sábado, 12 de fevereiro de 2011

Catálogo de Poemas

Igor Zanoni Carneiro Leão








Catálogo de Poemas
Curitiba, 2006
Catálogo de poemas

Este e-book reúne poemas escritos entre 2002 e 2003. Foram anos marcados pela minha separação da Estelita que se confirmava, pela enfermidade da Nádia, mas também pela atenta e delicada presença de Josilene, com quem fazia terapia. Outros amigos importantes foram Osni, com quem conversei em momentos críticos, sempre buscando sua sabedoria. Nessa época conheci também Rosana, uma pessoa cuja importância futura eu não avaliava, e meu filho Gabriel tornava mais firme sua relação com a Ale. Como se pode ver meus melhores amigos são mulheres, talvez por um motivo simples que a Nádia salientou um dia: as mulheres conversam. São também mais informais e criativas, e agradeço a todas as que citei na forma desses poemas. Tive também amigos caros, como Mariano, Demian e Tiago, pessoas fortes, às vezes fortes demais para mim. Mas meus maiores amigos são meus filhos. Como um pai inveterado, construí uma concha com meus filhos, meus amigos, defendendo-me do mundo ou pelo menos dosando minha exposição a ele. Mais tarde surgiriam outras figuras muito queridas, mas estas ficaram. Estes poemas são assim extremamente pessoais e graças a isso tornaram-se, em geral, leves e até engraçados. Isso foi bom para uma pessoa que viveu tantos momentos deprimentes ao longo da vida. Agradeço a Ednilson Pedroso, ao Bruno e ao Lucas por digitarem e organizarem este livrinho, que pode ser passado adiante sem problema.
O anjo apoia a mão sobre o seu ombro esquerdo
Suas madeixas louras 
caem sobre a gola da sua camisa
E seu olhar sereno olha adiante
Para onde você não pode olhar
Você pensa num banho quente e num café
Recomeça a fazer seus planos para a semana
Vai aos poucos relaxando o corpo
E pensa que a tormenta será uma memória perene
Mas suportável
Algo a ser ensinado
A ser devagar aprendido por você mesmo                 
Com um suspiro você se volta para o anjo
E ele felizmente não segura mais o seu ombro


Paulo

Se ele não houvesse andado comigo
Eu não saberia dizer o que te digo
Ainda que duvido ter compreendido
Tudo e bem
Ele não me ocultou nada
Mas nem sempre se vê e escuta
Mesmo quando se entrega todo
A um amor que todavia
É inexato
E então eu começo a sonhar
E nos melhores dias a crer
Pois se sente feliz quem tem fé
Se viu alguma coisa
E se não viu melhor ainda
Sempre se interpreta
Às vezes quando não se pressente
A presença dele em tudo em volta
Como antes
Melhor não dar adeus
Esperar que outra vez retorne
E ande conosco
Quando o amor está distante
Ainda a esperança deve ser
Viva e inequívoca






Anna Luisa

Vamos nos encontrar de novo em abril
Quando já estiver longe o tórrido descanso
E também distante o pálido inverno
Vamos nos encontrar no meio de setembro
Quando tivermos corrigido as primeiras provas
Mas se não pudermos contar logo com as férias
Talvez tenhamos um tempo curto entre o oásis e o deserto
Talvez tenhamos um do outro uma imagem
Que não se destaca tão cedo como acalentada miragem
E eu te seja leve e apressado
Com mais mãos do que palavras
Com mais gentis bom-dias
Do que tantos livros para ler e nunca lidos
Quando você estiver no meio do corredor
 Eu passarei discreto ao teu lado
Indicando com o dedo que o café
Já foi passado


De um poema de Heine

Eu e minha esposinha
Trouxemos para o mesmo lar
Nossos retratos de infância
Nossas receitas de pão
Nossa comemoração de natal
Trouxemos nossos poemas mais queridos
E nossa canção para acalentar as noites de inverno
Tudo trouxemos
Nossos planos para o longo futuro
Nossas tantas infelicidades
Tudo trouxemos
Como se tivéssemos trazido tudo


Tudo isso eu digo com palavras
que por assim dizer são suas
Pertencem ao seu modo de entender
O mundo
Mas não deixo de fazer um esforço
No sentido da sinceridade para comigo
Eu quero dizer algo  de mim que você não sabe
E é nesse limite em contínua construção
Que se move uma amizade


Talvez seja um poeta
Ou um filósofo
Ou um matemático
Se ele for sincero e profundo
Talvez não seja também encantador
Mas quebre encantos
Um verso uma equação
Um aforismo
Podem conter da mesma maneira
A sinceridade e a profundidade
E falar de quase que para você
É tudo
E também para ele


