impulso do mundo
à ruína
o próprio amor às vezes sente
esse impulso
quando alguém como eu
senta para escrever
sente que confiar no amor
é o único que resta
mesmo que apenas para manter
acesa a discussão
porque no cemitério tudo se cala
e não se sabe como há de girar de novo
 a roda da vida
esta à qual como loucos amorosos
nos prendemos

                                      Igor Zanoni
Distância

por que não o silêncio mas esse ruído ensurdecedor
que assombrava Caspar Hauser
quando o chamavam silêncio?
por que não o amanhecer claro e límpido
mas essa sombra envenenada
já cedo sobre  a cidade?
porque não o solo o vegetal a terra
mas esse coberto de pedras pixe
materiais inorgânicos tornando a cidade
imprópria para organismos?
por que não a fala a companhia o toque
mas esse formal contato que a todos
distancia?
por que não o desejo de mais que falar
de todos ser mesmo todos
que tentava Whitman
e tomar no peito o país os seus homens
amorosos e trabalhadores
e os animais acolhedores?
por que essa distância de si que cada um preserva
tão cioso?

                                                             Igor Zanoni
Divagações filosóficas
1
li na frase de hoje que para Paul Valéry
o mais profundo em nós é a pele
lembrei que os antigos textos tântricos
ensinavam manipulações do corpo
para alcançar a iluminação
algo próximo a isso, creio, foi dito
mais modernamente por Wilhelm Reich
aliás eu tive um médico que me recomendou
a terapia reichiana para atingir
um orgasmo total, cerebral
acho que o ectasy, que uma amiga minha
não queria deixar de tomar antes de morrer,
deve dar o tal orgasmo cerebral

2
os jovens são em geral mais bonitos e atraentes
é mal em uma festa um sujeito só prestar atenção
nas menininhas
mas como os jovens são burros sexualmente!
eu mesmo quando tinha vinte anos era um burro
e peço após tanto tempo desculpas
àquelas que me suportaram

                                              Igor Zanoni
Diversos

1
a vida tem um fim
mas até lá muitos recomeços

2
a pessoa que fuma precisa franzir a testa
e fechar um pouco o olho
para evitar a fumaça no rosto
por isso parece mais pensativa que as outras

3
os antigos narradores de futebol
tornavam mais clara a partida
que não é muito transparente para quem vê
as antigas transmissões de rádio
tornavam mais compreensível o jogo
que a televisão

                                   Igor Zanoni
Doce carma

o que é impermanente?
o tumulto da casa primeira
as discórdias pequenas na família
que assisti sem poder interferir
mas que percebi e entendi
o rosto que esquecei
de colegas primos vizinhos
o primeiro amor
sincero confuso o que é o amor?
os sentimentos que guardamos
e já não cabem nas relações de hoje
o acúmulo olvidado de tantas relações
a vida de que mal lembramos
como somos ingratos!
impermanentes somos nós
infiéis
poderíamos viver como museus
de retratos dos anos que passam
como passa a moreninha de cabelo arrepiado?
o que resgatar
nestes anos mais frios
neste frio curitibano
onde o trabalho o dinheiro o cuidado dos filhos ?
resgato da vida
o que dela não vi
seu saldo líquido
essa imensa saudade
de não poder ser
tudo isso agora e sempre
seu doce carma

                                                          Igor Zanoni
Dois homens conversam

havia um homem pobre de terno velho
em uma rua paulistana
seus pés descalços estavam muito machucados
e ele pedia esmola
eu passeei com ele pela rua
comprei verduras em uma mercearia
e remédios em uma farmácia
sua conversa que era a de um pedinte
se transformou na de um homem sério
sóbrio um amigo
talvez esse homem fosse eu
talvez os dois fossem eu

                                        Igor Zanoni
Dois poemas

1
a falta de siso de um
leva à ruína de todos
quando cada um depende
do demais
em especial em uma luta
coletiva

2
Spinosa identificou a divindade
com a ordem natural
desta forma interligou
o mundo celestial com o natural
fornecendo à boa sociedade
um novo paradigma
não sem um olhar para o Oriente

