quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Poemas novos 6

Zorro

há vinte anos moro no mesmo sobrado
perto de uma esquina onde há vinte anos
um cachorro se lança sobre as grades
tentando me agarrar com seus dentes pontudos
de pastor alemão
há vinte anos!
nós estamos já bem mais próximos da morte
e no entanto ainda brigamos
será que ainda temos salvação?

                                           Igor Zanoni
Nada adiante

os mares não obedecem os seus limites
a terra salta sob os pés
das multidões sem lar
os tremores das mãos de um velho
são como os tremores
da terra que sente sua finitude
seu esgotamento
as consignas bem estar e direitos humanos
nada valem para quase ninguém
animais morrem aos milhões
como símbolo de uma nova fartura
que promove caos em meio a hipocrisias
jovens professores ensinam a jovens estudantes
seu brilho insensato 
todos esperam mas a esperança
já não é verde já não tem cor
já não tem partido
ninguém espera todos estão ansiosos
e querem escapar
mas a armação do mundo é compacta
e expele um poder endurecido e mau
não há civilização
não há esperança
não há nada adiante

                                        Igor Zanoni
Nadas

pessoas urbanas
sujeitas aos movimentos de ondas
que passam na sala de casa
são sempre de outros
são deslocadas de si
sentem piedade de sua alma
mas não se fazem justiça
não andam até onde se encontram
é fácil ver como estão deslocadas
como as coisas as movem
e perdem por nadas seu coração

                                                      Igor Zanoni
Não há nada mais fluido

não há nada mais fluido
e instável que o pensamento
ele nos conduz para cá e para lá
sem sequer nos darmos bem conta
de motivos e condições
por isso quando é necessário
sermos claros conosco
como na análise
é preciso falar
para serem claros e lembrados
por todo o povo
os profetas antigos falavam
usando metro
a origem da poesia deve ter sido
o oráculo
os sonhos e os pressentimentos
divididos e sentidos
como desafios

                                                Igor Zanoni
Nascimento

quando você acolhe em sua vida
uma pessoa um gato um pássaro
como ensinou o Senhor Buda
você lhe dá um novo nascimento
um lugar especial no mundo
que estará sempre disponível para ele
porque mesmo que você parta
ele estará em outro lugar
diante de si mesmo
e de sua vida
você lhe mostra como pode ser
outra a vida
que ainda há chances
possíveis disponíveis
cria planos novos
novos céus na terra

                                          Igor Zanoni
Natal

quando Jesus nasceu muitos pensaram
que era um novo Adão um novo homem
feito pelo sopro de Deus em barro humano
e que daria início a uma renovação da natureza
e de todas as coisas
Jesus mesmo pensou isto
e por sua presença convincente os discípulos
seus pais amigos o povo muitos ao longo dos séculos
creram nele e se prepararam para um novo mundo
o que as igreja cristãs fazem com essas convicções?
o que fizeram para que nascesse esse novo
que parecia ás vezes estar em Francisco
outras em São Tomás outras nas terras americanas
ou na reforma ou no advento de seitas novas
e assim por diante?
o quê exatamente não mudou?
uma perturbadora malignidade natural
que os homens compartilham?
isso as igrejas dizem
mas talvez antes os homens não tenham percebido
como o paraíso ainda está dentro de si
quando fogem do seu tumulto
e do tumulto do mundo
esta é a descoberta a fazer
há esta vida e depois outra e outra
e estamos sempre à margem da vida
vendo-a luzir com o sol de tudo que passa
sentemos nesta margem
aquietemo-nos
e nus no íntimo olhemos nosso reflexo neste rio
e ele não é nada é apenas um pleno vazio



                                                    Igor Zanoni


Natal
cedo o sonho nos abandona
com sua aura de felicidade
e verdade
que trocamos pela mentira crua
a mentira toda da nossa existência indecisa
e buscamos o deus o médico a bebida
enquanto tentamos aqui e ali
não perder tudo
intervir para que tudo não desabe
entre grãos de sabedoria
que nos acorre
entre estórias que contamos
mentirosos sobrevivemos
e insensatos esperamos
as imagens noturnas e tão mais nossas
invadir o dia no qual as negamos

