terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Poemas novos 4

Psiqué

no oráculo de Delfos estava escrito
o mandamento que resume o Decálogo:
“Conhece a ti mesmo”
e o divino Sócrates sempre repetia:
“Uma vida não examinada
não vale a pena ser vivida”
nessa época Eros era percebido
enlaçado a Psique
e os seres humanos eram inteiros
amorosos e erotizados
o encanto que os gregos provocaram
em tantos artistas e pensadores
vem dessa autenticidade
dessa unidade do ser dividido
consigo mesmo
quando os conflitos cedem lugar
a uma paz clara e calorosa
que precisa ser acesa em nossa vida
não como luz para o caminho
mas como o próprio caminho

                                                          Igor Zanoni
Paciência

a paciência é a virtude
mais preciosa
ela extingue a raiva
a intolerância o rancor
concede perdão ao pior amotinado
recolhe pão para o vadio
ensina dez vezes
a mesma lição
sorri em nós quando erramos
também dez vezes

                                         Igor Zanoni
Paciência

1
lembro de uma rua
parecida com as do antigo Castelo
as casas novas de grades baixas
a cor branca ou creme
com pedaços de pedra como destaque
lembro que aqui morava Márcio
por que ele não fala nada?
talvez porque eu não saiba
o que ele diria hoje
lembro de meus irmãos
de Ito de Paulo Matthes
de Gérson e Gilmar andando de Kart
de onde me vem essa lembranças
um pouco inventadas?
decerto do inconsciente nos sonhos
tudo que se vive cai ali
e o que não se vive mas quer
o poço fabuloso
o claro e terrível labirinto
coletivo e particular

2
eu tenho paciência com você
porque você também vive
e outras coisas viverá

                                    Igor Zanoni
Pais da Pátria

sempre que se põe o eu no meio da sala
liga-se a máquina infernal
desejante
e passa-se a preferir isto àquilo
estes a aqueles
logo se torna necessário falar
em paz e justiça
e na necessidade da nossa presença no mundo
na necessidade que o mundo tem de nós
e graves nos concedemos direitos
fazemos discursos
e contamos anedotas e chistes
que nos repetem em todos os espelhos
infinitos e sábios
como um pai da pátria

                                              Igor Zanoni
Paisagem

eu não sei tomar
grandes decisões
nem dar grandes passos
ando com quem está em volta
e é raro que me adiante
ou me atrase
mas ás vezes preciso
caminhar sozinho
e sentir-me só para pensar
e esperar
esses são momentos
de retiro em mim mesmo
aos poucos me movo outra vez
mas já em outra paisagem

                                                       Igor Zanoni
Paisagem e escolha

1
a análise não elimina o sofrimento
antes torna o sofrimento inarticulado
articulado e por isso até certo ponto
manejável
o que está no corpo sobe à mente
as emoções destrutivas
tornam-se menos terríveis
menos assombrosas
uma parte do sofrimento se vai
dessa forma
mas ninguém pode encontrar
nenhuma transcendência aí
a análise é uma cartografia
logo terrestre colada ao chão
mas não evita o chão

2
conhecer a paisagem em que se vive
permite ser livre para escolher melhor
a paisagem em que se vive
a muitos sofrimentos se pode por fim
mas nunca ao fato de se permanecer
humano

                                                 Igor Zanoni
Paixões

1
a paixão cega
a dor muda
as emoções sempre são
carecimentos

2
minha cama está sempre quente
de noite durmo nela
de dia dorme meu gato

3
muitas personagens do cinema
foram poderosas como Lara Croft
mas eu sempre preferi a Princesa Léia

                              Igor Zanoni
Paixões e interesses

1
ao contrário do que pensava
nos primórdios da industrialização
o severo professor de moral Adam Smith
as paixões sempre sobrelevam
o sereno amor próprio
quem busca o amor próprio investe
nas paixões adiadas

2
o século XXI promete a satisfação
de todas as paixões a todos
mini carros sexo que faz sofrer
todos os êxtases todas as inimizades
fim previsível da vida
vive-se a vida buscando a morte