Ela se aproximou com leveza
E disse estar decepcionada
Este é bom sinal pensei
A certeza não espera sempre desilusão
Espera das pessoas o que lhe convém
Sinceridade relações recíprocas
Ela se aproximou com segurança
A sua decepção lhe deu autoridade
Falou comigo como uma igual
Apesar da tristeza
Como é que o senhor faz isso comigo?
Fiquei muito sentido
Que sorte


Todos os dias você examina
Antes de adormecer
As imagens do dia
Separadas uma a uma e ligadas com uma fita
Para que não as sonhe
Nada mais árduo e vão
Melhor procurar uma ervilha
Sob os colchões de uma princesinha










A busca do silêncio
Tem um evidente aspecto negativo
Quem cala não diz nada
Mas deixa de contar as velhas estórias
Pode também ouvir melhor
E ver mais
Ser humano não é ser o tempo todo
Vaidoso
Nem o tempo todo conta-se
Na forma pretendida
E na medida justa
Pode ser repouso
Como a folha da grama em si
Repousa
Quando o sol bate
E criam juntos a tarde


Difícil é o quedar tranqüilo
Quando não se espera ser isto
Tão necessário
E a raiva esquece o penoso preparo
Para emergências a disposição que se julgava
Tão consumada
De fixar tardes onde só se mova
O sol das persianas sobre escassa ventura
O desejo de que a casa toda seja sem sustos
Seja antes o dicionário vivo de coisas antigas
Poços varandas pêndulos roseiras
Ou antes atemporais ou nunca de fato vividas
Que vivido foi apenas o desejo
De encontrar no mundo
A concha de uma necessidade
Sabemos há muito que é preciso construi-la
Assim nascem os natais
Mas pensávamos que já a havíamos construído
E ei-la em pedaços











Se há tristeza e pesar
Em teu coração
Se em teu rosto um rio corre
Doloroso e vão
Se há tormente em teu peito
Dor e aflição
Deixa a luz do céu entrar

Deixa a luz do céu entrar (bis)
Abre a porta e a janela do teu coração 
Peça ajuda a luz do céu
Vai  te ajudar


Não tente estar certa
De que sua vida está em ordem
Contando sobre as minhas anedotas velhas
Eu aceito com sincero interesse
Observações pessoais
Sobre ciosas que me escapariam
Mas até essas coisas envelhecem
E embora nem sempre mudam
Eu nunca gostei de rever pessoas
Ansiosas em saber
Que não perderam nada
No tempo que passou
Muitas vezes perdem
Já se disse que viver é perder amigos
Mas esta é uma arte
Que a sabedoria pode evitar


Quem ama e lê poesia
Precisa ir ao dentista
Ao médico fazer exercícios diários
Manter o bom nome na praça
Amar o próximo se for possível
Procurar trabalho se houver
Quem ama e lê poesia
Não compra e vende ilusões
Mas nada mais ilusório dizer
Melhor o bom nome
E a bela aparência
Que amar e ler poesia




Quando o dia parecer escuro
E o caminho longo e mau
Quando você não encontrar um amigo
Que agüente a sua choradeira
Se Canaã estiver longe
Se o dinheiro estiver curtíssimo
Não procure nos classificados
Não procure umas moedas para ir à Igreja
Não tente ser mais forte do que é
Peça arrego
Há sempre alguém sonhando com alguém
Mesmo que seja com você


Do lado esquerdo da porta do quarto
Perto do dossel da cama
Sobre o tapete rosa
Você poderá ver os seus sapatinhos
Azuis e suaves
Mas no qual você não põe
Os pés


Mesmo na mais breve conversa
Percebe-se logo a intransigência
Estou em déficit você em superávit
Vamos acertar as contas
Quando um quer paz a qualquer preço
E o outro se faz de rogado
Deixa as contas de lado
Desiste: com você não tem negócio
Quando as diferenças se apagam
Na abstração do valor
Façam seus jogos
O lance de dados livra quem tem razão
Com um não bebe com outro não fala
Se for poeta outros põe no Inferno
Mas pior é aquele com quem
Você não joga









É claro que a manhã não se faz
Pela rotação antiga de nosso antigo planeta
Mas pelos homens que a preparam
Desde as quatro horas
Escondendo a pequena porção de fermento
Na massa do que será depois pão
E no sono agora mais profundo
Das crianças que nele encontram
Seu ser íntimo e a partir dele são preparadas
Em seu futuro
Mas também no que morre
No que levamos felizes ao cemitério
Porque pode viver e porque já não pode
Mas também nessa pérola
Que é relação e anbigüidade
Em sua concha
Sob a mão de quem acaricia
E como pode detém
O mar


