quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Baú 5

Luzes

os antigos veneravam
o sol a lua e as estrelas
porque sem eles o mundo
seria tenebroso
assim a sabedoria era uma luz
que eliminava as trevas da alma
o próprio Eu Sou surgiu a Moisés
na sarça ardente
como fogo
e o nosso logos para os gregos
era o elemento fogo
porque inquiria o cosmos
e o acendia na humana precariedade


                                  Igor Zanoni

História

a vida não se explica em um instante
é uma longa história
que se conta devagar
uma conversa puxando outra
como as noites de Sherazade
o mais importante é que as aventuras
se sucedam mesmo sem sentido
e se espante o olvido
se espante a morte anunciada
e apesar dos enganos e das ilusões
se goste desse turbilhão


                               Igor Zanoni
Histórias

as histórias são muitas
ou se multiplicam em várias
formas de contar uma história
que flui com o momento
a força física as expectativas
as novidades os dissabores
ou as versões são maneiras
de se rebelar contra o destino
de compreendê-lo
viver com o que é injusto
ou dramático trágico
as pessoas tristes dormem menos
aferram-se a convenções antigas
refazem o pacto com o dia
pela rua vão páginas de um livro
que poderia ser o Gênese
ou a Odisséia
páginas de um livro que é preciso
conservar não esquecer
guardar as palavras chave
a aliança a hybris
o livro todo tem sentido
para os grandes sábios
talvez para Deus
nós viramos suas páginas
com nosso desejo nossos preconceitos
nossa alegria e impaciência
todas as contradições
é fácil ser contraditório
somos pequenos espelhos desse livro
como os que as mulheres
carregavam na bolsa
para retocar os lábios
gostamos da boca bem guarnecida
da exata quantidade de batom
para os beijos que virão
e para os que não virão
mas convidamos
    o conjunto ignoramos
 ás vezes uma página
ou um parágrafo
vem num sonho num pesadelo
numa hora excepcionalmente boa ou má
somos criaturas medianas
tocamos o barco
ninguém morre de sonhos
ou pesadelos
que prazer têm os que gostam de ler?
entretamos  também lemos
mas dessa forma selvagem
porque somos selvagens
mesmo quando sentimos
o sofrimento



                              Igor Zanoni
                                        
Hobsbawm


hoje li nas memórias de Hobsbawm
que quando criança ouvira
um disco trazido por um amigo da família
dos Estados Unidos
era o Vendedor de Amendoim
foi seu primeiro contato
com a América e sua cultura
muitos anos depois eu ouvia
na vitrola Silvertone que tínhamos
 em casa a mesma canção em castelhano
“Mani, esta noche ya no voy poder dormir
sin comer un pocochito de mani”
como pessoas tão diversas
em continentes distantes foram
marcados por essa rumba!
e quantas mais por aí!

             Igor Zanoni
Homem


o homem amoroso não pretende
que seu amor seja formado
ou ganhe bem
ele só quer paz e carinho
só quer que conheçam juntos
o grande e estranho mundo
quer amar passear conversar
quer ler os mesmos livros
ouvir as suas canções
o seu mundo não é o de filósofos
mas de andarilhos
e para cá e para lá na vida
vastamente anda
que o mundo reclama
curiosidade conhecimento
e sabedoria


                                     Igor Zanoni
Homens

eu gostaria de acolher em mim
os homens e mulheres de todos os tempos
em especial os do futuro que anseio
por ser um desafio para o agora
mas também os da antiga Grécia
e antes do Egito e da Palestina
da Índia e da China sábias
os seus sábios e poetas
seus amantes do divino
mas também e principalmente
o homem rude que orou como soube
e sem saber foi rude mas amou
essa é minha pátria
os homens e mulheres todos
e os demais seres
que na sua natureza alçaram-se
também ao cosmo
e nessa pátria quero orar
aspirando com todos
a outra paria terrena que em nós
de alguma forma conviveu


                                  Igor Zanoni
Humano

é difícil ser pobre entre os pobres
humilde entre os humildes
humano entre os humanos
participar como igual
de sua fome ancestral
sua imperecível cegueira
nem tanto para a beleza
mas para a verdade
para a sua história
para a temporalidade do existente
para os projetos de vida
mesmo que ilusórios
para o lastro poético
das coisas mínimas
o pão o beijo a amizade
construído ao longo da história humana
não comprar a poesia
retomá-la senão a marteladas
com a faca de pão
e o cartão do vale transporte
desvelar-se desnudar-se
como se faz no carnaval
recriar a arte da alegoria
deixar que as misérias
enterrem as misérias
e as cinzas sepultem as cinzas
tudo que os humildes
fazem de vez em quando
e os outros em geral sem consciência
ou com ares de superioridade
sentir esse dilema é dom
dos artistas do povo
                                                       mas ele vem mal entendido
confuso com hiatos limites
com os limites desse poema
desejoso e inescapável
impaciente angustiado
poema anti-lírico
que o lirismo foi abolido
e resta o mal estar
em nossa humana condição


                                Igor Zanoni
Humildade

1

o ruim de ser tão vaidoso
é dar muita atenção
ao que pensam os outros
mas ser humilde em troca
parece muito sem graça
como se a gente não fizesse
falta nem para nós mesmos

2

talvez o número de passarinhos
não seja infinito
mas o dos seus possíveis vôos sim
às vezes um forte pardal
se veste de Batman
outro uma coruja velha
pretende ser sábio só porque
sabe tudo o que se passa no celeiro
a natureza dá a cada um canto
uma penugem e um tipo de vôo
que os biólogos passam a vida
estudando
mas sempre uma graciosa ararinha
passa cantando um salve-rainha


                          Igor Zanoni




                                       