                                           Igor Zanoni
Naufrágios

há naufrágios no ar
andando por uma rua
com seus pontos cegos
um homem forte
dispara sua dor
foge dela sem ninguém
perceber
e não tem a quem telefonar
ou as suas palavras
foram esquecidas
ele tem à sua volta um muro alto
para que não vejam
suas necessidades banais
e que banalmente
é um como nós
mas não conosco

                                                 Igor Zanoni
Neblina

quando a neblina da tarde me entorpece
o dia as expectativas se dissolvem
sinal de perigo
queria trabalhar
ter o livro sobre a mesa da sala
mas a água o calor
o tênis flutua sobre a areia
minhas pernas se cansam
talvez eu caia
quem sabe?
quem controla o seu futuro?

                                                 Igor Zanoni
Neblina

muitos perderam os avós
outros os pais
alguns a esposa um irmão
por azar um filho
todos lamentam a morte de Jesus
e outros inocentes
mas quem de nós é culpado?
o mundo atira contra nós
sua própria força
sua vontade
se eu pudesse me dissolveria
na neblina
quando é noite e faz frio
e apenas a bebida
me esquenta o coração

                                                           Igor Zanoni
Neymar

posto que o futebol arte
foi vencido pelo preparo físico intenso
e seleção de jogadores
com o físico de soldados
resta armar bem o time para não perder
jogar por uma bola
todo mundo ajudando na defesa
todo meio metro de campo
dominado por uma canela
dura realidade
jogos difíceis de se apreciar
exceto quando surge um jovem magrinho
e veloz como Neymar
driblando a defesa toda
mas que logo se aprende a intimidar
e anular
deveria haver um campeonato paralelo
talvez beneficente
onde só jogassem craques fora do tempo
mas ainda dentro da arte quase esquecida
como um museu vivo do nobre esporte bretão


                                                        Igor Zanoni
Neymar

quando Neymar começou a se mostrar
um artista inusitado da bola
foi acompanhado da mulher-melancia
e de outras personagens que movimentam
a internet todos os dias
acusaram-no de uma suposta participação
em uma festa com garotas de programa
que horror! prostitutas! quem não detesta? 
é um rapaz de dezoito anos
um moço comum um artista ao qual deveríamos
ser gratos porque os artistas devem ser amados
e aliviar seu ambiente do futebol cercado
por interesses do dinheiro e malandragens
aliviar sua vida para que ela seja
principalmente arte
para nós e nossos filhos


                                                   Igor Zanoni

Niilista

não escrevo bem
sou meio quadrado formal para isso
meu verso vale por ser obsessivo
incessante
como se eu tivesse nascido num dia tempestuoso
e descobrisse logo ser essa a condição de todos os dias
não tenho treino suficiente em matérias
que me fariam um poeta profundo e ilustrado
meu verso é raso
mas não com essa metafísica infinitesimal
e propositada de um Manuel de Barros
mas sinto como outro Manuel, o Bandeira
a volúpia ardente
a tristeza esparsa
o remorso vão
já se perguntou para que servem os versos
respondo que para nada
sou niilista e não acredito no futuro
creio nos meus versos no momento em que os escrevo
leiam se quiserem
depois os deletem

                                     Igor Zanoni
No bom Senhor

muitos buscaram no bom Senhor
o ponto de partida para uma vida nova
não é essa a história de Abraão
espelhada na de tantos outros
patriarcas santos humildes
poderemos ainda hoje
recomeçar dessa forma?
alguns podem se lembrar Dele
mas e os outros?
e como faremos para conversar
e assim nos acercarmos
não apenas Dele como de nós mesmos?
quando eu era pequeno ouvia histórias
de minha avó e aprendi a ler
em um Novo Testamento
esse eu pequeno é uma camada
de meu ser de hoje
posso comunicá-la a quantos?
posso esperar isso?
e poderei ouvir os outros
quando me contarem suas histórias?
é preciso não querer dizer histórias
não ligá-las a nada exterior
deixá-las rebrotar
da velha árvore
quantos de nós serão assim honestos?