Você não espera nada
E isto não é uma forma de desesperança
Mas uma tentativa de ser
Um vaso apropriado à vida
Uma argila onde sopre um oleiro
Sentado em seu banquinho
Cercado dos seus materiais onde outros
Colocarão azeite ou arroz
Ou flores
Ajustando os óculos
Dosando a força a pressão o suor
Chegando mais para fora do quarto
Quando o sol é mais forte
E é ativa paz e contentamento


Você sempre foi um instável parceiro
Em conversas que entretanto
Longe de ficarem pelo meio
Seguiram no que você é para mim
E no que eu talvez não seja para você
Não ainda
Talvez nunca
Não se muda o curso de um rio
Que corre quando quer


Quando eu me perder de mim
Quando tiver a horrível sensação
De não me localizar na paisagem
E não souber em que bairro
Em que rua
De minha alma esteja
Quando eu perder a confiança
Que dá uma cidade conhecida
Mesmo quando sombria
E as pernas perderem o senso de direção
Os recursos para me manterem em pé
Sem vertigem
Me busque  sem que eu peça
Eu não sei pedir
Nem sempre sei se estou perdido
Me guie me telefone


Estou me despedindo
Dando adeus a tudo isso
Que não conheço muito bem
Mas que não está escrito nas estrelas
Talvez um dia tenha saudade
Talvez não
Estou indo embora
Muito de tudo irá comigo
Com certeza
Mas talvez não muito
É preciso aprender a esquecer
Ressignificar os sentidos
Os sentimentos
E mesmo sozinho
Sentir-se ao menos consigo















Alberto

Ele fechou o enorme guarda-chuva negro
Pediu um expresso grande sem leite
Acendeu um cigarro com a mão trêmula
Sorriu como pôde
Fez um comentário inesperado mas apropriado
À conversa
Sobre o eterno retorno e o espaço curvo
Leu o cabeçalho do jornal balançando a cabeça
A uma pergunta minha
Opinou que não havia espaço para a política econômica
E que tudo era lixo
Deixou que eu pagasse o café
E seguiu caminho
Mas sua longa sombra na rua
Ainda me acompanha


Quando a gata descobre
Uma isca de sua comida favorita
Na cozinha
Nem se pergunta de que frango caiu
Esse pedaço de céu em sua boquinha


Você olhava para o mar e sonhava
Vai passar
Eu olhava para a terra e sonhava
Vai passar

Estamos cansados
Há muitos desejos no ar
Estamos no limite
Não quero ser o imperador da terra
Nem você a rainha do mar

Não vamos morrer abraçados
Ser dois não é ser
Uma a um separados
Estou aqui e você vem
Sonhar é bom
Mas nem sempre convém





O amor gosta de conversa fiada
Fica querendo a coalhada com nata
Que não existe mais
De uma confeitaria que fechou
O amor devia ser mais prático
Dar um duro por aí
E no sábado à noite me levar para dançar
Guardar um dinheiro para umas férias
Em Paris


Eu só quero dizer uma coisa
Não pense que é fantasia minha
Nem que são as flores artificiais de uma canção
Embora eu seja um paulista
Movido a rock americano
Falo com este corpo que você toca todo
Com que este nariz que te cheira
Quero dizer que te amo inteiro
E mais meio


Tive de ser inventivo
Plantar violetas em aquários
Fazer de caleidoscópios calendários
E dar todo meu ouro às aranhas
Anotei cuidadoso o itinerário das formigas
Escondendo o doce nos meses certos
E no inverno aproveitei meu nariz escorrendo
Para chorar na cama
Descobri também que a chave do armário
Abre a porta dos fundos
Enfim foi um ano bom
Para quem gosta de ter trabalho














De manhã tudo está mais calmo
Os rouxinóis vão dormir
E Romeu e Julieta se separam
As pessoas põem a cara na janela
Par ver o tempo que está fazendo
Ninguém quer ficar doente
Ninguém espera morrer
O professor mastiga sua aula
Pensando no pãozinho fresco
Molhado no café
O aluno não pensa em nada
Que á passou a época das provas
O atleta com um resto de sono
Sente o corpo forte e relaxado
Se é domingo o padre reza missa
Todos ficam quietos que é dia santo
E a missa caba logo
O burro come sossegado o capim
Que hoje seu dono não sai
Mas se não é domingo
Há pessoas que tomam logo cedo
Um pingado com vodka
E os que acham que conhecem a estória
Embrulham a cara no jornal
Mudos turvos sem esperança