Idade

a idade faz a  muitos encalacrados
em inúmeras reafirmações e renegações
de coisas que não foram muito boas
de molde a torná-los um cristal obscuro
voltado para si mesmo
anacrônico extemporâneo alheio


                                             Igor Zanoni
Identidade

1

sabe-se que criamos identidades
a partir de inúmeros focos
nos quais nos fixamos
assim passamos a torcer por um clube
e a viver suas vicissitudes
ou nos tornamos maníacos por trabalho
ou por sexo ou por xadrez
amontoamos focos a partir dos quais
almejamos ser felizes
mas que também nos fazem sofrer
essas identidades são dolorosas
quando nossas emoções nos levam
a apego ódio busca contínua
dos mesmos cegos objetivos
sem titubear levando a vida adiante
em torno dos nossos deleites
nem sempre conquistados
um torcedor quer que seu time
vença o campeonato estadual
depois o Brasileirão a Libertadores
o Mundial Inter-clubes
mesmo correndo a certeza da dor
é preciso experimentar o mundo
ou não se saberá em que mundo
todos vivemos
depois é preciso pôr limites
guardar-se guardar o amigo
e encontrar a amplitude
do que é fundamental e esquecemos
a paz o carinho a tarde


2

o inconsciente é uma tinta
que pixa nosso corpo fala e mente


    


                                     Igor Zanoni


Idioma

às vezes se tem o idioma
um certo ritmo das frases
uma entoação
o fundo emocional que os idiomas possuem
suas direções lógicas
e suas impossibilidades
seus limites
mas a sintaxe produz efeitos inesperados
desconcertantes
ou é exigente cansa
como custa ler um poeta ou escrever um poema
às vezes bem mais
não permite palavras simples como pão
se combinarem com outras também simples como manteiga
e assim a fome passa despercebida
às vezes dos outros
outras de si mesmo
então se fica bem quieto
e se parte para o mundo silente
dos místicos e dos que fecharam sua alma
como se pudessem trancar-se num quarto
a sós com Deus ou sozinhos
sabe-se lá com quem
mas do divino e do enlouquecido
estou cansado
então ouço minhas palavras
aprendo a ser alfabetizado por mim mesmo
no meu idioma
e tanto quanto possível dizer
do meu jeito
de como eu construo meu mundo
como o desconstruo
para isso é preciso muita coragem
e muito medo



                              Igor Zanoni
Imagem


gostaria de não ter imagem
as imagens que se têm de mim
ser antes uma janela cristalina
que não mostrasse intencionalmente nada
mas na qual se vissem apenas
os utensílios singelos de cada dia
menos que uma janela
um vão aberto que se pudesse cruzar
em busca de passagem
gostaria de ser uma passagem
para mim mesmo
que não posso construir
apenas paciente desconstruir
depois de jogados fora a régua de cálculo
os instrumentos de navegação
perder as caras esperanças
e todo desespero
e afinal cruzar o rio
esse sonho ancião


                                    Igor Zanoni




                       


                    

Imprecisão

essa eterna imprecisão
esse errar entre sentimentos que se complementam
na práxis humana mas distam
na lógica das expectativas alheias
que quase sempre são imprecisas também
assim como as nossas próprias expectativas
nossa incapacidade de definir uma natureza humana
e procurar vivê-la
isso fica para vigilantes religiosos que buscam o satori
eu buscaria se não me perdesse sempre no caminho
vivo essa humana imprecisão
que você me perdoe
meu bem


                                     Igor Zanoni
Incômodo

quando se vai envelhecendo
crescem os incômodos
era uma delícia tomar chuva
depois um bom chuveiro
hoje o corpo se retrai
à idéia de que possa chover
e a aragem da noitinha
que trazia as damas-da-noite
hoje é sinal seguro de resfriado 
sempre se fica à espera de um achaque
se algo não corre como em céu de brigadeiro
o humor deteriorado
a falta de força
ah a chatice da idade!
mas não em todos os que envelhecem
hà os que ficam velhos cantando
crendo em Deus e na vida
cercados de netos
escrevendo livros ou fazendo bolos
talvez se possa decidir
o velho em que nos tornamos
sábios como chefes tribais africanos
ou desolados e sós
mas como decidir?


                        Igor Zanoni


                               

India


tantas vidas distantes se gastaram
em volta às Indias que eram tantas
e tão preciosas
e que a seu tempo foram amadas
e dilapidadas
seu amor mesmo incompreendido
e maldito como seus deuses
e suas almas
a ponto de se julgar não tê-las
que a lira dos grandes um dia ergueu
cingindo-as a todas elas Indias
de lágrimas
e de sensato julgamento
quando tudo era tão prememte ainda
e a alma tão pequena
que se quisera avaliar o valoroso feito
lançar outras velas
respirar no amplo mar com amplo peito



                             Igor Zanoni




Indiviso

meu coração não precisa se dividir
entre chineses e tibetanos
americanos e equatorianos
indianos e paquistaneses
egípcios e etíopes
todo poder não me interessa
cada um em todo lugar
mereça seu nascimento humano
mereça estar entre os outros
em qualquer lugar que se corte
o ouro é sempre ouro
em qualquer lugar que se viva
os seres são os mesmos
mesmo que se expressem
apenas do modo que conhecem
podem estar juntos
a política e a guerra se continuam
o poder e o dinheiro
a mídia e as segundas intenções
o capital financeiro e o emprego humilde
meu coração nasceu em uma aldeia
mas aspira o mundo
o mundo que ainda não foi criado
que não verei
mas cujos fundamentos
encontro em todos os olhos
dos que se acolhem