                                           Igor Zanoni
Palavra

o sujeito da frase deveria pensar
será que ela é verdadeira?
será que traduz bem meus pensamentos?
o que Maria ganha com isso?
a que buraco isso acaba nos levando?
estou comprometido com que valores
quando me exprimo assim ?
se os sujeitos pensassem antes de falar
a verdade seria mais valiosa
o mal estar menor
e os valores utilitários revelariam
sua hipocrisia e inutilidade
do que o mundo foi feito?
da palavra
há sempre uma insossa falta de certeza
no que o sujeito anda falando
e passa a vida desfazendo
o nosso velho mundo

                                          Igor Zanoni
Palavras

ficamos nós apalavrados
nesse negócio
os advogados não necessitam
ser tão palavrosos
esse professor não sabe o que dizer
e faz esse palavrório
não vou tomar seu tempo
quero só uma palavrinha com você
a Bíblia é a palavra de Deus 
o próprio Cristo tomou a forma
de uma Palavra
há palavras santas
não tomarás seu nome em vão
há pessoas sem palavra
e há palavras que ficam garantidas
por um fio da barba ou aperto de mão

                                              Igor Zanoni
Palavras do lama

amem sejam felizes
depois se separem se for preciso
sofram
é melhor aprender logo
o sofrimento a impermanência
o carma
mas todos o tempo lembrem
de seus pés no Ganges
de que a vida humana é preciosa
sobretudo por permitir
perceber o fluir do rio
em seu samsara

                           Igor Zanoni

                                       
Palha

tantas vezes o mundo é fechado
e opaco
a casa fica pesada
e nenhuma liberdade toca
o coração sobressaltado
suspira-se respira-se fundo
nunca se falou tanto em liberdade
como neste tempo imprevisível
no qual há poucos caminhos
mas `as vezes sente-se uma estranha paz
não esperamos nada
mas o diafragma se solta
o bom humor volta
os olhos ficam menos arregalados
e no entanto em uma palha
se mexeu no mundo

                                                        Igor Zanoni
Palhacinho

trata-se de um palhacinho
com um diploma e currículo
assim como o Chaplin dado a coisas sérias
(conversar com Gandhi
ou fabular a condição operária)
como artista também um pouco insone
e boêmio
dado a pilequinhos sem as convenções
de dias nos quais pode beber
pois não correrá o risco de se atrasar
ao trabalhar
com impulsos de adquirir um glamour universitário
ao mesmo tempo que seu caminho
está cheio de encontrões com ursos
malabaristas da vida
um tanto pobres
um tanto artistas
um pouco difíceis apesar do riso
o palhacinho assim anda no palco
e na vida
em muitas direções
não muito longe ainda em nenhuma
mas já que é de desejos que trata a vida
o que é mesmo que ele deseja ?

                                                 Igor Zanoni
Palhaços

aos palhaços não cabe
a nossa grosseria
antes devemos vê-los
em toda a sua delicadeza
de homens feitos que sabem ver
nosso lado falso risível
e demasiado humano
fazer os outros sorrirem exige
trabalhos e perigos
sobretudo em um mundo
que pede força e grosseria
em cada gesto cotidiano
os palhaços genuínos
têm por vocação não corroborar
o mundo
antes se esquecem de propósito
em suas falhas e desvãos
de onde nos vêem com seus olhos
pintados suas roupas estudadas
seus truques absurdos
 inesperados
indicando os pontos cegos
de nossa vida tão desencantada

                                               Igor Zanoni

Pallio

1
talvez por uma vida de trabalho
em pé e muita carne no prato
este homem tem as pernas roxas
quase perto dos chinelos
com a blusa aberta
espera diante da padaria
o frango de domingo
as chaves do Pallio
sacudindo nas mãos

2
em todas as esquinas os velhos
conversam bem cedo
sobre as notícias
tal como as compreendem
nos bairros pobres as pessoas
andam nas ruas
ainda mais nesse calor