Nas margens dos canteiros dessa praça
Rolava entre garotos as contas de um colar de Shiva
Das quais dependia uma viagem
Antes de realizar o sonho do pai
O pai atento às contra-informações
Plantadas no jardim da casa
Que seu filho construiria
Pai e filho discutiam se a macrobiótica
Prevenia efeitos das radiações nucleares
Que segundo o pai impediram e dissuadem
Uma guerra interminável
Eram tempos em que pais e filhos discutiam
A política externa e interna da casa
No frio dessa praça o filho
Compra hoje um gorro colorido de tricô
De uma senhora talentosa e sem dinheiro
Com quem jamais conversaria sobre viagens
Que Shiva a tenha nos braços enquanto dança



Eu andava desavisado
Andava muito distraído
Eu ia na verdade belo e formoso
Estava pensando que era o máximo
Não prestava atenção
Mamãe dizia mas eu não liguei
Eu juro não estou mentindo
Mas felizmente eu caí das nuvens
Eu poderia dizer que cai de quatro
Mas fico melhor dizer
Que eu caí em mim


Meu pai tinha uma fé inquebrantável
Na vida depois da morte
Minha mãe
Na vida nesta vida
Entre elas vivi pré-socrático
Ora banhando-me no mesmo rio
Ora mudando de rio
Quando eu queria


Quando o chuvisco cinza de maio
Apaga a outra margem do bairro
A casa entra no repouso
Das portas e janelas abafadas
Pelo medo ao vento encanado
E no cheiro sem fim
Das camadas de sopas e frituras
Do café na garrafa térmica
Das roupas que não se pode lavar
O menino instalado em férias imprevistas
Diante de televisão não quer tomar banho
O avô anda sem trabalho por causa do mau tempo
Toda a casa interrompe a fadiga de todos os dias
Só se levantando para certificar-se do que é certo
Que  atrás da janela o chuvisco cinza de maio
Deixa a casa suspensa fora do bairro
Livre das imposições de outubro ainda distante
O verão as festas de fim de ano
Os novos cantos o absurdo que se gasta
Na praia





O pior trapaceiro é o que não joga
Com o baralho alheio
Um prédio é alto demais
Quando você não se vê em baixo
Há mais desilusões sentidas
Que certezas não levadas em conta
Quem decide ser feliz
Não precisa de consolo


Ando por minha rua de infância
Tão distantes uma como a outra
Em minha vigília e meu sonho
Inseparáveis
Nesta calçada outonal de Curitiba
Entre seus atores
Que ela é sobretudo palco
Mais ou menos sãos
Mas há momentos sem linguagem
Entre o dormir e o acordar
De sublevação da imagem
Por onde foge
Esta rua este outono
Este são este doente
Este que sonha
Com uma cidade unívoca
Presa entre palavras


As duas mocinhas e a mãe, muito senhoras,                                                           
colocaram casaquinhos com gola
e foram passear no Jardim Botânico
por um pouco os narizinhos de fora
repartindo entre si como uma trindade
seu inefável coração sossegado
não olharam ninguém e desdenharam
uma teutônica exposição de plantas raras
preferindo o ar frio e rumoroso
dos domingos curitibanos em todas as épocas do ano
com sabedoria ferina porém se toucaram
com esquisitos sabonetes talcos e perfumas
que os homens mais frios se voltaram
desafiados em pleno outono
por essa augusta primavera que entre nós andava




As palavras de queixa são doces
Falavam de uma menina que você ainda espera
No espelho dentro do armário
Neste calor
Interrogativa você seguia dentro de dores
Suspensa
Mas conseguia dormir entre lágrimas
Que bom poder chorar
Agora ninguém tolera esse comportamento
Segura o choro acerta o relógio
Olha o filho
Que não chorem juntos


Quando a bola veio pelo alto
Matei no peito
Deitei na grama
Lancei o ponta
Mas quando ele jogou na área
O lance já não era
Comigo


Damos as mãos
E cruzamos os dedos


Viver seja sempre recontar
Mas então vivemos o amor
Que antes e depois buscamos despedaçados
Mas basta este raro então
E essa feliz possibilidade de contar
Com a infelicidade de ao  mesmo tempo
Limitar o contado
Que a vida são vidas
O que agora contamos
Não seja sempre nossa vida
Para sempre amém










A disciplina militar impõe
Entre seus exercícios
Ó pensar solitário
Sobre a lógica e as incertezas
Da guerra
E nunca deixa que ele se torne
Por completo paisano
Mesmo sob uma árvore entre pássaros
Entre os meninos e os serviçais
A arma sempre ao alcance
O riso preciso que o uísque não altera
Tomando por interlocutor sua sombra
E aquelas de cujas mãos em sangue e placenta
Saiu a pátria
entre as anedotas que conhece
As incertezas que todavia busca
esclarecer
Na biblioteca cuja porta
Só ele conhece
E a lógica que se tornou
O incessante martelar dos tipos de imprensa
Do grilo dos pássaros
E o que menos possa ser revelado
Ou olvidado