                                   Igor Zanoni
Dom

aceitamos a impermanência
como uma característica da vida e do cosmo
não somos eternos
o Sol resfriará um dia
somos mortais
mas nunca podemos saber
o que em toda a nossa vida pode passar
agora
impermanência significa
prepare-se para surpresas a qualquer instante
se isto parece ameaçador
lembre-se que há algo durável
que nos espera também o tempo todo
a luz divina
o sopro do Espírito
o dom do despertar
não dê nomes
procure 

                                    Igor Zanoni




Domingo

quem não vive satisfeito
precisa fazer concessões
inúmeros acordos com o estar vivo
deve arrumar a casa não como quer
abrir cortinas fechadas
devassar a privacidade
agüentar a angústia
cultivar remotas esperanças
amar o perdido
mas muitos encontram
grandes discursos transcendentes
mudam de roupa e itinerário
e comem mais felizes
os almoços de domingo

                                 Igor Zanoni
Dona Terezinha

loira branca bonitinha
d. Terezinha tinha a então respeitável
profissão de professora primária
naqueles sertões de bugres freis e militares
no Instituto Santa Maria
noiva há alguns anos casou-se
com grande aparato em uma festa
para a qual apesar de seu aluno
não fui convidado
com um rapaz que não conheço
mas que devia estar por ali fazendo
seu pé de meia
pois casaram e na noite após a cerimônia
d.Terezinha passou mal
e naqueles tempos sem socorro
morreu de seu terno coração
o marido inconformado e apaixonado
depois de enterrá-la no campo santo
tomou uma dose letal de estricnina
morrendo um dia depois dela
não teve direito a enterro católico
nem pode ser enterrado no cemitério
que os padres administravam
eram tempos distantes
que fim seu corpo levou não importa
importa a lembrança da morta
e de seu consorte fiel
virgens seguiram por mundos separados
se Deus não teve mais dó
que as posturas municipais
daquela cidade que conta sua história
na vida dos que ali viveram


                                                    Igor Zanoni
Dor

a vida é tão cheia de dores
que podemos assumir sem pudores
os nossos sofrimentos
sobre os quais sabemos tão mal
embora nos toquem com sua mão
o tempo todo seja o que for que fizermos
todos se sentem particularmente
tocados pelo Destino
e é assim mesmo
nem Freud nem Jesus nem Marx
ou qualquer um viveram sem muitas
infelicidades
e embora tenham deixado muitas
pistas úteis para pensar essas dores
não criaram uma pílula de ectasy
mas ensinaram pelas costas
a enfrentar o que a vida trouxer
da melhor maneira possível


                                             Igor Zanoni
Dor obscura

aprende a conhecer a sua dor obscura
aprende seu nome sua forma
o que a alivia e provoca
não tente fugir de desilusões passadas
com sonhos que repetirão o passado
não viva permanentemente sonhos
que se bifurcam em outros sonhos
como se viver fosse estar um pouco adormecido
até o momento em que a morte
abrirá o grande sono final
as pessoas possuem coragem
para as empresas mais dolorosas e mais arriscadas
tão logo deixam de ser crianças
não seja um empresário
o dinheiro do mundo não importa afinal
cuide de sua dor
ela é a semente de futuros inesperados
e mais promissores

                                         Igor Zanoni
Doutor

Doutor não desista de mim
que eu mesmo já vou desistindo
cansei de tomar seus coquetéis
de andar na tardinha
ou ficar deitado
cansei de descansar
de filosofar
de rezar
o meu caso nem uma sangria
resolve!