                                Igor Zanoni
No princípio

quando vier o langoroso inverno
com sua canastra verbrilhante de rubis
e as altivas lesmas revalsarem
seus Sonhos de Valsa em dois sabores
lembre que há um mosquito na teiaranha
e que os ratos não sabem
mas desde o medievo fazem
que há um sentido em alguma parte
quem o encontrar bom proveito
transfusões do sangue do Senhor
muitos pregam aos gritos
acordam os vizinhos da sesta
do almoço póstumo
oh salvai-nos nós salvai-nos
descomedidos vates
colméia de vadios
alcatéia de corjas vivas
quem suportaria?
( aqui termina o manuscrito...)

                                       Igor Zanoni
No vermelho

eu sempre levei a vida no vermelho
a juros de agiota e o câmbio em ouro
embora não pareça foi meu modo
de pensar no futuro incerto
eu nunca pesei riscos
sempre preferi o campo aberto
o peito nu
e o vermelho da coragem
eu sempre pus uma gota de conhaque
no café
nunca me poupei
doei inteiro
e o restante em prestações intermináveis
foi meu modo de estar aqui
contra toda expectativa
toda razão
todo siso
eu nunca saberei se venci
espero ser julgado por alguém magnânimo

                                              Igor Zanoni
Nóia

há poucas lagartixas em Curitiba
e das pequenas
assim como não há pardais
ou as andorinhas de Campinas
porém para a tímida menina
a menor lagartixinha
é um colosso pré-histórico
o que diria o dr. Freud
diante de tal nóia?
que réptil gigantesco!
rápido meus sais
que o ar me falta!
cada um vê o diabo
como ele quer
ou como pode
lembro com prazer Florinda Bolkan
em “Uma lagartixa em pele de mulher”
essa era mesmo uma linda lagartixa!
fazia um homem desmaiar de suor

                                     Igor Zanoni

Noite

não por serem assassinos
matam
intespestivamente
com muitos tiros
não por serem ladrões
 roubam
o que cair às mãos
em geral com aviso e cálculo
não por serem donos do pedaço
se apossam do pedaço
e se tornam seus donos
não por serem artistas
confundem vida e arte
e nem uma nem outra
lhes são propícias
não por não terem amor
não por não terem sonhos
exilados em seus territórios
rigorosos exatos
como o rato atento às armadilhas
da noite e da rua
que e os lançam
em sua perigosa condição

                                              Igor Zanoni
Nós os velhos

nós os velhos
mesmo não decepcionados
sabemos até onde a vida vai
e o que ela pode dar
por isso à tarde não perdemos
tempo em casa
e subimos a rua devagar
pensando que o mundo
quanto mais muda
mais é o mesmo
mas amamos os amigos
os do dia a dia
os mais distantes
os que estão no além
os que esquecemos
e compomos uma lista telefônica
com páginas amarelas
para achar cada um
porque amigos não se perdem
em algum lugar se escondem

                                                Igor Zanoni
Nossas imponderáveis qualidades

não podemos dizer amor
pois desconhecemos sua extensão
não podemos também dizer compaixão
pois quando cuidamos
trouxemos nas bordas do nosso corpo
todo abandono ao que cuidamos?
não cabe dizer alegria
fomos vagamente alegre por algum tempo
mas o tempo sempre é veloz
sempre quando estamos alegres 
não podemos também dizer imparcialidade
pois quando fizemos questão
do igual sentimento de gratidão pelo outro
por qualquer outro
e já nem o distinguimos de nós?

                                                                Igor Zanoni
Nosso dia

nosso dia está repleto de atividades
para as quais não chamamos atenção
mas que são importantes para o andamento
da casa como limpar a areia do gato
por comida para o peixinho
passar o uniforme do filho
ou fazer o almoço trivial
são ações que fazemos para os outros
creio que meu gato em seu mundo
fica em melhor situação
com o que faço por ele
ou que meu filho mirando seu dia
sente que tudo está no lugar
com o almoço pronto na hora certa
e o  uniforme limpo e passado
temos muitas dessas obrigações diárias
que sustentam grande parte da vida no mundo
e são decisivas para o bem-estar coletivo
também trabalhamos e isso já pode envolver
preocupações mais sofisticadas
como se estamos progredindo na vida
ou se temos satisfação no emprego
muitas atividades são assim
mas não há nada tão desprendido
como fazer as tarefas sem esperar
elogios ou recompensas
e ajudar a nós e aos outros
em tarefas que se esgotam em si
e mantém boa dose da felicidade
nossa e dos outros