A terra já deponho minha lança
Meu passaporte
Meus diplomas
Minhas roupas de cada ocasião
E me faço tranqüilo e completo
Uma pequenina minhoca enrodilhada
Eu um anzolzinho de ouro















Guacira

Entre as pessoas que abrem sua corrente
Às mãos que descem formando lentas
Uma concha
Uma concha surda ao mar
Nele envolta nele viva
Nele respirando aquisitiva
Ela esqueceu as apostilas
O horário de aula
Dobrou o joelho sob o sari
E talvez tenha experimentado
A possibilidade
A doçura
Fechando a mão sobre
O papel da bala


Sem que eu saiba
A razão e os meios
A rosa o firmamento
Permanecer  te amando
O verbo de ligação apoiando
Como Atlas a casa em que mais cedo
Guardei meu pai minha mãe meu gato
Procurando você duas quadras ao lado
No seu José fabricante de doce de leite
Você sentada na varanda a cabeça dolorida pendida
Entre as mãos de outro que te amou não menos e melhor
E está como estamos na calma desse quadro imóvel
Querida sinto imensamente meus descuidos
Meu velar doido
Que há a máquina do mundo emperrado
Em meu ombro
E eu não tive a sabedoria e a calma
Não esqueço algo vela por nossa
Insensatez e obriga que nos busquemos


Nessas mãos que não seguram
Nesse avoamento
E é um oculto desejo de integridade
De terra e firmamento





Os ratos não fazem apenas sua crítica roedora
Tão necessárias ao aconchego de suas alcovas
São hábeis também em minuciosos exames
De tudo que lhes cais nas patinhas
À luz de velas do sebo que roubam no açougue
Quando gostam de uma passagem dão prazerosos guinchos
Não tão altos que denunciem ratos na casa
Se não gostam murmuram graves crunch crunchs
E recordam os felizes tempos da Peste Negra


Sob o neón do abajur
Cintila seu olho vermelho
Viajando imóvel na noite
Tentando entender
Descobrir qual é e de quem é
A culpa
Entre o nariz e a boca
A lágrima fendida
Se ergue sobre territórios
Que ninguém percorrerá
Profundezas abismos
Névoas estradas interrompidas
Talvez seja mais simples
Você tem boas pernas
E gosta de conversar polidamente
Deixe passar o incômodo
Com uma água com açúcar
E não se esqueça de uma vez
De que as mães jamais
Têm razão


O jogo

Vi despontarem no campo minado
enfisemas suicidas
Mas me mantive firme com mão vazia
E outra vez pus o nome na lista
Dos que tentam a sorte
Perder é humano
E o dia um catálogo de impossibilidades
Embora tudo se compre venda e financie





Tantas canções de amor não esgotam o seu tempo
Mas elas nem tentam
Mesmo os corações são tão diversos
Cala-se um pouco fala-se um pouco
Mente-se um pouco...
Canta-se


Saí
Fechei atrás de mim aquela porta
E de minhas mãos caídas uma flor morta
Ignorante da primavera que sorria
Na rua


Eu também estou tentando
Entender melhor minhas impressões
Desse espaço inquieto
Dessas janelas quase sempre fechadas
Essa metódica relação
Entre quem é cioso
De sua responsabilidade
À moda da casa
Como o pão caseiro
E a irritação frente ao desejo
De viver das crianças
De quem já quase não vive
Proíbe o pão da padaria
O ar fresco e noturno
A possibilidade de que as crianças
Sejam e se vejam
Numa iluminação
Em uma intransponível
alteridade


Sempre há a incerteza
Mas o coração é  sobremodo vulnerável
À esperança
E quando seu amor se gasta
Tão fácil vem como se vai
E descendo bastante fundo
Encontramos amores não sabidos
Mas vividos




Não posso remediar
O que não houve entre nós
Não creio em ti
Não creio em mim
Não posso mentir

Palavras o vento leva
Trazendo a tempestade
Tolice fugir
Abrir guarda-chuvas
Esquecer a verdade

O passado não houve
O futuro não houve
Nosso agora é invenção
Dançamos a sós
Essa canção