                                   Igor Zanoni
Inimigos:Uma História de Amor

no livro assim intitulado, Issac Bashevis Singer dramatiza ao limite o problema do sentido do judaísmo para os que sofreram o holocausto ou , fugindo de Hitler, os campos de trabalho forçado na Rússia de Stalin. a resposta do autor a esse problema só será dada de forma plena e positiva em seu último livro, O Penitente. neste, ela flutua com nuances na existência dos personagens principais. na atmosfera dos refugiados que tentam recomeçar a vida na rica e promissora América,  Herman Broder é um antigo talmudista polonês que não encontra como inserir-se na vida do trabalho senão como gosht writter de um rabino enriquecido e assimilado, porém bondoso e que serve de suporte para muitos refugiados e organizações que os auxiliam. Herman passou três anos da guerra escondido num paiol por uma camponesa cristã que fora empregada de sua família, perdendo seus dois filhos e pensando haver perdido sua mulher. ao final da guerra casa-se com essa camponesa, Yadwiga, e emigram para o Brooklin morando num prédio cheio de judeus emigrados que tentam conservar suas tradições e seu sentido para a vida. Yadwiga ama Herman, quer ter um filho, que ele evita, e converte-se , encontrando um lar espiritual na América ao lado do seu problemático casamento. Herman não pode senão duvidar desses antigos valores após o holocausto, e sua vida perde crescentemente qualquer controle, afetivo, financeiro, moral . apaixona-se  por uma bela mulher, Masha, que está se divorciando de um homem que vive de subterfúgios e mentiras para viver, mas que encarna a violência, a confusão e a teatralidade de suas vidas e portanto sua verdade . ela significa o desejo, que a vida de ambos está acesa e que podem fazer uma aposta nela com base em seu amor. quando Tâmara, a antiga esposa de Herman,surge viva na América, conservando apesar da guerra uma bondade e uma confiança integra em Herman e nos que o cercam,ele se vê na condição de bígamo, que se agrava quando Masha exige um casamento religioso após divorciar-se com custos pessoais do ex-marido .além disso Yadwiga engravida e parece encontrar na solidariedade das refugiadas um sentido que ultrapassa Herman. é interssante que Masha quer engravidar, pensa estar grávida mas após uma forte hemorragia descobre seu engano. Tâmara ajuda este, com o auxílio de um rabino que está emigrando para Israel, que se recompõe em termos sociais e financeiros mas se afasta do seu grande amor e do seu desejo encarnado em Masha. o final do livro você lê. é interessante notar como o perfil das mulheres é bem estruturado, ao contrário do patético Herman, aprisionado numa vida interrompida pelos anos no paiol perdendo seu controle sobre si com a revelação da fragilidade ou mesmo da ausência de misericórdia de seu Deus. as mulheres o conduzem. ele mal se sustenta fisicamente com os danos dos anos passados no paiol, procura acomodar situações conflitantes mas só no amor de Masha, no seu corpo, encontra força e identidade pessoal, encontra forte ainda o desejo de viver .ele é a personificação pálida desse desejo que busca tortuoso mas a seu modo íntegro e sempre verdadeiro a sua gratificação nesse sentido, parece-me que há uma busca de sentido para além da tradição religiosa, algo niilista mas forte e belo, mas que também não se mostra viável. estes conflitos o próprio Isaac Bashevis Singer viveu e sobre ele escreveu e pensou, explorando ao máximo sua herança de emigrado polonês nos anos 30 para a América.

                                   Igor Zanoni
Intenso

assim intenso
corda de violino soando
contra o vento
assim intenso
arco teso mirando
o cego firmamento
assim intenso
ânfora mármore alaúde
rompe a crosta
do álacre ataúde


            Igor Zanoni
Intimidade


embora muitos casais
possam viver uma vida inteira juntos
sem estabelecer uma real intimidade
muitas profissões ensejam
uma imediata e durável proximidade
uma pessoa sempre confia sem condições
no médico que trata de seus achaques
o pastor está sempre ao alcance dos domingos
para restabelecer a paz perdida
e o psicanalista estabelece com seu analisando
uma relação insólita e peculiar
às vezes maior que um casamento
uma cura ou um perdão
mas que exige confiança e vontade
uma compaixão com pleno desapego
vivida no mais recôndito do coração



                                 Igor Zanoni
Invenção

existe um sentido imanente
em tudo que acontece
ele não é bem descoberto
mas inventado
como se elaborássemos frases
capazes de andar ao lado do mundo
e de interferir em sua e nossa vida
de se tornarem um norte
para a maioria dos atos e pensamentos
e nosso sentimento de angústia
ou bem estar
esse sentido duplica o mundo
multiplica-o
assim como multiplica a nós mesmos
como difíceis seres em uma difícil
comunidade humana
pode haver em geral muitos sentidos
criando muitos eus e muitos mundos
assim como zonas da existência
obscuras e rebeldes
que os grandes pioneiros e heróis
desbravam
tudo isso é claro mesmo óbvio
mas para grande parte de nós
a verdadeira dificuldade e o maior desejo
é descobrir uma vida unívoca
uma mente una capaz de criar
um mundo real mas impensável
mas no qual se pode viver o tempo todo
embora sempre no coração do mundo banal
aí reside um solo sagrado
mas também o sagrado tem muitos sentidos
de modo que o melhor
é manter-se centrado
numa boa motivação para a vida
seja ela o que for ou nos pareça
mansamente aspirar
a alegria de ser para nós e para os outros
semente ponte caminho



                             Igor Zanoni


Janela

colocar uma flor na janela
de uma prisão sem janela
para que tome sol e cresça
forte e segundo a sua natureza
enquanto nos sentamos para ler
os livros que nos tiraram
e as idéias que a custo retemos
de tanto sofrimento
a fim de pesar a vida
e avaliarmos a nossa própria
 natureza
e riscarmos amorosamente
o chão recriando esse conceito
básico: chão
o chão que me sustém
e olhando o dedo sujo recordar:
isso é meu dedo
e pode proteger uma flor
e filosofar sobre os fundamentos
mesmo que se esteja preso
a tanto sofrimento
porque se quer sair
ganhar asas como o pássaro
que cruza nossa mente
ainda que não o espaço
da cela