                                                     Igor Zanoni
Nostalgia

você pode desdobrar
as fibras do seu coração
até alcançar todo o universo de sua vida
encontrará sua gênese
sentirá seus movimentos
todo o vivido está aí
mesmo que não saiba
com paciência encontrará
o lugar de cada ato cada sensação
viajará pela exatidão
de campos de força irresistíveis
verá de novo tudo que nunca
deixou a rigor de estar presente
com sua sombra ameaçadora
mantida a custo à distância
como um caleidoscópio no qual
nada é casual e nem tudo maravilha
e a nostalgia é uma benção aprendida
um perdão dado a cada ser
jamais se poderá ser assim
tão próximo do mundo

                                              Igor Zanoni
Noturno

soturnas penumbras tecem
os olhos ao meio dia
o ônibus vira rápido a preferencial à esquerda
a moto vira rápido a preferencial á direita
despencam capacetes
velhos descem com suas sacolas e sua pressão alta
meninos de férias e meninos sem férias
antes os tiroteios eram de madrugada
sentiamo-nos protegidos pela guarda-noturna
hoje uma bala vara teu olho
enquanto você vê o jornal do meio-dia
meia-noite os meninos não voltaram da escola
da rua onde estarão nesta noite vazia
em meu peito a azia sobe e desce
não fossem as noites em pílulas
Rivotril Anafranil apagam do seu cérebro
o que devia ser lembrado
a sua cara no espelho
felizmente é noite
mas é uma sensação falsa etc.

                                              Igor Zanoni
Novos Baianos

então Baby Consuelo ligava
seu lado sensual ao espiritual
e ignorava as pessoas fechadas
em suas golas de cédulas
pernas para que te quero?
para dançar é claro
para sentir a lua em nós
felizes tempos em que a felicidade
estava ao alcance de nossa ingenuidade
mesmo barrados na disneylândia

                                       Igor Zanoni



Nunca

todos os dias ofereço
meu amor nas ruas
como uma puta velha
ofereço tudo que penso
ser o melhor em mim
meus gestos de paizão
meu gosto pelo rock
minhas leituras de Dickens
minhas violetas meus poemas
meus beijos e todos os dias
volto quase só quase vazio
mas nunca triste nunca
é uma palavra distante
para mim

                                        Igor Zanoni
v
O Amor

o amor prepara-se com cuidado
não ocorre casualmente
não é um lance de dados
antes é um sentimento meditado
de alegria e de reciprocidade
não se dá quando o tempo
é propício
mas quando mudam-se o tempo
as estações a vida
e o inesperado vem como um alívio
uma cura
preparada com o carinho
que nos dá o nosso sentimento
de exigüidade
de passagem breve
quando neste sentimento algo nos diz
você passou por aqui
e teve o melhor que poderia esperar
mas jamais aguardar

                                                   Igor Zanoni
O amor

o amor não é gratuito
ele sempre tem seus objetivos
os santos visam salvar o possível
nas pessoas que encontram
bem como salvar as suas almas
os amantes buscam ser felizes
e assim todos fazem apostas
neste frágil sentimento

                                               Igor Zanoni
O amor acaba

Drummond escreveu em um poema
o título deste aqui
Cartola também cantou
“esquece nosso amor vê se esquece
porque tudo no mundo acontece...”
não sabemos bem como acontece
para o amigo e poeta Maurício Marcondes
“há amores perfeitos
desfeitos no chão”
eu mesmo me lasquei dessa forma
mas penso que hoje com o queijo tofú
a reposição hormonal e o método pilates
as mulheres pelo menos já não choram
como infelizmente choravam

                                                          Igor Zanoni
O amor e o contato

o amor e o contato
não são sinônimos
o beijo pode ser
a véspera do nada
nada a ver
nada com isso
nem sempre o amor
tem um objeto
que se toca
nem sempre a gente
se toca
você sempre se toca?