1
Rosana se desdobra na rosa dos ventos
Inscrevendo minha direção no mundo

2
Quando eu dormir fora de hora
E acordar sem saber que horas são
Eu te telefonarei
Quando eu não puder conter minhas lágrimas
Perseguido num vale sombrio
Eu te telefonarei
Quando uma canção dos Beatles
Me recordar as doces ilusões da juventude
Eu te telefonarei
Quando peregrino me perder no caminho
Estreito
Eu te telefonarei
Eu não me desesperarei
Eu sempre te telefonarei










Você foi a única pessoa na minha vida
Que percebeu minha loucura e deu o fora
Mas continuou ligando pedindo dinheiro
E em atribuindo todas as culpas de que você padecia
Você foi a única pessoa na minha vida
Que percebeu que eu tinha ao menos minha loucura
E não precisava provar nada a ninguém
Que você ao contrário era uma régua de cálculo
Num mundo incalculável
Uma magnífica desolação


Há noites estranhas
Que não se seguem a um dia
Mas a uma lenta declinação
De verbos dos quais se rouba
O indicativo passado
Mesmo que imperfeito
E um silêncio rumoroso
Se instala na sala
Entre a televisão e a geladeira
Objetos intransitivos impassível
E bebemos de joelhos
Como um prisioneiro
O gol a cervejap
O pensamento que não se interrompe






















Tio Moriah

Uma visita basta
O terno de linho 90
O insólito Aero Willys
O que foi dito não mais se sabe
Não há ninguém para lembrar
Mas se somam aqueles sorrisos
A comentários breves
Ressentimentos curiosidade
Um desvio na conversa caseira
A casa de eu menino
Casa de meu pai
Linhas breves de um conto inconcluso
Cujo sentido
E querer saber
É imperioso desejo
Nelas vidas imperiosas
Cujo salto são instantâneos incompreendidos
E que entre as mãos
Faltam fazem falta
Cifrados nos retratos


As dimensões da história natural
Nas quais uma estrela luz e apaga
Sua inconcebível duração
Os séculos e decênios nos quais
Os historiadores se especializam
Entre a vida dos césares
E a vida material no Mediterrâneo
Os ciclos de Kondratieff
Sob a lógica implacável do progresso técnico
A um tempo mito criador e destruidor
São todos impróprios para a definição
De uma só vida
Que antes exige o imperceptível momento
No qual por exemplo
Robinho sente que o zagueiro
Não vai chegar na bola








Domingo

1
Se você perder a aposta
A loteria abrirá de novo amanhã
São José sem braços
Padroeiro das digitadoras
Protegei os que apostam
Sem chance


2
Busco minha margem
Minha varanda de ar
Essa nota específica
Que faz de uma canção um blue
Essa contradição que me induz
Em crescentes mentiras
Nessa aragem da madrugada
Entre caranguejos azuis
E peixes-espada reluzentes
Digo sem poder escolher
As coisas que amo
Na maré  vazante

3
Não pode contar bem uma história
Quem está fora dela

4
Não porque mancam são mancos
Podem só ter jogado o futebol de domingo
Não por que se varrem pátios se varram
Doidos varridos
Não porque bebo com você temos o mesmo pileque
Embora às vezes tentemos
Não por que dirijam kombi são monges ou feirantes
Embora ambos vendam seu peixe










Noturnos

1
Sempre que você me telefonar
Vou ter de situar-me conscientemente
Neste crítico século XXI
Na tua dramática existência
E dar toda razão quando dizes
Que não sou santo

2
Duas vezes você já me chamou esta noite
Medi sua febre sarei com chá sua cólica
Mas você precisa me chamar de novo
Me chamar sempre
Entretanto isso o assusta
Precisa de certeza de que eu estarei aqui
Quando você precisa de outro lugar
Diferente do meu
Quando você quer ir embora
Quer dizer adeus
E algo subsiste
Você quer abolir o tempo a história
A esperança a descida a ascensão
Dorme agora
Não me chame outra vez


Ivan

 Em Itatiba há a maior concentração de bares
Por habitantes de todo o interior paulista
Reluzindo o velho resplendor dos fins de semana
Entre rollmops e cana com fernet
Engastado como uma jóia
No lustre encalacrado
Nas noites inconclusas
Na sábia ignorância
Dos freqüentadores que não se habituam
E sonham
E bebem







Demian

1
Ao velhos garotões surrados
Nos seus momentos mais íntimos
Não abrem mão de um uráia rip
Mas no dia a dia ouvem sound garden
Enquanto caminham com os tênis mais invejáveis
Por qualquer um com espírito jovial
E pulmões ainda em ordem
Quando falam usam um dialeto irrequieto
Que os mais novos não conhecem
Mas sabem respeitar as ênfases
E os acentos tônicos e a métrica
Nunca foram tão austeros
E jeans lavados toda semana
A camiseta festiva que seu amor deu
Seu nirvana tatuado no peito
Inspirará os bodisátivas de amanhã