                              Igor Zanoni
Janelas

1

abrem-se as janelas
para entrar na atmosfera

2

o melhor sentimento
é o de alívio

3

o mahamudra é o gesto
de morrer
o grande gesto
quando só há o presente
e tudo o mais é passado
quando se medita
também há essa percepção
da vida
por isso a postura do lótus
é chamada também mahamudra
a postura sagrada
o gesto do Abençoado


4

a solidão é um desperdício
da intrínseca beleza
da sua e da minha natureza




                                Igor Zanoni

Jardim

você está no jardim de sua casa
diante das gérberas e dos gerânios
a tarde cai única porque toda tarde
é particular e a seu modo repete
as auroras primordiais e as futuras
você pensa nos seus projetos
na agenda nos telefonemas a dar
não sente se está cansado
não percebe seu corpo
sua tensão a flutuação do espírito
também você vive univocamente esta tarde
 este ser pensado desde os antigos
e votado à morte como os gladiadores
vivo não como os pássaros
não como tudo que encontra na tarde
um caminho sem pensamentos
este ser que não se pensa não se conhece
está atrás ou adiante mas não está consigo
e foge de tudo porque o que há
é este respirar que com alguma dificuldade
terá de se acalmar invocar o sono
o repouso o prazer o calmo relaxar
porque mesmo para uma pessoa sem lucidez
é preciso viver de vez em quando
exatamente o que acontece
o famoso aqui e agora
e torná-lo sereno e seguro



                                   Igor Zanoni


                                             

João e Maria

no tempo em que beber
desmerecia um homem
no tempo em que a bebida
bastava como o elixir
dos tristes dos desesperados e dos alegrinhos  
e se punha desfecho em situações
ambíguas com uma pá de cal
no tempo em que jogar era um vício
e não a regra do jogo
e se voltava de madrugada
em plena São Paulo
dedilhando ainda o violão
no tempo em que os bons cowboys
fumavam como se suspirassem
e todos tinham um segredo
guardado a sete chaves
João e Maria viviam uma tragédia
com método e rigor
não com essa descontração toda

                          Igor Zanoni
José Lins do Rego


a cadência repetitiva das situações pessoais
no plano dos conflitos locais
a exaustiva descrição interior dos personagens
pelos ângulos infindos de suas relações
a falta de pressa em observar e dizer
o que a história é
de que história se trata
de que gente de que lugar
a monótona e crescente asfixia
que priva os personagens de soluções
que não as contidas em situações limite
a escrita exata que contém
não obstante os labirintos da trama
o regional universal do amor
da angústia da saída impossível
configurados nos heróis dolorosos
este é o melhor José Lins do Rego


                                           Para Selma
                                                   Igor Zanoni
Juiz

apavora-me a idéia do juiz
mesmo do meu juiz interno
por que ele está aí?
o que pode saber de mim?
eu tão parco escasso turvo
cultivo a benignidade
sou tão gentil
mas cometo atos horrendos
quantas infelicidades causei
por estupidez
e falta de heroísmo!
era necessário que eu fosse
um herói?



                                   Igor Zanoni
Julgamento

ai de mim se tiver de mostrar-me
um homem bom no dia de meu julgamento
se neste dia tiver de mostrar-me
um homem justo e amante da justiça!
porque na maior parte do tempo
jogamos fora as nossas chances
atiramos fora a nossa condição
de pobres carentes de salvação
mas haverá um julgamento?
ou iremos como alguém
que nem é necessário considerar
sériamente?


                     Igor Zanoni
Kant

eu nunca li Spinoza
li Kant em francês aos dezoito
dividindo seus parágrafos
expondo a ordem de suas razões
mas não entendo Kant
sou um suburbano carioca
que em Campinas leu Marx
e  misturou com o Dalai-Lama
li como uma dívida Baudelaire aos cinqüenta
comparei com Pessoa com Eça
mas não sou um crítico
nem um pensador
talvez as melhores coisas vividas
não tenham sido escritas
mas é bom conferir
e quando possível entender


                          Igor Zanoni
Kol Nidrei


suplico que fiquem sem valor
os juramentos que fiz e me impedem
de estar aqui
rogo que desconsidere os tratos
 e contratos que fiz e que ferem
minha aceitação
diante da tua aliança
eu sou um homem simples e pobre
e honro os deveres que fiz com meu próximo
mesmo quando me ferem
mas não honrarei
os juramentos e tratos que fiz
manchando a tua Lei
o meu nome que pertence a Ti
o Teu nome que eu não sei
e não ouso pronunciar
mas vive em mim e no Teu povo
isso eu peço
pela segunda vez peço
pela terceira vez insisto
com grande contrição


                                            Igor Zanoni




                                    

Kundalini


kundalini move a roda
e a rosa mostra-se a rosa
uma criança nasce 
morre um ancião
as colheitas se sucedem
não há nenhum mistério
o santo se ilumina quando
percebe como as coisas são
os namorados encontram no outro
espaço e pátria
e o breve gosto antecipado do céu
nunca o dharma se mostra
mais vazio e mais pleno
e o que acontece não se afasta
de sua origem
ai dos falsos demiurgos
que reinventam o pensar
e o querer
retiram-no dos seres
devolve-os como ilusão
amarga insensatez



                                      Igor Zanoni
Kyoto

quando eu estiver em Kyoto
sentado em uma praça
vendo os monges distribuirem
garças de papel
serei de novo o menino sério
que se sentava na Praça Carlos Gomes
em Campinas
sob as imensas palmeiras imperiais
verei o curso d´água
deslizar sob a pontezinha
que leva ao coreto
onde nos domingos as bandas
que ainda existem mal se sabe onde
tocavam marchas de John Phillip Souza
e modinhas de Caldas Barbosa
e Carlos Gomes
em Kyoto ouvirei essas bandas
sentado frente ao pequeno coreto branco
e as garças voarão sobre mim
como voavam as andorinhas