                                                 Igor Zanoni
Palma

você me deixa na (palma de sua) mão

                                                    Igor Zanoni
Pane

a gravidade da Terra mantém
unida a sua superfície uma camada
de alguns quilômetros da ar
na qual podemos experimentar
o saudável ar marinho se temos asma
ou purificar o corpo subindo a montanha
no caso de uma tuberculose
podemos também nos movimentar
para mais alto se desejamos
encontrar a paz gelada do Himalaia
e seus yogues maravilhosos
ou andar pela rua de casa
em paz com nosso cotidiano
buscando pão às quatro
e as crianças na escola às seis
às vezes faz sol às vezes não
mas esse ar quando abrimos o diafragma
alimenta um processo de combustão
de alimentos que gera energia
para esse nosso corpo tão antigo
fazer das suas
o problema é quando a tensão
impede de abrirmos o diafragma
como se caíssemos de um avião
e o pára-quedas não abrisse
mas ar não falta
a pane é nossa
o diafragma é bom ainda
há alguma coisa por explicar

                                          Igor Zanoni
Papai
no longo tempo em que convivemos
jamais deixei de perscrutar a ações de papai
as que eu podia ver
que eram do domínio de toda família
posso dizer como seu filho mais velho
que ele foi  o homem com que mais me identifiquei
que quis ao mesmo tempo  ser também
e desprezar
certos momentos se realçam como aquele
em que foi chamado para prontidão no quartel
por causa da morte de Kennedy
papai nada falou mas intui sua angústia
nesse momento percebi que éramos mortais
minha garganta como se fechou
e cantei com exaltação o hino que cantávamos
em um por do sol de sexta-feira
cantei para papai que era maestro
e sempre dizia que eu era desafinado
mas cantei sobretudo para mim
                                                     Igor Zanoni
 Para a dor cessar

relaxe no que acontece
que o dia não passe
sem estar completo
cada sentimento mantido
por tempo demais
sufoca os sentimentos
que poderiam ajudar
a suportá-lo com paz
não diga nunca mais
diga “com a ajuda do céu
um pouco menos de cada vez
este duro vir e voltar!”
sacuda o céu
bata na sua porta
até se abrir
e a dor cessar

                                               Igor Zanoni
Para que nada se perdesse

houve um momento no qual
para que nada se perdesse
o essencial começou a ser escrito
surgiram os códigos legais
as prescrições rituais a cosmogonia
a teogonia as primeiras perguntas
científicas e lógicas
os poemas e as lembranças
coletivas que se articulavam
com os trabalhos de todos os dias
as formas de propriedade
e de distribuição do produzido
mas a natureza humana ainda não era
a sua atividade
era antes o logos
quem sabe o que era antes disso?
rituais minuciosos e reparadores
que continham em limites as discórdias
também era o tao o inefável
acerca do qual surgiram lendas
a alquimia a vida retirada
mas hoje isto é história de especialistas
mesmo o trabalho mais alienado
se furta não há significado algum
que preencha sua fome de significado
hoje para que nada se perca
é preciso recomeçar a dizer bom dia
a perguntar pela família
a fazer as perguntas antes inconvenientes
do nosso dia a dia que se acumula
em pesares e tolices
bárbaros continentes de miséria e hipocrisia
primaveras fanadas
o mecanismo incompreensível das horas
jornais fotos noticiários
que ao nada dizerem expressam
esses dias que se perdem sem remédio
sem compreensão
sem atos decisivos
sem a nostalgia que possa ser um guia
para os sonhos e a reconstituição
do que poderia ter sido



                                             Igor Zanoni
Paraíso

quando alguém dirá
presente estou aqui
ao lado dos meus outros
que partem e retornam a mim
como um universo
enfim encontrado
a crosta das palavras
retorce seus sentidos
quando haverá alguém
cujas palavras abarquem
todo o tempo
e nossa vida se diga
enfim sou e és
como um paraíso reencontrado?

                                        Igor Zanoni
Paredes

1
se não tiver co quem falar
fale ao menos com as paredes

2
se você está triste
tão triste
sua tristeza marítima reluz
em copos translúcidos de cerveja
ou de ponches de rum
leia Moby Dick
aprenda com o Capitão Ahab
você não pode vencer a literatura americana
marujo!