                                                   Igor Zanoni
Dr. Farah

o dr. Farah era interessante
aos meus olhos de criança
por ser um dos raros amigos de papai
por ser separado e morar com outra mulher
por ter tido já um ataque cardíaco
porque era árabe
uma vez fui à sua casa
era pequena e ele estava na cama doente
foi ele que disse que o Gabriel
estava vindo
que a Edméia estava de cinco meses

                                  Igor Zanoni
Duas vezes

se eu não tivesse já
um amor
pensaria duas vezes
antes de amar você
não três nem quatro
apenas duas vezes

                                         Para Isabela

                                         Igor Zanoni
Ele

Ele era uma pessoa forte
incisiva viril
sempre dizia a que vinha
e era isso o que atraia nele
que mesmo inimigos reconheciam
ou não teriam tramado
contra sua vida
por que o estampam com olhar doído 
o coração à mostra
flechado de espinhos
é certo que quem ama
também pode sofrer
e ele sofreu
mas não sofremos todos nós?
Ele nunca se referiu ao seu sofrimento
como algo que nos salvaria
isto viria se aceitássemos viver
como os lírios do campo
que nasce mesmo em meio
ao deserto

                              Igor Zanoni
Elizabeth Taylor

houve um tempo em que o sonho
de todo homem
era se casar com Elizabeth Taylor
e no qual o sonho dela era se casar
com o maior número possível de homens
nós sempre abríamos O Cruzeiro
falando de outro divórcio da atriz
contando quantos foram
e decorando o nome dos seus maridos
como se fosse uma tabuada
muitos não gostavam
mas as mulheres em geral queriam
poder se divorciar e recomeçar a vida
o senador Nelson Carneiro sempre
foi eleito por sua plataforma pró divórcio
afinal com a democracia veio o divórcio
como talvez um dos direitos humanos
ao qual tínhamos agora acesso
eu sempre achei difícil separações
muitas vezes não se escapa de uma
mas imagino o sofrimento
que Elizabeth Taylor deve ter tido
com sua vida incomum
os americanos são mais ricos
e mais liberais
e eu não julgo o mérito da questão
mas as pessoas pensam demasiado
em sexo dinheiro promoção pessoal
quando podem
é para mim difícil entender tudo isso


                                                           Igor Zanoni
Enceradeiras

havia duas marcas de enceradeiras
a Arno e a Eletrolux
os modelos variavam entre elas
acho que a Arno tinha a peça
onde ficavam o motor e a escova
redonda e o cabo para ligá-la
à peça para segurar e conduzir
a máquina pela casa
 feito de um só tubo de metal
já a Eletrolux era triangular
e vinha com três escovas menores
(para alcançar o cantinho dos cômodos)
e o cabo era feito com dois tubos mais finos
com o tempo foram se aperfeiçoando
ligeiramente
o problema de passar a cera e lustrar o chão
era nas casas pobres resolvido
ajoelhando-se espalhando a cera
como a famosa cera Canário
em várias cores ou incolor
e passando vigorosamente
um pesado esfregão
a enceradeira resolveu metade do problema
e o Polwax que era uma cera líquida
resolveu a outra metade
depois as enceradeiras passaram a ter
um recipiente onde se jogava o Polwax
(pronuncia-se Póluox)
apertando um botãozinho
as enceradeiras domésticas foram
quase aposentadas pelo Synteko
ou verniz que se punha nos tacos
o Synteko substituiu o trabalho
de lustrar o chão
e aos preencher as frestas entre os tacos
acabou com as pulgas
que punham ali seus ovos
depois vieram outros tipos de revestimento
mesmo nessa época as casas mais pobres tinham
o chão de cimento colorido
o vermelhão
mas eu nunca morei numa casa assim
e adorava pedir à mamãe
para passar a enceradeira
coisa que achava muito divertida

                                             Igor Zanoni
Enigma

tudo que existe pode ser analisado
sua trama desvendada
sua história contada
tudo apresenta uma forma
que pode ser reduzida a elementos
mais simples montados
sob uma tensão que se pode
com paciência dizer
isto é  por ao alcance da razão
e da linguagem
por isso seu impacto se dilui
sua armação se dissolve
e já nem lembramos do que
se tratava
portanto se pode dizer
que tudo assume uma forma
construída
mas por poder ser analisada
pode também tornar-se vazia
assim como do vazio
surge cada coisa com uma forma
dependente de atos significações
respostas a tudo que a vida coloca
e nos desafia
com seu enigma