                              Igor Zanoni

Laços

nunca se é de todo aceito
nem recusado
a isso se chama criar laços
a beleza mal pode ser vista
a amizade se disfarça
sob as normas e os costumes
o amor duramente medra
entre as pressões da vida
e aquelas que julgamos
 ter de atender
 e se torna uma conta infinita
de menos
há uma distância regulamentar
entre os que só conversam
como se pudessem quebrar
vidros e imagens
como se não fosse importante
tantas vezes quebrar
vidros e imagens
em um mundo que se dilui
há os que buscam criar
manter sacralizar
formas institucionais
de não ser feliz ou infeliz



                            Igor Zanoni
Lagartixas

1

quero dormir o sono das lagartixas
atrás dos armários atulhados
de roupas esquecidas
nos quartos mornos das casas
sobre as quais não pesa
nenhuma hipoteca
e podem dormir também
o sono dos fidalgos

2

não quero morrer como as mariposas
carbonizadas por uma lâmpada
elétrica tão vulgar
mas que para elas é um deus
uma ordem natural
odeio a orden natural
embora aceite sua necessidade
diante do abuso praticado
em nome das ordens sobrenaturais
mesmo assim não quero morrer
sequer por ela
minha morte por natureza considerarei
sempre uma desordem




                                       Igor Zanoni


                                
Lagartos


lagartos imóveis na via férrea
teciam uma aura de tardes
de faroeste
muitos anos vivi essa letargia
no lento amanhecer da adolescência
a rigor sem tempo
pura nostalgia muscular
puro corpo pura sensação
que depois redescobri nas aventuras
de Tom Sawyer e Nick Adams  


                              Igor Zanoni
Lago

1

quando ela  está calma e ponderada
vaga como cisne em um lago
sem uma ruga em minha testa
esquece as artimanhas femininas
suas táticas bélicas
e se perde toda solta na tarde solta
rigorosa e ampla como o Largo de Haendel

2

é possível crer sem crer
como quem crê mas não ora
ou ora por hábito dado pela avó
como quem crê mas não quer
que algo mude
como se não fôsse próprio do corpo
 a ação e da mente o sentido
e se entrega ao fluxo da corrente
mesmo quando está num lago
sem corrente alguma



                                   Igor Zanoni

Lágrimas

a vida não é um alegre
corredor polonês
não se entra ou sai dela
com facilidade e mesmo quando
cercada de vinhos e de amigos
seu percurso lembra os amores
perdidos as chances malbaratadas
as felicidades agora distantes
logo o outono se precipita
mas crianças também sentem
desgostos cuja puerilidade
lhes é própria
assim os velhos choram
porque envelheceram
e na paisagem à frente
passa tudo que é passageiro
não como um barco florido
numa pintura impressionista
ou um piquenique em Paris
cercado da aura da modernidade
dos rostos róseos e dos vestidos tênues
os jovens inerentemente viris
a vida não é assim
vista em conjunto do alto da colina
neste outono que cai dos céus
ela é antes e ainda
um vale de lágrimas



                                    Igor Zanoni
Lar

meus lar são as pedras dessa calçada
são minhas pernas e os pássaros no muro
meu lar são essas rosas
que brotam como que dentro de mim
meu lar é minha esposa e meus filhos
meus amigos e meus inimigos
meu lar é minha comida
meu ar minha água
meu lar é essa pessoa às vezes
tão difícil enredada
meu lar são essas redes
é a faca que as corta
meu lar é meu Deus e meu Buda

                                                           Para Tich Nhat Han
       
                                                Igor Zanoni

Lastro


os mortos  são um lastro
que instabilizam a viagem
é preciso sempre indagar
o que se pode fazer e o que não
encontrar o equilíbrio difícil
que permite o barco navegar
tudo que se deseja deve passar
por sua chancela
tudo que não se pode
neles encontra um motivo
por isso eles podem ser considerados
nexos de continuidade e descontinuidade
entre o porto a viagem e outro porto
que possamos alcançá-lo!
nexos de solidariedade indicando
o que faltou e o que já é demasiado
comigo em minha carne
trago todos os seres que me deram origem
toda carne todo espírito toda energia
que pode cultivar o mundo
ou arruiná-lo
essa parte do mundo sobre
os meus pés
é melhor lidar com os vivos
eles são mais leves
às vezes riem fazem festas bebem cerveja
mas os mortos se reduzem
a instancias fundamentais
articular vivos e mortos
exige a sabedoria dos xamãs
é preciso conquistá-la
para ser livre


                           Igor Zanoni
Legião


plurais e conflituados
nossa alma guarda
um demônio chamado Legião
como o que habitava o endemoninhado
e que a Jesus deu seu estranho
nome coletivo
Legião
 porque somos muitos
e quase não cabemos no mundo
nem nosso nem alheio
e rogam por nossa cura
mas não há o que curar
há que viver
que há muito Jesus se foi
com seu incompreensível poder


                                Igor Zanoni
Ler


passei doces noites em claro
decifrando como um aprendiz
o Capital
enquanto ouvia na Rádio Eldorado
infindas e indistinguíveis sinfonias
eram momentos de calma solidão
nas quais mal saía para o quintal
no quarto de fundos em que morava
para fumar um hollywood sem filtro
e apreciar a quente noite de Campinas
eu encontrava as chaves da vida social
mas mais importante
o refúgio da vida da minha alma
inquieta
parecia que eu estava indo para algum lugar
mas antes parecia que eu havia chegado
a esse lugar
no qual abolia o futuro e o passado
refazia meus votos com a vida
que pareciam tão rotos
há mais seriedade na vida de estudante
que de profissionais
que precisam ganhar muito dinheiro
e parecer melhores do que são
aquelas noites revelaram
meu compromisso com as letras e a arte
por elas deixei tudo
até muito da vida
exceto como posso compreendê-la