3
leia Paul Auster que é cômico
e lúcido
tão liberal e tão de esquerda
percebe-se que não vale a pena
explodir a Ilha de Mannhattan

4
sonhei que comprava armas para matar ratos
depois censurei o sonho e dormindo passei
a comprar rojões
mas sempre para matar ratos

                                                Igor Zanoni
Paredes
amamos queremos
entre paredes surdas
perdemos a paciência
deixamos tudo para trás
mas não havia muito a deixar
paredes surdas
que não podiam responder
ao que não ouviam
por isso muitos dizem
parece que estou falando
com as paredes

                                               Igor Zanoni
Paróquia Santa Mãe da Igreja

no altar há um enorme Cristo de madeira
os músculos torcidos revelando
a dor do seu eterno sacrifício
também fazemos o nosso sacrifício
quando participamos da comunhão
mas nunca entendi em que ele consiste
a eucaristia é uma magia
comemos e os pecados se evaporam
somos um com todo o corpo de Cristo
os homens por toda parte
há freis que sorriem
os mais velhos e reservados nunca
apenas nos dão lição de moral
no muro da igreja há um pensamento:
“Deus sem você é Deus
e você sem Deus o que é?”
meu filho acha profunda a frase
eu não sei bem quem é Deus
ou quem sou eu
há muitos jovens que doam seu ardor
a ajudas na igreja
cantam e tocam nas missas
catequisam crianças
fazem festas caipiras e retiros de jovens
mas infelizmente nunca entendi bem a missa
ou que acontece na igreja
acho que o ímpeto civilizador dos jesuítas
já não tem lugar
e as pessoas se contentam com coisas
como eucaristia e novenas sem fim
das quais nunca tive coragem de participar

                                               Igor Zanoni
Páscoa

na minha casa de muitos irmãos
a Páscoa era comemorada com rigor
com a alegria do Natal e dos aniversários
ganhávamos muitos chocolates
ovos pequenos e médios
 dentro de outros maiores
ou ovos com brinquedos
sempre da pequena loja da Kopenhague
no velho centro de Campinas
trazíamos da Escola Dominical
cartazes com coelhinhos coloridos
cobertos com mechas de algodão
fazíamos cestas de cartolina enfeitadas
onde púnhamos os ovos menores
não sei se chocolates eram mais baratos
talvez tivéssemos menos do que comprar
mas durante semanas escondíamos uns dos outros
o que não comíamos em dois ou três dias
havia quase um desafio entre a gula
e o feito de ainda ter chocolate na gaveta
passamos essa tradição a nossos filhos
preparávamos durante duas semanas
os apetrechos do Domingo
mas aos poucos os ovos já eram piores
mais vistosos mas menos saborosos
lembrando as tristes esteiras
que os operários da Kraft entrentam
sem alegria todos os dias

                                                                  Igor Zanoni
Passarinhos

na manhã sem quintais
passarinhos cantam
sobre os muros
passarinho precisa de pouco
e em sua ingenuidade
vem quase até meus pés
nas calçadas
passarinhos urbanos
relembram a frugalidade
de um padre franciscano
entre essas paredes e muros
eu sigo minha vida em labirintos
e mal entendo passarinhos

                               Igor Zanoni
Passarinhos

há quem melhore com o tempo
a mior parte fica mais atenta
a meia dúzia de interesses
além de perder a graça e a beleza
que os jovens têm
as pessoas deviam ser passarinhos
parecem sempre os mesmos
de nossa infância
mal se nota entre dois deles
qual deles é o pardal
e qual o pardal
tal a sua pardalice

                                         Igor Zanoni

Passarinhos

mesmo em Curitiba
na qual nenhum terreno é poupado
para se fazer uma praça ou campinhos de futebol
ou brincadeiras como mascar erva doce
e atirar bagos de mamona
nascem esquilos e tatus
e uma infinidade de pássaros que eu não via
desde menino cortam meus passos nas calçadas
há muito esqueci seus nomes
mas há tico-ticos pequeninos sabiás aos montes
quero-queros  tizius semprepróximos
de onde estamos
sem medo
mais adaptados à cidade que eu mesmo
como pode um homem de mais de cinqüenta
adaptar-se a uma cidade moderna?
nenhum silêncio nenhum campo aberto
nenhum horizonte nenhum vento fresco
de que vivem os pássaros?