                                                                    Igor Zanoni
Enigma

como Édipo tentei
decifrar o enigma
parecia tão fácil
eu me julgo tão esperto
mas o enigma não era eu
nem você
nós nos amávamos?
a quem amávamos?
quando duas pessoas
estão por um tempo juntas
formam um ser dúbio
um terceiro
no qual não se reconhecem
e assustam suas noites
que ser é este?
feito de amor e de carne
de inimizade e desejos impossíveis
e no entanto estou aqui
como Édipo já sem forças
por onde recomeçar?
por onde findar?
os fracassos amorosos são
fracassos morais?

                                                        Igor Zanoni
Entardecer

as músicas caipiras ainda falam
da tristeza do entardecer
como nos tempos nos quais jovens
íamos a acampamentos
e voltávamos á noitinha
mas só quem é muito civilizado
ou muito romântico
pode achar triste e comovedor
o crepúsculo
para a parte mais antiga de nós
como para os homens primitivos
ele é antes terrível e aterrador

                        Igor Zanoni
Erro

você sabe que há um risco de errar
você toma cuidado para não errar
você faz tudo para não errar
você sabe que por aí vai errar
você começa a errar
e finalmente termina errando

                                    Igor Zanoni
Escola 1

Entre os muitos aspectos que distinguem a escola de primeiro e segundo graus da minha geração entre o final dos cinqüenta e o início dos setenta, um pouco ao acaso posso citar um sentimento de solidariedade social criado no que Ricardo Bielchowsky chamou de “o ciclo ideológico do desenvolvimentismo” e que a ditadura militar não pode apagar ou perderia de todo sua já contestada legitimidade . Ele significava que ao menos ideologicamente todos  tinham lugar á mesa da Pátria, com seus serviços úteis mesmo quando modestos como o do indispensável lixeiro. Este por sua vez tinha um salário real provavelmente muito maior que o se seus colegas atuais, o que dava maior consist~encia á fábula. No banco da escola, manejando nossas canetas de pena de aço molhadas num tinteiro de vidro, sabíamos que não nos perderíamos no futuro. Estávamos na escola, e ignorávamos os que não estavam, nossos pais tinham profissões liberais ou eram operários, militares, corretores de imóveis, mas todas essas profissões garantiam o sustento da família e as expectativas quanto às crianças podiam ser vividas em um clima pacífico. É claro que haviam as “crianças da rua”, os mais pobres, e nós, os ascendentes de classe média, mas as primeiras eram nossos amigos, vinham à nossa casa assistir conosco programas de televisão, que pouco tinham. Eu passava meus finais de semana com a arrumadeira da casa, cujo marido era ferroviário e morava numa vila com um cinema onde pela primeira vez vi faroestes e filmes de Walt Disney. A apartação social estava longe da que viria a acontecer nos anos oitenta, com sua pobreza abjeta, suas drogas, seu lixo midiático e sua miséria. Os professores também eram muito respeitados, porque sabíamos da sua importância para nós, especialmente os mais pobres de nós. Mais do que isso eram um dos nossos, nossos segundos pais, a escola era nosso segundo lar. Eu tive professores no primário e ginásio experientes, que tinham posições respeitáveis na cidade, escreviam livros e tinham excelente formação, ganhavam razoavelmente, como nossos pais, e dispunham de tempo para nos desasnar. Aliás poucos de nós entravamos no primeiro ano sem saber ler ou escrever , não por ter feito um eventual pré-escolar, mas porque essas eram coisas que o lar patrocinava, o pai ou a mãe eram os primeiros mestres, os mesmos que nos punham em precoces aulas de piano e de francês. Eu havia lido toda a coleção de livros infantis de Monteiro Lobato quando entrei no primeiro ano primário, o que me facilitou enormemente o estudo. Já nesse ano fiz minha primeira redação assinada para o jornalzinho da escola, dizendo o que queria ser na vida: escritor. Essas sobras a escola aproveitava para dar-nos um estudo mais meditado, mais