                                   Igor Zanoni
Liberação

quando afinal liberamos toda angústia
e toda felicidade
construídas nos vastos dias da vida
e que pesam com seus constrangimentos
na alma prisioneira
após darmos a esta nascimento
e ensinar-lhe a porta da prisão
recolhemos nas mãos as relíquias
das nossas veneráveis cremações
e viuvezes
as mãos fechadas
nem nós sabemos bem o que guardamos


                        Igor Zanoni
Liberdade

embora se diga que a arte
é um território privilegiado
de liberdade de expressão
nenhum músico pode deixar jamais
de dar a sua versão de Carinhoso
nem um bom cantor de mostrar
seu talento com Índia
essas são peças do cânone brasileiro
e um exemplo de que a maestria
ainda depende ali
da boa performance de uma obra-prima
assim como do lado conservador
e institucionalizado da criação artística



                               Igor Zanoni
Lição

1

a lua é uma bolona redonda
e manchada que fica lá em cima
dizem que a vida na terra
tornou-se possível graças a ela
isso não sei e este é um poema
não uma lição de biologia

2

o céu mais claro
é a cabeça sem nuvens



                            Igor Zanoni
Lidando com as Emoções

A Barreira Dualista

                Conforme já comentamos, o tédio é muito importante na prática da meditação sentada; não há nenhum outro meio de penetrar nas profundezas da prática meditativa a não ser através do tédio. Ao mesmo tempo, contudo, devemos examinar melhor o desejo de ter credenciais. Mesmo vivenciando o tédio ou com ele nos relacionando, isso, em si, poderia ser mais um jogo, mais uma maneira de criar uma sensação de conforto, de segurança, na prática da meditação. Devemos lidar com algo mais, além de vivenciar o tédio; e esse algo mais são as situações cotidianas do viver que envolvem o amor, o ódio, a depressão, enfim – as sutis, mas essenciais, emoções.
                Ainda que estejamos aptos a executar com facilidade a prática vipashyana de nos relacionarmos com a respiração, não podemos, no entanto, ignorar esta ampla área de distúrbios potenciais e inesperados. É possível que, ao final de um período de meditação em postura sentada na qual tenhamos vivenciado o tédio, sigamos para a sala de estar e, ao telefonar a um amigo, constatamos que o telefone foi desligado, pois não pagamos a conta telefônica. Ficamos chocados: “Mas eu não tenho culpa, minha mulher perdeu a conta”, ou “Eles não têm o direito de fazer isso” ou algo semelhante.
                Pequenas contrariedades desse tipo acontecem o tempo todo. Se vivenciarmos tais situações, começaremos a descobrir que a nossa prática orienta-se em função de credenciais e que existe uma crença em determinado tipo de harmonia básica. Os problemas da vida cotidiana são um meio de destruir nossas credencias, nosso conforto e segurança e nos oferece uma oportunidade para nos relacionarmos com nossas emoções.
                Embora sejamos capazes de ver a simplicidade do processo dos pensamentos discursivos, ainda existem emoções muito fortes, com as quais é extremamente difícil lidar, e que constituem um sério desafio. No trabalho com as emoções não estamos lidando apenas com o quinto skandha, “consciência”, mas também com o quarto skandha, “conceito”, “intelecto”. As emoções compõem-se de energia, que poderia ser equiparada à água, e de um processo de pensamento dualista, que poderia ser igualado a um pigmento ou tinta. Quando energia e pensamentos se combinam, transformam-se em emoções vívidas e coloridas. Os conceitos dão à energia uma posição particular, um sentido de relacionamento, o que torna as emoções fortes e expressivas. Basicamente, a razão das emoções serem incômodas, dolorosas e frustrantes decorre de não ser bem claro nosso relacionamento com elas.
                No nível do quinto skandha, a estrutura do ego tornou-se tão eficiente que há um conflito entre o gerenciamento do ego e a própria ignorância central. É como se o ministro do rei tivesse se tornado mais poderoso que o próprio rei. Parece ser este o ponto onde as emoções se tornam dolorosas, porquanto não estamos muito certos de como está nosso relacionamento com as emoções. Há um conflito enorme, um sentimento de que estamos sendo subjugados por elas, que estamos perdendo nossa identidade básica, nosso centro de comando.
                Portanto, o sofrimento emocional provém desse conflito; o relacionamento é sempre ambíguo. Contudo, se uma pessoa estiver realmente preparada para relacionar-se total e completamente com as emoções, então estas deixarão de ser um problema externo. Se estivermos aptos para entrar em contato bem íntimo com as emoções e com o conflito entre nós e as nossas emoções, então nós e nossas projeções (ou seja, nós e o mundo exterior) nos tornaremos transparentes. Isso implica a remoção das barreiras dualistas colocadas pelos conceitos, o que é a vivência de shunyata, a ausência de conceitos relativos, o vazio.
                Na verdade, não temos uma visão completa das coisas tais como são. Em geral, percebemos alguma coisa e, em seguida, a olhamos. Olhar, neste caso, é o ato de impor nomes e associações às coisas. Ver significa aceitar aquilo que as coisas são, ao passo que olhar significa despender um esforço desnecessário para nos certificarmos de que estamos seguros, de que nada irá nos confundir em nosso relacionamento com o mundo. Dessa forma, criamos nossa segurança colocando as coisas em categorias, dando nomes a elas, utilizando termos relativos para identificar seu inter-relacionamento e sua mútua adaptação. E esta segurança traz, temporariamente, felicidade e conforto.