                                       Para Ivone
                                         Igor Zanoni
Pássaros

as igrejas do bairro estão comovidas
pela chuva de pássaros mortos
e pela morte de peixes
em vários lugares do mundo
citam Oseias 4:1-3:
 "A erra se lamenta e tudo o que nela há desfalece,
 juntamente com os animais do campo e com as aves do céu;
e até os peixes do mar perecem"
dixit
na verdade parece que estamos todos
tão inseguros em nossas vidas
que já não a explicamos
esperamos que alguém superior
esteja no controle
e que se aproxima a hora da redenção
dos humilhados e ofendidos

                                                    Igor Zanoni





Pássaros não nascem sabendo

é tolice dizer
que os pássaros nascem sabendo
como são as manhãs
eles aprendem não sem impaciência
a sua maneira de ser pássaro
entre os outros do seu grupo
(eu poderia dizer família tribo clã?)
mas decerto sentem quando
a madrugada mal se insinua
o frêmito do vento a mudança
da temperatura e sentem receio
quando os pássaros todos se lançam
na azáfama do dia que virá
todas as manhãs serão vividas
e aprimoradas até aquela perfeição
de pássaro que alguns pássaros superam
no céu interior e coletivo de todos eles
em cada lugar em cada clima
eles inscrevem uma história natural(?)
vivida aprendida trabalhada
em cada manhã
como nós mesmos vivemos
e de modo algum esquecemos
cada dia que o Céu nos dá
 que temos de preparar em seu rigor
e dar em herança ao futuro
devolvendo-o acrescentado ao Céu

                                                    Igor Zanoni
Passos dados

tentar caminhar sobre os passos dados
é fazer uma viagem ilusória
metade de tudo é sentido
metade é acaso e constrangimento
tentar reviver o que passou
é fantasiar a incoerência
ficam de fora os atos alheios
a vontade perdida
a mudança de perspectivas
quando as frutas amadurecem na mesa
podem evitar o cheiro de mel e de morte?
metade da vida é caminho
metade obscurecimento
pode-se observar os sonhos
analisar fotos antigas
cartas contextos
tudo é itinerário de palavras
metade esquecidas
metade escolhidas a dedo
andar para trás ou para a frente
é fazer a mesma viagem
em tudo o olvido
em tudo a perda
a vontade que nos toca
como uma falsa liberdade

                                                        Igor Zanoni
Patíbulo

as gentes não perdoam nos outros
os erros que todos cometem
eu mesmo também me perdoei
outros erros não pude
um homem pode ser às vezes vil
e mesmo assim honesto
muitos erros paguei
outros não
não sei ao certo por quê
mas me ficaram remorsos
que o tempo e o esquecimento
felizmente levam
nestes tempos sem fé
mas de rei e lei
muitos morrem sobre um patíbulo
porém até aqui escapei

                                                Igor Zanoni

Paul Auster

as histórias curtas e reais de Paul Auster
são despidas de intensidades emocionais
as coisas acontecem um pouco casualmente
por exemplo enquanto ele procura cigarros
correm em torno dos achados e perdidos
da vida de um homem cosmopolita
mas um pouco como nós
modesto sem dinheiro
casando e se separando
buscando o filho em algum lugar
ou indo a um jogo de basebol
é o bastante para fazer delas companhias ideais
para o dia a dia em ônibus lotados
ou antes de fazer qualquer coisa tensa
ele não gosta de gabar-se de nada
apenas escreve uma prosa moderna
e tênuemente amalucada como todos nós

                                        Igor Zanoni
Paz
muitos dentre de nós buscam paz
nos rituais solenes e inquebrantáveis
cobertos pela pátina dos andores
dos santos martirizados
das túnicas alvas dos turíbulos e incensórios
nos padres jovens cantores
cheios de meio sorrisos
enquanto as mãos dançam no ritmo
das novenas que atraem tudo que é vivo
transformado em uma litania
que se torna a própria vida
mas sem referência a esta vida
a este corpo a estas emoções
viva tudo que nos extingue
nos cerca encanta seduz
em miragens familiares e rituais
com gosto de balas de alcaçuz 