pensativo.Conversávamos muito com o professor ou professora, seu filho era nosso colega ou estava em alguma classe mais adiantada. a escola podia contar também com mais recursos, tanto físicos-como uma enorme sala de canto com diversos instrumentos musicais,uma biblioteca, uma oficina de marcenaria, um laboratório de química e outro de física,além de uma quadra de esporte coberta e um campo de futebol de dimensões oficiais-como de tempo livre para se perder na biblioteca ou organizar torneios esportivos ou literários. Eu passava quase o dia todo voluntariamente na escola, e ela era mais ou menos como todas as boas escolas de Campinas , uma cidade então pequena mas em firme crescimento abrindo vagas para uma ascendente classe média. Eu nunca fui muito estudioso, mas o que gostava de estudar era música ao meu ouvido. Por exemplo, as aulas de Gramática, nas quais estudávamos gramática lendo Os Lusíadas, ou as aula de Literatura, que o professor gentilemente passava lendo Fernando Pessoa ou as coletâneas de poesia brasileira de Manuel Bandeira, o famoso “Flor do Lácio”,ou a coleção de Massaud Moisés  de literatura brasileira e outra, similar, de literatura portuguesa. Aprendi sem perceber geografia, história, francês, inglês, filosofia, menos as outras matérias, e joguei um pouco de todos os esportes, nos quais não me destaquei senão pela vontade e vigor físico. Mais tarde, no então segundo grau, fiz Letras, tornando amigo pessoal de vários professores, que visitávamos em casa, e discutíamos ali o Brasil e o mundo. Nossos pais nunca participaram muito, diretamente, deste mundo. Sentíamos a nossa responsabilidade, que era aceita de forma leve e confiante, e como a escola nos fazia pensar e estimulava a associação de alunos dos vários colégios, nos politizávamos cedo. Lembro que em maio de 68 tomamos bondes de assalto em Campinas, dando floridas voltas no centro com meus imberbes 15 anos. Penso que essa democracia escolar tinha limites, por exemplo, na separação do recreio de meninos e recreio de meninas, a proibição de fumar, a vigilamnte inspetora e a monárquica diretora, que fazia tudo andar de certo modo apenas porque elas estavam lá e sabíamos disso. Ninguém andava sem uniforme, nem corria nos corredores, nem cabulava aula ou alterava o boletim de notas e freqüência, diariamente revisto, todos cantávamos de cor o Hino Nacional. mas já amávamos os Beatles, Caetano Veloso, sabíamos de cor as músicas líricas de Chico Buarque. Nosso material didático também era muito bom. Meus livros de matemática eram de Ary Quintella,  o de física um manual em dois volumes americanos que até hoje meu cunhado que é físico usa para preparar trabalhos ou aula no seu emprego no Parque da Ciência em Curitiba, o de francês era o da Aliança, o famoso G. Mauger, e assim por diante. Mas tenho especial prazer em lembrar que meus livros de história eram assinados por Sérgio Buarque de Holanda. Tive amigos e namoradas que eram excelentes alunos, o que nunca fui, exceto quando me interessava particularmente. Nem todos foram muito longe, porque nem só de escolas era ou é feita a vida, mas elas eram um bom ponto de partida depois dos anos no lar e na igreja.
Escrever

diz-se que não pode escrever bem
quem não compreende bem
mas há os que falam como passarinhos
deixando todos encantados
sem que se saiba ao certo decidir
sobre o que dizem
no início do Império muitos iam à Igreja
ouvir sermões pois por ali
corria arte e política
ainda quando eu era novo ia-se ao Paramento
ouvir os bons discursos
naquela época turbulenta
o melhor do escrever é quando se consegue
dizer por outros
mas há os que compreendem bem
o que dizem e o que sentem
sem nunca serem compreendidos

                                               Igor Zanoni
Escritos naturais

1
o padre reza que Deus pensa sempre em nós
mas só a Igreja sabe o que Ele pensa

2
os seres nascem no paraíso
mas são logo expulsos dele
por mais que os pais evitem
a primeira palavra que as crianças
aprendem é sempre “não”