                Esse modo tão grosseiro de procurar pontos de referência em termos das nossas projeções é muito infantil. E tendemos a repetir o mesmo esquema muitas vezes. Não há nenhuma tentativa de lidar com as projeções como situações estimulantes e fluidas. Em vez disso, o mundo é visto como sendo algo totalmente sólido e rígido. Tudo é movimento congelado, tudo é espaço congelado, solidificado. Vemos o mundo como possuindo uma fachada extremamente dura, com uma qualidade metálica ou plástica. Vemos as cores como elas são, mas, de certa forma, elas são cores plásticas em vez de cores de um arco-íris. E essa qualidade sólida é a barreira dualista da qual temos falado; isso não quer dizer que uma pessoa não deva perceber a textura de uma pedra ou de um tijolo como sólida. A situação básica de solidez não tem relação com solidez psicológica, e aqui estamos lidando com a solidez mental – a aspereza, uma qualidade metálica. De fato, é extremamente interessante que só vejamos nossa própria versão sólida do mundo. Por conseguinte, a percepção é muitíssimo individualizada, centralizada na autoconsciência.
                É impossível ter uma experiência imediata de shunyata, ou seja, ausência de conceitos, ausência da barreira dualista. No início, devemos trabalhar com um método simples e, depois, começaremos a perceber a qualidade transparente dos pensamentos e das emoções. Aí, então, devemos tentar até mesmo ir além da situação de relacionamento com a transparência, isto é, do senso de que nós estamos vendo a transparência dos pensamentos e das emoções. Noutras palavras, o processo de pensar e as emoções são transparentes e ocorrem no meio de lugar nenhum, no espaço. Esta espacialidade, esta sensação de que tudo funciona e ocorre numa vastidão, é o espaço positivo dos meios hábeis, de trabalhar com as situações cotidianas da vida. De fato, a criatividade e o aspecto positivo das emoções e das situações da vida só podem ser percebidos mediante a experimentação do espaço e não dos seus efeitos. Se o relacionamento de uma pessoa com o espaço for desenvolvido adequadamente, percebido corretamente, então não haverá incerteza alguma.
                Estamos falando aqui de nos tornarmos um com as emoções. Isso difere e contrasta com a abordagem habitual de reprimi-las ou de exteriorizá-las. Reprimir nossas emoções é muito perigoso, pois significa que as estamos olhando como algo terrível, vergonhoso, o que demonstra que nosso relacionamento com elas não é realmente aberto. Uma vez que tentemos reprimi-las, mais cedo ou mais tarde elas acabarão emergindo e explodindo.
                Existe outra possibilidade: a de que nós não reprimamos as nossas emoções, permitindo-nos realmente nos expor e então sermos levados por elas. Essa forma de lidar com as emoções também emana de um tipo de pânico; nosso relacionamento com elas não está adequadamente ajustado. Esta constitui outra forma de escapar da emoção verdadeira, outro tipo de libertação, um falso alívio. É uma confusão entre mente e matéria, achando que o ato físico de exercitar as emoções, de pô-las em prática, supostamente as curará e acalmará sua irritação. Em geral, porém, isso lhes dá força e elas se tornam mais potentes. Nesse ponto, o relacionamento entre as emoções e a mente não está completamente claro.
                Portanto, a maneira inteligente de lidar com as emoções é tentar nos relacionarmos com a sua substância básica, com sua qualidade abstrata, digamos assim. O estado básico de ser das emoções, a natureza fundamental das emoções é apenas energia. E se estivermos aptos a nos relacionar com a energia, então ela não entrará em conflito conosco. Ela se tornará um processo natural. Portanto, tentar reprimir ou deixar-se levar pelas emoções passa a ser irrelevante, desde que a pessoa esteja completamente apta para ver a característica essencial delas, para ver as emoções tais como são, e isso é shunyata. A barreira, o muro entre nós e nossas projeções, o aspecto histérico e paranóico de nosso relacionamento com as nossas projeções foram removidos – não exatamente removidos, mas compreendidos. Quando não há pânico ao lidar com as emoções, podemos lidar com elas de uma forma completa e adequada. Nesse caso, nos igualamos a alguém completamente capacitado em sua profissão, que não entra em pânico, mas que, simplesmente faz o seu trabalho completa e meticulosamente.
                Estivemos discutindo o modo de lidar com a consciência, o último estágio de desenvolvimento do ego, e também lidamos com os conceitos, o estágio precedente. Quando falamos de “lidar” com eles, não será uma questão de eliminá-los por completo, mas, na realidade, de vê-los e transmutar suas qualidades confusas em qualidade transcendentais. Não deixamos de utilizar as energias do pensamento, as energias das emoções e as energias da conceituação. Geralmente, quando se apresenta a idéia do ego, a reação imediata do público é olhá-lo como um vilão, um inimigo. Sentimos que devemos destruir esse ego, esse eu, e isso é uma atitude masoquista e suicida. As pessoas tendem a pensar dessa forma porque, habitualmente, quando falamos em espiritualidade, tendemos a pensar que estamos combatendo o mal; nós somos bons, a espiritualidade é o bem supremo, a síntese do bem, e o outro lado é o mal. Entretanto, a espiritualidade verdadeira não é uma batalha; é a suprema prática da não-violência. Não estamos considerando parte alguma de nós mesmos como um vilão, como se fosse um inimigo, mas tentamos usar tudo como parte do processo natural da vida. Tão logo se forme a noção de polaridade entre bem e mal, somos apanhados pelo materialismo espiritual, que é o esforço para atingir a felicidade num sentido simplista, seguindo para a egoidade. Por isso, o muro da dualidade não é algo que temos de destruir, eliminar ou exorcizar. No entanto, tendo percebido as emoções como elas são, dispomos de mais material com o qual poderemos trabalhar criativamente. Isso deixa bem claro que a noção de samsara depende da noção de nirvana e a noção de nirvana depende da noção de samsara; elas são interdependentes. Se não houvesse confusão, não haveria sabedoria.