                                    Igor Zanoni
Peçamos por Sua mão

contra a política de alianças
diante de inimigos externos
Isaias retomou a tese de que Iahweh
é o verdadeiro refúgio
que Ele conduz a história
como aceitar isto hoje
quando o mundo parece ir tão mal?
onde está a mão de Iahweh
mas por outro lado onde está
o nosso coração
com quem fazemos alianças?
contra quem os poderosos
da nação e do mundo tramam?
porque também o esquecimento
do Senhor conduz nossa vida
coletiva e pessoal
por caminhos desertos pisamos
pelo vale sombrio
peçamos de novo por Sua mão!
renovemos nossa confiança

                                         Igor Zanoni
Pedra

quando fuma uma pedra
não se sabe por quê
fica violento bate nos pais
quando sai à noite já se sabe
a mãe tranca a porta da rua
e ele acaba dormindo no carro
quase não fala
mas se veste bem
lava obsessivamente o seu Fiat
sua viagem começou há tempo
cumprimenta os vizinhos
é gentil
mas quase esqueceu as palavras
cotidianas dos outros

                                        Igor Zanoni
Peixe

1
quantos anos vive um peixinho beta?
tenho um há dois anos
sozinho em um pequenino aquário
dizem que são muito ferozes
mas o meu no momento não se mexe
nem bolhinhas de sua respiração se vêem
parece uma folha azul
se a água não fosse um pouco turva
pareceria estar no ar imóvel
como o ar não pode ser

2
no box vejo sempre na hora do banho
uma pequena aranha
em suas teias invisíveis
parecendo estar no ar
não sei como apareceu por lá
o que encontra para viver
na umidade do banheiro
precisa comer pouco
pois seu corpo é exíguo e leve

3
em Curitiba quase não há lagartixas
e as que aparecem são pequenas
lembro-me das roliças lagartixas
de Campinas
lépidas
 ás vezes imóveis
passando a tarde quente
no frescor da parede

                                          Igor Zanoni

Peixes

calei-me com os peixes
em seu corpo vibrátil
atento a cada sensação da água
do sol do vento
calei-me com os pássaros
que extenuam-se cruzando
o Mediterrâneo
e precisam guardar energia
estar atento ao vento
ao sol à terra distante
tudo no mundo se cala
quando é necessário viver
e viver nos exige todos
inteiros
há pessoas simples que teriam
muito a dizer
mas silenciam por anos
meditando sobre seus ventos
suas energias interiores
ali encontram budas
e dakinis
mas quando voltam sabem melhor
cruzar as pontes entre os seres
sabem ser cada vez mais vastos
para chegar antes e gritar
por aqui se cruza o rio
e nos dão as mãos sorrindo

                                          Igor Zanoni
Pele

por todos os poros de nossa pele
a sociedade brota
o inexato verbo denota
a insistência de tudo que é vivo
em ocupar o menor espaço
e insistir com a veemência da vida
melhor dizer que por todos os poros
a sociedade nos penetra e corrói

                                    Igor Zanoni
Pelé Eterno

um dia fui conversando com um taxista
sobre a carreira do Pelé
que ele admirava muito
aprendi muita coisa na breve viagem
mas o melhor é que no dia de véspera do Natal
ele deixou em casa um DVD
com o Pelé Eterno
seria um efeito um pouco excessivo
 da comoção do Natal
ou ele era um fanático por futebol
e me viu como aliado
no Natal e na sua pira?
eu o vi poucas vezes
jamais imaginaria essa bondade humana
não pude retribuir
exceto com o carinho que todo santista
tem por Pelé
apesar dele ser um pouco genuflexo
confesso que penso isso
mas o melhor é que no meu Natal
ele representou o veículo
para o companheirismo incomum
em Curitiba
simples um gesto sincero sem retorno esperado
exceto multiplicar os admiradores do Rei
quem sabe

                                       Igor Zanoni
Pelicanos

eu não queria falar no velho ramerrão
quando hoje cedo no centro
olhando para o alto vi acima dos grandes prédios
três magníficos pelicanos
não sei se vindo de algum parque
ou em desconhecida migração
o longo corpo alvo o longuibico róseo
as longuipernas estendidas para trás
se não tivesse olhado para o alto
não os teria visto e falaria do velho ramerrão
ou me calaria
mas vi três alvipelicanos no altiplano de Curitiba
e deles dou parca conta