2
Os homens turvos e difíceis
Quando dizem maçã
Fazem-no de modo tão completo
Que uns entendem romã
outros urbi et orbi                                                                               
Os mais sutis agradecem
As possibilidades ensejadas
Por um jogo sério
Desenhado com método e rigor
Por um ser estranho
Como Jonh Coutraine
















Talvez porque nada daquilo
Lhe dissesse respeito
Os risos amenos o vinho
A leve música
Ela se retirou para chorar
Como se estivesse pronta
A abandonar o mundo
E seguir um destino há muito pressentido
Mas ainda não descoberto
E suave como um anjo
Deitou-se vestida sem desarrumar a cama
Sem desejar boa noite a ninguém
Sentindo que talvez devesse mesmo pedir desculpa
A alguém
Como se suportasse mal aquele cálice de fel
E devesse suportá-lo com bravura
Como uma menina que não tem
Medo do escuro
Uma menina só
Com uma lágrima surpreendente
E incompreendida
Assustada diante da sua dor


O lume que aquece os nossos corações
Mantém a fênix da esperança
Nos puros do Dr. Josino
Na despensa do Demian
No meu vinho
No teu riso
No nosso insondável chão


Às vezes, pensa Nádia,
É melhor não se explicar
Nem entender mas ficar zen
E pensar nos amigos
Com seus códigos secretos
De honra e de juramentos
Identificar a estação do ano
Por seus cheiros suas frutas
Sua temperatura
Que a conversa dos amigos
É a mesma sobre os somenos
Que o resto está de mais
E evitar ter para com os filhos
O originário fatalismo dos pais

O cigarro não basta
Continua na linha azul
Que dissolve o quarto
E em outros cigarros
Incontáveis no sentido exato
De que cigarros não podem ser contados
De que não se contam os quartos
As noites
E nada basta
O álcool o amor a música
Ás mãos que não dão conta
A estrada liga dois pontos
Partida destino como pode
Segundo a geografia e o orçamento federal
Mas a estrada a geografia o orçamento
Não bastam
Ouço severos juízos
Os erros que cometi
Que cometo
Estão certos mas para mim não bastam
E sigo


O amor é egoísta
O amor se engana
O amor chega cedo
Ou tarde demais
Mas enquanto houver homens
O amor lhes dirá suas palavras
E se houver anjos
Um dia falarão sua língua


Sexta

Noites batidas claras em neve
Açucar agosto setembro sempre
Cerveja nunca o bastante
A companhia que não disse a que veio
A música que não diz tudo
O cigarro o bombom o batom
O beijo prometido que não veio
O beijo que prometi em vão
Curitiba Curitiba ai de ti!




Em volta da rodoviária
Estão os bares dos que não tendo casa
Não têm gala e cômodos estares
Bebida não se escolhe
Mulher antes não tivessem
Meninos vem do cinema
De metais e das mesmas estórias
A vida é um promontório
Do qual se contempla o que o mar
Concedeu aos velhos cascos
E aos já bem novos


Domingo

1
No caminho das palavras
Uma galinha que ciscava
Virou frango assado
Vendeu-se uma geladeira
Uma aliança se quebrou
Mas uma palavra foi mantida
De coração a coração
Entre desgraças familiares
Viagens de alto mar
E recomeço
Entre juras e perjúrios
Nas palavras que se atualizam
Quase sozinhas
Entre os bons dias e as crônicas
Que se lêem no barbeiro
A tabela de classificação dos times
Como outrora se lia
O horário de chegada dos paquetes
no caminho das palavras
Se fez uma via crucis
Mas uma menina faz planos
Para a festa de aniversário

2
Pilhas pulseiras consertos
Em geral com garantias






Se você conseguir afinal
Desligar o computador da nave
Singrará precisando re-significar
Seu alimento
Seu amor
Sem roteiro música incidental
Talvez sem companhia
E sem felicidade
Você tentará subir a montanha
Plantar uma cerejeira
Quem sabe estudar psicanálise
Ou exegese neotestamentário
Isso é com você
Que muito provavelmente
Não se converterá em super-homem
Mas dará uma contribuição originária
Ao termo ser humano
Sem a qual
O computador da nave religa-se
Automaticamente
Com seus juke boxes de cafés tristes
Sua atômica irreligião
Seus fliperamas dilacerando
As mornas margens do Eufrates
Seu coração ceifado
À queima-roupa