                                              Igor Zanoni
O amor finda

os motivos não importam
nem conhecemos bem
o amor acaba devagar
entre vestígios de carinho
todavia
finda como verduras
numa cesta onde lentos
a tarde o tempo a indisposição
criam bactérias desconhecidas
mofos sem data
sem controle
como um processo químico
natural e impostergável
os corpos se retraem
as palavras escasseiam
é preciso cuidar com disputas vãs
entre vestígios de carinho
todavia inúteis


                                       Igor Zanoni
                                        
O boxe está morto

não para todos os casos
mas para alguns antes havia
rotas de fuga
você podia crer no poder curativo
do orgasmo
e tornar-se um paciente reichiano
ou podia fazer uma psicanálise ortodoxa
compenetrada entre ironias finas
e comentários  caros
você podia estudar
e concorrer a um lugar na classe média
comprar carro viajar nas férias
ler revistas para homens
sempre havia uma rota de fuga
um amigo acolhedor
um pai que lia Betelheim
para te entender
você tentava o budismo o existencialismo
o ativismo católico
você se divorciava bebia parava de beber
quantas vezes não viu filmes da Marilyn
não leu os Cahiers Du Cinema?
em último caso você lutava boxe
e via as lutas de Cassius Clay
com os olhos de Norman Mailer
quantas vezes você não venceu junto
dançando em torno das adversidades da vida?
mas hoje o boxe está morto
e os machões não dançam

                                       Igor Zanoni
O Caminho Simples

                                                                              Dalai Lama

nem sempre o numinoso
está na libação do soma
ou do vinho
nem sempre na força
ou na beleza
muitos o encontraram
na vida cultivada
e meditada com paciência
que conduz à visão lúcida
e à ação sem paixões
muitas vezes o oculto está
em uma dimensão
que percebida nos revela
como o outro escondido
nos interiores de nossa mente
quando a sabedoria e a concentração
se dão as mãos
e o caminho se mostra
o mais simples dos caminhos

                                         Igor Zanoni


O Cão

alguém bate à porta
você imagina quem seja
mas não atende
ou chama para o almoço
e você desiste de tudo
adormece
bebe quatro cervejas
é inconseqüente
depois apanha suas palavras
quando você acha que é tempo
tenta impor sua vontade
porque você é meio perigoso
a vida se joga fora
com a água do banho
e o bebê dentro
você é uma pessoa dilacerada
mas o cão vem lamber suas mãos

                             Igor Zanoni
O Céu

não há céu além daquele
que já está aqui
escondido entre os detritos
da nossa vida
iluminando-nos sem que saibamos
de onde nos vem essa súbita alegria
esse vigor que nos toma às vezes
e a constância que temos em buscá-lo
mesmo que lhe demos outros nomes
amigos filhos namorada
o paciente aprendizado da música
o rigor do estudo bem vocacionado
o prazer do corpo bem cuidado
o amor aos animais tão originários
desde seu aparecimento
em nosso velho planeta
a alegria de criar um desenho
uma paisagem
de cuidar de alguém que amamos
porque merece ser amado
e o sentimos tão seu e de todos nós
o céu vem até nós quando o buscamos
na maravilhosa lata de lixo
da nossa vida tão efêmera
brilha entra garrafas de Coca Cola
entre ofertas de empregos mal cheirosos
e jornais velhos contando
o que repetem os jornais novos
busquemos o céu
nós o merecemos
não nos atraia a maldição
de uma vida jogada fora
sejamos pacientes com todos
mesmo que viver
não seja andar em um jardim


                                          Para Demian Castro

                                  Igor Zanoni
O coração vazio

esperamos por outros
mas nosso coração está vazio
quando vem alguém impomos condições
porque ele também nos quer
mas a seu modo
e na verdade não sabemos que modo é
esse no qual queremos
os outros o mundo
queremos falar sentir um pouco excitados
nesse mundo que promete
prêmios aos vencedores
mas o que podemos conquistar?
não sabemos
a estima dos amigos
uma mulher que seja também amiga
a admiração no trabalho
talvez isto... parece pouco
mas é muito e custa muito
uma vida de escuta e trabalho conjunto
de erros recomeços terríveis
nós estamos vazios
o tempo é do vazio
e nossa alma implora tristemente
o que não pode apanhar