Texto extraído do livro O Mito da Liberdade e o Caminho da Meditação, de Chögyam Trungpa, Ed. Cultrix.
Limoeiro


quantos gestos insensatos contemos
com nosso precário sentido de obrigação
nossa frágil racionalidade
que a razão deve ser cultivada e ensinada
ela não é tão inerente a nós
como os limões ao limoeiro



                           Igor Zanoni
Linguagens

por inúmeras linguagens têm sido buscadas
a flor de ouro o lótus a rosa mística
a serena contemplação a racional verdade
o sentido de tudo que falta
o inventário dos males e das virtudes
a cura pela natureza e da natureza
a suposição do que seja a humana natureza
seu cerne material e metafísico
a ética a estética a economia política a psicologia
e do mais remoto xamã na mais remota gruta
brota a lucidez do que foi claro um dia
e talvez possa ser claro em outros
dakinis surgem aos olhos de homens
que ressumam força e compaixão
sutras mantras orações diálogos
longos e minuciosos inventários do ser
nem tudo é o mesmo  nem se afasta
da humana condição
e mesmo quando se busca a outra margem
o super-homem a imortalidade
acha-se o mesmo ou o diferente
acham-se traços densos cortes que se cruzam
e por isso é tão importante falar
sempre que preciso
calar sempre também é necessário
que o um não se encontra no homem
nem fora dele
mas nem tudo é diverso e distante
e o melhor é acolher e ser claro e bondoso
com tudo que vemos e para aquilo que estamos
hoje cegos




                                  Igor Zanoni

Linhas


emendar as linhas partidas
traçar caminhos com pontos
futuras cicatrizes
refazer o desenho da mão
redescobri-lo com água sabão
bons-dias
observar os novos desenhos
que a idade o trabalho o amor
traçaram
cuidar que não se percam
esses itinerários
esse carma
nada mais certo que o futuro

                          
                                Igor Zanoni
Liqudificadores


os antigos liquidificadores possuíam
um copo de vidro facilmente quebrável
nas lides da cozinha
volta meia o drama da dona de casa
era o belo copo de vidro quebrado
por isso as fábricas mandavam
como sobressalente
um tosco copo de alumínio
tosco e amassável
que acabava substituindo o anterior
hoje nem se pensa em liquidificador


                       Igor Zanoni
Loucura


segundo minha psi as pessoas
não adoecem em si
mas nos outros
sentem-se sós nos outros
deixam de ter diálogos
perdem-se na pensamentação
esquecem o dia
querem encontrar sentidos
quando eles estão nas relações
sempre mais rotas
e se vão


                     Igor Zanoni
Lua


separa-se a princípio de forma apocalíptica
cosmológica
como a Lua da Terra
depois se percebe a densa intimidade
a impossível distância
que passa-se a medir com as mãos
os pés a boca os olhos
e com os instrumentos mais casuais
ou mais imposíveis
o termômetro o Atlas Geográfico
o barômetro o sextante
o teorema de Pitágoras
procura-se depois dessas inúteis tentativas
compreensão consolo
lê-se muito ouvem-se os mestres
escuta-se música clássica e de meditação
as noites prolongam inutilmente a angústia
a escuridão é um vasto mar
no qual submarinos imprevistos
bombardeiam o porto que já não há
havia uma guerra?
alguém me passe o jornal de hoje
ficou lá fora na caixa de correio
que ladrões levaram
não há mais mensagens
as comunicações foram cortadas tenente
pelos índios sioux
e assim por diante passam quando passam
os dias notívagos as abomináveis aflições
mas lentamente o desejo de viver
inerente à carne
aproxima-nos quase diria redime-nos
quase diria resssuscita-nos
e a lua não se vai
gira com nossas marés
fielmente surge no céu
com os casacos e os violões





                                        Igor Zanoni

Lugares

em Campinas me recordo muito
da pizza do Giovanetti que meus pais
nos levavam nos domingos para almoçar
lembro também da Sears
um paraíso do consumo aonde papai ia só
mas que eu comecei a perceber cedo
lembro de ter-me perdido dele infinitas vezes
nas Lojas Americanas
paraíso do waffle com xarope
 e dos grandes sucessos que comecei a comprar
como os Beatles e eventualmente
Roberto Carlos ou Ronnie Von
mas eram passeios masculinos
mamãe não tinha tempo para sair eu acho


                            Igor Zanoni
Luxúria

a dor não é apenas dor
irradia-se tantas vezes
em luxúria insana
que nos toma e leva
por seus próprios caminhos
porque não temos paz
para viver a vida
não encontramos o seu centro
vazio e silente
buscamos ser felizes
onde está a felicidade?
dizemos que está ali
e nos jogamos
ou mais além
e nos jogamos de novo
como um bêbado que quer sempre
ver a lua
mesmo quando é luz nova
não temos paz para esperar
que ela se torne cheia


                                  Igor Zanoni
Luz


a metáfora da luz indica precisamente
a nitidez com que às vezes se percebe
a consistência do músculo
a propriedade do riso e da alegria
o desejo de que se é dono e não servo
a paz com que os olhos vêem cada coisa
em seu lugar originário
a branda suficiência de que não se faz alarde
antes se prega aos demais como seu dom
por exemplo estendendo a tigela
ou sentando feliz na grama de um parque
para descansar
essa é a luz do ser realizado
a aura que envolve a cabeça da Virgem
estranho os semitas pensarem
num anjo caído também feito de luz
estranha advertência
de que se pode transitar nos caminhos retos
mas também se perder


                              Igor Zanoni

Nenhum comentário:

Postar um comentário