                                         Igor Zanoni
Penhor

granizos rompem a madrugada
telhados de vidro desmancham-se
sobre o quarto
palavras cortam pulsos
o diafragma se contrai
o ar que cerca a terra
não chega até o corpo ferido
inúteis os socorros
inúteis os gestos procurando
procurando
não sabem o quê
e no entanto um dia houve
o amor o desejo
penhor não resgatado
e para sempre perdido

                                                   Igor Zanoni
Pensamentos


1
há o puro e o limpo
cimento fresco
bolo saído do forno
a massa do pão fermentando
mas não procurem isso
no pedreiro que faz a argamassa
nem no padeiro
em seu labor madrugador
os homens aprenderam a conhecer
o bem e o mal
mas não julgue onde eles estão
em cada um
talvez ele mesmo não saiba

2
há uma solidariedade humana
no bem e no mal
ou seria impossível a vida
a ficção do bom selvagem
foi um andaime
para compreender a cultura
nela nos situamos
sempre com alguma liberdade
e inerente ambigüidade
na nossa vida comum

                                                          Igor Zanoni
Pensamos

pensamos absortos
sequer nos damos conta
discutimos os prós e os contras
suspendemos a questão
voltamos-nos para outra
mais candente
em um certo momento acordamos
desse sonho em vigília
que nos sonhou tão silente
desde que nascemos pensamos
difícil é acordar
e contemplar esse trabalho
organizá-lo perceber suas leis
falar já é mentir
já não é um fazer só
 íntimo e corrente
prazer do corpo se enrolando
no mundo e em si mesmo
como um rio que vai
tão de si inconsciente

                                                                Igor Zanoni
                             
Pensativo

1
conta-se que pensativo
Sócrates parou frente à praça
e ali passou a noite
sem mudar a postura
ao nascer a manhã saudou Asclépio
e foi para casa
mas poucos hoje acham que pensar
é boa medicina

2
quando as companhias
 municipal e estadual de habitação popular
falham e falham o sistema de esgoto
e o combate ao lixo e à poluição
quando falha a distribuição de renda
e se fecha a fronteira no campo e na cidade
quando chove demais os governos
mandam os bombeiros
remover os entulhos em busca de noticiário

3
se você não é católico
mas tem uma religião
já está ótimo
o importante é que ninguém pode viver
sem acreditar em alguma coisa


                                                     Igor Zanoni
Pequena

o que posso fazer se sou
tão pequena
e a vida escura como uma
floresta?
ficar quietinha
só chamar a atenção
quando vierem meus
pequenos surtos
pintar o quarto pintar
o sete
e depois o oito o nove
quem sabe

                                               Igor Zanoni
Pequenas flores

pequenas flores pálidas
parecem florir com as borboletas
ressuscitar com elas de seu inverno
borboletas são flores
suas bocas se encontram entre a fome
a ânsia natural de preparar
novas primaveras
seu alimento são pétalas asas amarelas
quem precisa delas?
e no entanto vivem
em seu modo delicado e originário

                                         Igor Zanoni
Pequenas pessoas

pequenas pessoas fazem um itinerário
de entrar nas discussões momentosas
com trabalho duro mesmo que precário
dividem bem o tempo
fazem contatos como podem
disputam eleições até para síndico
ou conselhos de classe
tornam-se amigos de políticos
e quando já maduros são conhecidos na cidade
têm um patrimônio a garanti-los
do mau salário pago onde trabalham
têm um pequeno nome a zelar
que desperta o riso dos superiores
fazer essa trajetória nasce de se desconhecer
a nossa real felicidade e natureza íntima
essas são próteses de pessoas
orgulho da cidade
mediocridades indispensáveis a  pátria

                                                            Igor Zanoni


Pequenos

quando se é muito pequeno
não há formas de acomodar
o que se vê o que é sentido
quando estes rompem o cotidiano
por isso os muito pequenos
andam um pouco às tontas
como quem recebe um flash
nos olhos
e depois emudecem
guardando na caverna de sua mente
as primeiras sombras
do mundo