3
Russeau disse que os homens nascem
bons e livres mas a sociedade
os perverte
mas sempre guardam uma imaculada
imagem de si
que a sociedade não alcança

4
os seres humanos crescem sujeitos
a sanções e convenções
mas no íntimo guardam uma idolatrada
anarquia da infância
em que pesem pais avós mestres padres
leis e promessas dadas ou recebidas
é este o seu “foro íntimo”

5
os seres nascem indefesos
sujeitos ao pecado original
cidadãos de uma pátria belicosa
e interesseira
mal falados pelos vizinhos
incompreendidos e incompreensíveis
não à toa cultivam o medo
e a ambigüidade
mas em seu íntimo buscam
seu refúgio e sua liberdade

                                                        Igor Zanoni
Esfinges

ainda hoje escavações descobrem
novas avenidas submersas
de eras ancestrais que adoravam
deuses remotos como Osíris e Hórus
por outras avenidas e construções
feitas em pedras nobres
para durar a eternidade
as avenidas são ladeadas por esfinges
cada qual com sua pergunta
quanto terão de escavar os arqueólogos
para descobrir também
suas respostas?

                                     Igor Zanoni
Espelho

durante um bom tempo
senti aversão a espelhos
como se fosse minha alma
mostrada afinal embora
em segredo de confissão
alma difícil detestável
isso felizmente passou
pois mudamos de alma como de ares
mas ainda tenho interesse
pelos rostos nas fotografias
pelo que tentamos colocar neles
quando fotografados
nossa beleza ou autoridade
ou os sentimentos de um pai
ou avô ou marido
as fotos são literalmente
papéis revelados
de modo íntimo e inseguro
instantâneos subterfúgios
perdem-se como se extraviam papéis
mas um dia alguém mostra
uma foto antiga
e você sente algo que não é mais seu
mas já não está em seu poder


                                                                  Igor Zanoni
Esperanças

as esperanças eram outras
isso sempre acontece
a vida tomou  seus próprios
caminhos
e nos obrigado a segui-los
mas as crianças estão em volta
há um prazer que resiste
no contato e na presença
há o cuidado que é tão nosso
a paciência combina bem com uma vodka
ambas são capazes de mostrar
caminhos onde não parece mais
haver caminho

                                                      Para Rosana

                                                    Igor Zanoni
Esperar

quando alguns dentre nós sentiram
distantes a sua saúde e sua felicidade
e não podiam encontrar seu bom humor
sem que o mundo à volta fosse destruído
criaram seres benignos mas ferozes
que exigiam a justiça e prometiam vida
desde que se lhes entregassem o coração
eles mesmos deram sua vida por nós
mas a conservaram pois com eles vivia
 a verdade o caminho e a vida
que ignoramos mas aspiramos
como uma cura para nossos males
mas não há males nem cura
apenas nós mesmos aqui juntos
juntos perguntemos o que haveremos
de fazer o que podemos esperar

                                     Igor Zanoni
Esperas

vivemos sobretudo pequenas esperas
cotidianas opressivas
o dia é uma música
onde os intervalos importam
tanto quanto o som
e a  sua diversidade
mas não nosso dia não nos faz dançar
nem sempre alegres ou melancólicos
revivemos e antecipamos
entre lutos e expectativas
muitas vezes minúsculos
como a opressão de todos os dias
e grandes indizíveis opressões
que sequer percebemos bem
ou para as quais não temos palavras
até o momento que não esperamos
o portal  no qual é vã toda esperança

                                        Igor Zanoni
Esquecer

quantas emoções se perdem
ao longo da vida!
algumas porque amadurecemos
isto é deixamos de achar graça
em muitas atividades
e as abandonamos
depois nunca mais pensamos
em como fomos ternos e confusos
diante de um amor
de um passeio em que as mãos
se enlaçaram
quantas pessoas esquecemos
quantos momentos inesquecíveis!
a vida é ingratidão
e desperdício