                                                           Igor Zanoni
O Dentista

o dentista comum tem
 pouca chance de desenvolver
seus talentos
restaurar limpar fazer uma jaqueta
são procedimentos simples
realizados aos milhares
em uma cidade grande
nos prédios sombrios do centro
é um negócio como outro
sem aura nenhuma
depois de cuidar do cliente
o doutor passa os dados do convênio
pelo computador e pronto
embaixo se liquidam ventiladores
 com o fim do verão
a maior parte da vida
não é nada trágica
apenas business as usual
chata pra burro

                                          Igor Zanoni
O Espantalho

ao cair da tarde dezenas desses passarinhos
que se acostumaram e voltaram à Curitiba
marrons ou coloridos de branco
descem nos jardinzinhos do condomínio
buscando frutinhas ou bichinhos
nessa hora merencória mas de luta pela vida
tenho de fechar a janela para que meu gato não saia
pois os passarinhos são confiados
e descem até a ponta dos nossos pés
se o gato sai tenho de ficar como um espantalho
evitando os botes do Tom
correndo atrás dele - fora Tom! fora!
mas ele não desiste
e às vezes me surpreende com um dilúvio
de penas sobre o tapete da sala
que ele deve achar que é sua toca

                                                            Igor Zanoni
O Fio da Navalha

as pessoas que se saem melhor
na vida buscam ser avaliadas
por seu próprio padrão
como ensina Maugham
em O Fio da Navalha
assim se fazem as histórias de sucesso
uma pessoa que não busque
senão o que não pode ser
suficientemente esclarecido
será um ótimo bandido
ou um grande santo

                                    Igor Zanoni
O homem que falava sozinho

nos altos e baixos do Bairro Alto
ele discutia sozinho com gestos veementes
como nos filmes histriônicos
do tempo de Carlitos
não estava bêbado mas o ônibus passou
com uma barulheira impedindo
que eu ouvisse sua peroração 
falava só? e se eu falasse com ele?
discutem sozinhos os sem amigos
os abandonados dessa vida ingrata
os que a época marcou como alienados
e que antanhamente seriam julgados
lúcidos e apropriados
ter um só argumento não deixa
ninguém mais ou menos estúpido
os grandes mestres também se repetem
e com o tempo falam sozinhos
quando é tempo de espertezas
e não de sabedoria
quem condena um homem a falar só
nas ruas ?
sua pobreza sua cor sua idade
tudo que faz um homem descartável
como o seu coração e suas aptidões
para ser útil a um mundo mercantil
esse sim monótono e alienado

                                                    Igor Zanoni
O Livro

aquele azul e rosa em pastel
na capa untuosa do livro
que o meu colega ia lendo no bonde
e que se chamava “Um bom diabrete”
logo feriu minha inocência
e o título me apontou
para dimensões que desconhecia
 no mundo
acho que o pecado original
entra por exemplo assim
nas emoções de uma criança

                                 Igor Zanoni
O médico e o monstro

meu gato apanhou um lindo
pássaro branco
antes que o desplumasse pela sala
envolvi a ave com jornais
e joguei fora
o gato ficou meio perdido
depois foi passear na noite
no dia seguinte não devia
se lembrar da caçada
dormiu como um bebê ingênuo
em uma almofada quente
mas a tardinha o acordou
com o bater de asas no jardim
o caçador voltou de suas profundezas
e com seus dentes e unhas
já era de novo o outro gato

                                                  Igor Zanoni
O Morro dos Ventos Uivantes

há poentes terríveis
toda cor se esvai
nas nuvens sobrecarregadas
e a casa se situa em plena filmagem
antiga do Morro dos Ventos Uivantes
todas as preocupações cotidianas
passam a segundo plano
a alma vem às mãos
esqueço todas as tentativas de lidar
racionalmente com o mundo
que parece estar em plena dor de parto
do fim dos tempos
pelo menos do meu tempo
já não faço qualquer plano
os dados estão lançados
e estão contra mim

                                                      Igor Zanoni
O mundo remoto

quando o mundo era remoto
e distante
o tempo só existia nos ciclos
das férias na casa do tio Pedro
nas tardes infinitas de sol
o corpo prazeroso
no jogo com os amigos
minha mãe tentando preencher
sua vida
meu pai procurando formas
de ganhar mais dinheiro
eu tinha mais de mim que hoje
havia uma varanda de ar
em que eu me punha a escutar
o vento
embora os momentos cruéis
de identificação
quando o sofrimento em casa
atravessava minha pele
e me constrangia a buscar
um lugar
que dali por diante
tornou-se para sempre meu