                                   Igor Zanoni
Perdas e ganhos

todos os gestos humanos
falam de uma vitalidade ancestral
que o mundo nega ou negocia
com ágios de usurário
todos os atos falam de uma angústia
de uma corrente contida
dos dias insolváveis
todos os seres buscam a si mesmos
buscam os outros
todos querem suas fontes obscuras
cuja localização
o mapa do mundo ocultou
todos somos o que não somos
e a vida é perdas e ganhos


                                                  Igor Zanoni
Perdoar

não se perdoa por que se compreende
perdoar e compreender
são duas diversas dimensões
do espírito
perdoa-se porque somos humanos
e quem é humano é cindido
sós os que se julgam
os melhores dentre nós
são íntegros e acusam nossas faltas
quais são as nossas faltas
acaso sabemos?
quem ama não se pergunta tais coisas
ama e faz o que quer como em Agostinho
o que reduz a vontade
a sua suave contemplação das coisas

                                   Igor Zanoni
Perdoar

pode-se por no lugar de outra pessoa
desenvolver com o tempo
uma compreensão de seus sentimentos
e amar sem desculpar
mas pondo-se ao lado
ombro a ombro
como duas pessoas que se conhecem
e querem bem
mas se não for possível compreender
é possível perdoar
é possível esquecer
e ir adiante
se também isto for demais para nós
podemos pedir para alguém
perdoar por nós
e cuidadosos retomar a vida

                                    Igor Zanoni
Perguntas

muitas vezes mais importante
que saber as respostas certas
é conhecer as perguntas adequadas
ou saber como puderam
tais perguntas e respostas
serem formuladas

                                                        Igor Zanoni
Perímetro

a questão é como não se impacientar
neste pequeno perímetro
em que podemos circular
com as suas relações constitutivas
que precisamos aceitar
mas inevitavelmente desconstruir
com o riso a inquietude
pois é como se quiséssemos fazer de nós
algo que não sabemos bem o que é
e precisamos para isso de trabalho
cotidiano paixão e paciência
no conteúdo sombrio desse espaço
como se quiséssemos falar outra língua
em que se exprimisse a beleza e a verdade
mas toda as línguas conhecidas
só dessem conta do terrível
da nossa humana condição
e então sonhamos sós ou em pequenos grupos
e à noite saímos como ratos
para a noite com pequenas lanternas
buscando a passagem secreta
onde depositaremos como heróis
o prêmio secreto de nossa vida


                                        Igor Zanoni
Pernas pro Ar

quando a diarista limpa
a casa
até os santos ficam
de pernas pro ar

                                                            Igor Zanoni
Pérola azul

nos dias de inverno
brilha um sol pálido
e funéreo
os olhos se tornam oblíquos
com o vento das frestas
e a cidade relembra
em sua alma partida
os dias em que se vestia
um casaco
para catar galhos para o fogão
na janela da sala espreita
a pérola azul
do olho do gato

                                       Igor Zanoni
Personalidade

há pessoas que apenas
 por sua personalidade são dominadoras
mas em seu íntimo dependem
de outra figura á qual atribuem
seu domínio e sua força
e se esta figura lhes falta
o chão desaparece sob os pés
estas pessoas às vezes belas
como de olhos verdes
e força aparentemente inumana
são marcadas por uma trajetória trágica
pois o fracasso as ronda
a desdita as espreita
ainda que sejam honradas e justas
como o mundo não é
e morrem a partir de seus sentimentos
não esclarecidos e poderosos
por exemplo por seu pai ou mãe
assim é desde o início do mundo
mas sempre terrível
embora se repita aos nossos olhos
amorosos e sem poder

                                                     Igor Zanoni
Perto

1
amar significa proximidade
e carinho
mas cada um entende essas palavras
como pode
alguém fica calado
andando em volta
e fazendo isto e aquilo
mas é seu modo de estar conosco

2
uma pessoa sem jeito para formalidades
fui a um velório e para todos que encontrava
dizia “sinto muito”
porque achei que não se usava mais
“meus pêsames”
mas fui terrivelmente sincero
embora ridículo

                                                 Igor Zanoni

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