                                          Igor Zanoni

Esquecimento

os homens são propensos
ao esquecimento
nascem esquecidos de um ano
da vida em formação
vivem como se o passado
fosse um porão
que visitam na melancolia
ou na saudade
mal percebendo sua presença
contínua insistente insidiosa
dormem e olvidam o dia
acordam felizes ou tristes
pensando em redimir
o inconcluso e o mal vivido
mas algo neles vela nessa louca
existência e os chama a si
 mesmo se o chamado
os angustie e enlouqueça

                                          Igor Zanoni
Esquisita

quando faz lentilha
e leva para a avó
busca carinho
se assiste ao Carlitos
tarde da noite
busca a graça da vida
se brinca de madrugada
com a lanterna na kittinete
procura seus sonhos
nas paredes e nos cantos

                                       Igor Zanoni
Estágios da vida

quando nasce
você é o botão de rosa
da família
aos dez anos é o mais desempenado
dos filhos ou netos
ao vinte está no auge da beleza
aos trinta no ápice da vitalidade
aos quarenta anos você mostra
toda a bela obra em que se está tornando
aos cinqüenta estará esbanjando experiência
e assim por diante
até o dia em que finalmente
estará em plena condição
de morrer em verdadeira paz


                         Igor Zanoni              
Estrela da tarde

entre o violeta do crepúsculo
e o azul remanescente no alto céu
a estrela da tarde traz a boa vinda
da minha senectude

                             Igor Zanoni
Estudantes

o bondoso Dalai Lama afirma sempre
os homens buscam a felicidade
e eliminar seu sofrimento
mas o doutor diz antes
todos os homens buscam o prazer
e também possuem aspectos
sombrios mortais
 inerentes
ninguém de qualquer modo
deixa de pensar sobre sua sorte
e inventar tecnologias
para manejá-la
os homens precisam disto
como o estudante de dinheiro
para o xerox e a cerveja

                                                   Igor Zanoni
Ètica

nada é tão dramático quanto perceber
que nossa causa não tem outros defensores
que a nossa questão não é ouvida
e que estamos sós
mesmo os que não têm o Senhor
não estão livres de responsabilidade
por todos os seres
porque agora eles são os únicos fiadores
do universo
e precisam que alguém também zele por eles

                             Igor Zanoni
Eu não procuro o irmão

eu não procuro o irmão
olhando para meu coração
procuro-o onde está sua presença
nas ruas nos hospitais nas prisões
em todos os lugares onde me surpreende
não procuro o seu amor
deixo-o com ele para que dê a si mesmo
em todo momento solitário e perigoso
quando faltar o juízo
e aos que ele puder faltar
se não tiver amor e for como um sino
 que não retine
eu procuro a casa do irmão
que mal sabe de sua casa
ou acha que sabe demais para observar
com mais cuidado e alegria
quando o encontro pouco falo
os seres ficam melhor no silencio cálido
e na companhia
poucas palavras fazem o dia
e a maior parte delas precisa ser desterrada
a nossa vida lentamente sobe o monte
e então virá o fim
eu procuro o irmão nas ruas
procuro-o em todo lugar
para que isso seja um engano
para que outro dia venha com suas rosas
e pães e beijos
como é difícil a palavra coração
como arde a palavra irmão
em sua companhia estarei com certeza
qualquer que seja o destino

                                                      Igor Zanoni
Eu vi

eu vi as embalagens de gilete
quando traziam o rosto barbudo
do inventor da lâmina
eu vi os rótulos de Maisena
com os índios preparando
mingau em volta do fogo
eu vi um passarinho no muro
com o peito amarelo
e uma listra azul nos olhos
eu vi os waffles que meu pai
me comprava passeando
nas Lojas Americanas
eu vi um homem morrendo
de mordida de jararaca
eu vi meus filhos nascerem
e brincarem na rua de bicicleta
numa tranqüila excitação
eu vi o rio Paraguai coberto
de vitórias-régias
mas o mais espantoso
foi a primeira visão do mar
infinito como o céu
rumoroso e cheirando
a sal de cozinha

                                                   Igor Zanoni

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