                                                                Igor Zanoni
O nome do amor

o amor só merece seu nome
quando é cuidado e liberdade
quem vive com outro
como um salteador
ilude-se a si mesmo
e sofre com sua mesquinharia

                          Igor Zanoni
O Oráculo de Delfos

no Oráculo de Delfos estava escrito
“Conhece-te a ti mesmo”
como o máximo mandamento
a quem quisesse ser sábio
poucas pessoas souberam
quanta inteligência era necessária
quanto esforço e desprendimento
quanta constância
não menosprezemos o quanto
sabiam os gregos
a respeito da natureza humana
o quão trágica e insolúvel
é a humana condição
pensemos com seriedade
se queremos conhecer-nos
pensemos se desejamos
este doloroso cometimento

                                               Igor Zanoni





O Perseguidor


Cortazar chamou Charlie Parker
de “O Perseguidor” em um de seus contos
porque procurava com insistência
usando sua música algo que talvez
não soubesse o que era
em que consistia
embora outros o vissem como perseguido
pela droga as dificuldades de sua vida
penso que ambos, o músico e o escritor,
definiram um critério para pensar
 a arte e a vida
buscar o que não se sabe mas se precisa
dizer encontrar
a existência como a vivemos
seus desequilíbrios que nos põem adiante
de nós mesmos todo o tempo

                                                 Igor Zanoni
O poder do mundo

a vontade vem por caminhos obscuros
e tece um círculo de fogo à nossa volta
não compreendemos a uma certa altura
o nosso passado
e o presente é uma ilha desconhecida
é preciso cuidado paciência conosco
nós que já não sabemos bem
o sentido dos atos cotidianos
é preciso não se tornar uma pessoa perigosa
nem uma pessoa ressentida
a vida passa uma vez
humildes reverenciemos o enorme
poder do mundo

                                                      Igor Zanoni
O primeiro elo

a possibilidade de ver algo
como verdadeiro e real
está ligada pelo umbigo
à possibilidade de vê-lo
como falso e irreal
ambas manifestam nossa liberdade
de dar sentido ao mundo
este ou aquele sentido
além dessa liberdade
há a triste condição
de tomarmos nossas concepções
como concepções delas mesmas
como concepções das concepções
o senhor do mundo propõe a cada um
diversas formas de ver o mundo
mas ver é uma possibilidade nossa
inclusive de ver a cegueira
e de aceitá-la ou não
como nossa condição real

                                                                  Igor Zanoni







O que ainda está aí

hoje me sinto velho demais
para continuar mediando dificuldades
dos meus colegas ou da família e vizinhos
a maior parte das pessoas mais importantes para mim
já não está neste mundo e agradeço
quando surgem nos meus sonhos nítidas significativas
ainda gosto em especial das crianças
com sua liberdade e irreverência
embora os adultos tentem torná-las
parecidas com eles mesmos um contra-senso
os Céus sempre me ajudaram
Eles estão aí ao alcance dos que os buscam
gostaria de usar o meu amor
para estar disponível a todos
desde que buscassem em primeiro lugar
os lugares altos do seu espírito
isto tornaria todos nós mais felizes
e prontos para dizer adeus a tudo isso
que ainda está aí

                                        Igor Zanoni
O que é nosso

1
pensamos sobre que é de cada um
mas só existe o nosso
dizemos-nos com as palavras
que repetimos
sofremos em nossa solidariedade
no nosso mal estar
esta é uma comunhão
em que nada nos deixa sós
total abrangente
para quem pediríamos perdão?

2
o caminho mais longo
é o de casa
encontramos suas pistas
em cada um de nós outros
quando as perguntas voltam
após cada geração
podemos dizer
o que seria de mim
sem você me indicando
por onde caminhar?

                                                 Igor Zanoni
O que é o Amor

há pessoas que não gostam de usar
suas roupas mais novas
eu mesmo ganhei em um aniversário
uma camisa azul do meu amigo Demian
que nunca tive coragem de usar
há também certas pessoas
que é difícil olhar
porque são lindas e delicadas
e quando falam sente-se o cheiro de rosas
há relações especiais
datas especiais
sempre um tesouro escondido
que nunca revelaremos
sequer a nós mesmos muito bem
isso se chama amor

                                           Igor Zanoni
                                             
O que vale a pena

fique tranqüilo
tudo está perdido
a vida está perdida
logo ao nascer
melhor pensar
no que podemos fazer
apesar disso
no que vale a pena fazer

                                       Igor Zanoni
O Sentido da Vida

podemos ser marinheiros
ou tentar arar o mar
consertar relógios
ou como um filósofo
reparar pensamente
o tempo interno
talvez sejamos síndicos
ou artistas
tudo é possível
a vida sempre pode ser redimida
pelo esforço nem sempre prazeroso
mas não se a virmos
como um vale tenebroso
mesmo se a virmos assim
tentemos outra visão
dure nossa vida toda a tentativa
a vida é para isto
este é o sentido da vida

                                                         Igor Zanoni
O sentido das coisas

as coisas têm a dimensão
dos meus olhos
a paisagem dos meus dias
se reune conflui
em uma herança antiga
como um baú onde guardo
coisas novas e velhas
assim é com todos
guardamos lâminas e lâmpadas
gênios e gigantes
patrimônio da infância tantas vezes
revisto como estórias que se recortam
e colam
nas estórias de outros olhos
o mundo é uma coleção de paisagens
que sentido tem pergunto
pela necessidade de um sentido
já que nos pusemos tão juntos

                                           Igor Zanoni
O Som da Montanha

as pessoas criam papéis
como em um teatro de bonecos
e vivem um pouco ficticiamente
histórias com esses papéis
a essas histórias chamam relações
comparam histórias com histórias
ou relações com relações
o que não fica muito bem aos seus olhos
é posto de lado como errado ou inexato
mas é nessa inexatidão em que nos jogamos
como o sal de nossa vida
assim em um romance de Kawabata
poucas personagens pensam todo o tempo
sobre o que são seus papéis
e a adequação ou inadequação de suas pessoas
e nesses conflitos jogam suas vidas
conflitos entre esposa e marido
ou entre marido e sua cunhada ou suas noras
ou entre seu filho e sua mulher
ou amante
o rigor moral como pano de fundo
cede a uma flexibilidade que convém melhor
ao que chamamos vida comum
perceber a vida comum
é dom dos grandes poetas
porque ela foge do convencional


                                         Para  Fabiana
                                     Igor Zanoni
O tempo que se chama hoje

o passado dizia Eduardo Galeano
em uma estória para crianças
está nas cicatrizes que nos identificam
para nós mesmos
e demandam nossa coerência
mas penso também que o passado
pode ser remido ou atenuado
e que o tempo presente
tende a apagar nossos antigos sentimentos
se agora somos felizes
o tempo que se chama hoje
livra-nos de muitos pesadelos
mas ele não ocupa tudo em nós
tudo que foi vivido
é eterno e vive agora
de um modo atualizado

                                              Igor Zanoni
O tiro no peito

se eu tivesse sido Maiacóvski
também teria escrito em seu jeito exagerado:
“a todas vocês que amei e que amo
ícones guardados em meu coração caverna
como um rei num banquete
ergue a taça e celebra
repleto de versos levanto o meu crânio”
mas é claro sou um poeta menor
e pior mal agradecido
se amo e amei muitas mulheres
à toa por desfastio
lembro da metade delas
metade? que exagero!
acho que elas são antes um fluxo contínuo
uma torrente
que abastece nossa vida de possibilidades
impossíveis
mas eu também sou tão pouco prático
e possível!
vivamos todavia
imagina se todos andassem dando tiros
no peito!

                                       Igor Zanoni
O trabalho de viver

o trabalho de viver
é como o de uma dona de casa
todos os dias varrer o chão
limpar o banheiro
fazer a comida
lavar e passar roupa
deixar as contas dentro do orçamento
ser útil aos vizinhos
e se tiver filhos
ensiná-los a partir das coisas mínimas
fazer o bem não fazer o mal
 ter um bom coração
e também arrumar a cama de manhã
escovar os dentes
deixar suas coisas arrumadas
não brigar na rua
assim desde cedo começa
também para eles o trabalho de viver

                                       Igor Zanoni

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