Você pronuncia sobre mim axiomas suficientes
Para deduzir a soma dos meu ângulos
A menor distância para manter-me longe
E seu rosto inóspito a fala concisa
Um depoimento completo
De uma realidade imperfeita
Minha mecânica celeste
Que você precisa por para funcionar
Dando corda como num despertador
Que gostaria de parar por aí










Toda hora de falar contigo
Se fez um momento cerimonial
E no entanto íntimo
No qual não sei se te agradeço
Ou te peço
Se me sinto feliz ou assustado
Sei que sou um menino
Cuja hora de dormir já passou
Que espera o beijo íntimo
E cerimonial do pai
Para saber que a vida pode seguir
Que é lícito dormir bem
Que as dores passam
E se não passam
passassem


Como eu me identifico com meu gato

Enfim tornei-me um gato
Capaz de não gastar energia à toa
Quieto em frente à tevê
Feliz por não entender demais
O que se passa em volta
Também por não entender a tevê
Por não precisar beber
Nem torcer por um time de futebol
Talvez eu seja um gato com valores ultrapassados
Um gato ortodoxo
Que rói sua fome como pode
E é tremendamente imune a germes
Mais do que os médicos e os mendigos
Mas como eles tem suas regras
Seu juramento de ser sempre um gato
Só um gato
E por isso não dar satisfação
Quando a vida selvagem sobrevivente no bairro
Chama por sobre os muros e os quintais
E elegantemente lambe os pelos
E se manda








Ale

Quando ela ia à Igreja
Seu pai andava com um carro novo
Sua mãe não sumia de casa
Desde  sexta com amigas
Quando ela ia à Igreja

Agora está só no apartamento
Paga todo o aluguel
Há umas cenouras na gaveta da geladeira
Fará bolo com calda de açucar queimado
E verá o final do fantástico

A avenida é recortada pelos ônibus vermelhos
Amarelos cinzas
Ela sabe para onde cada um vai
Essa cidade como sua alma
Sua palma

Imenso feriado que se passa
Ansiando descansar
Um princípio de gastrite
Pernas à toa
Moça como qualquer uma

Sem caminho de casa


Esta rosa é de um jardim que já não existe
Fresca e rubra nasce
Como um beijo desejado mas não esperado
No sonho
Na noite
Quando todos dormem
Quando durmo
O homem curvado sobre a estante
Lê escreve faz cálculos
Mas a rosa nasce
Espera a noite
Ferina víbora
Beija e foge
Deixando no corpo o emblema rubro
Do desejo




1º dia de outono

1
Era um homem grande, alto, um polacão
Sentado circunspecto ao meu lado
Se bem invadissem um pouco meu espaço no banco
Suas sacolas do Mercadorama
Viajou calado os olhos quase fechados atrás dos óculos grossos
A camisa limpa a barba feita os sapatos novos
Do Centro ao Bairro Alto
Acho que não moveu uma pálpebra uma perna uma sacola
Ao chegarmos pediu desculpas exageradas ao motorista
Por qualquer coisa
Encontrou a porta do ônibus e continuou viajando
Com destino de casa

2
Certas coisas não se dizem
Certas coisas não se fazem
Penduradas na ponta do gesto
Mantemos o decoro
Dos corações vazios
Gritando em uníssono
Seu suspense
Porque quem sabe um momento
As palavras e os gestos impróprios
Façam seu jogo
Esperando um golpe de sorte
Quem sabe desta vez
A banca não vença


















Cansado

1
Como acontece com todo mundo
Você se foi com razões plausíveis
Com a dignidade ferida
Queimando na saída fotos cartas
Tudo que era um passado
Que devia ser apagado
Mas nenhum passado se apaga
Nem para mim querida e antiga amiga
Todavia não se deve andar sobre passos dados
É ruim voltar atrás
Ninguém perdoa
Todos querem cobrar o seu tributo
Das aflições vividas
Lágrimas escondidas e depois às claras
Geralmente no amor há pouca elegância

2
Ela está sozinha em seu quarto se olhando no espelho do teto
E o caleidoscópio dos dias é colorido e brilhante
Mas não faz sentido
Por que as coisas devem ter sentido?
Essa é uma pretensão da razão
Um apelo pungente feito ao destino
Quando se está infeliz
Segue os dias domingo é dia de feira
Segunda o trabalho recomeça
E as pessoas em volta vivem com a mesma precária humanidade
Que partilhamos
Não tente ser a garota da Nova
Também não pense em bobagens
A esperança é um dever
Tão necessário como comer e tomar banho













É difícil viver em tempos
Em que se é obrigado a pensar tanto e em tudo
Pensar está longe de ser um alegre passatempo
Quando se procura a própria originariedade
Em tempos para os quais você não conta
A menos que você seja astuto
Conheça o caminho das pedras dos ardis
E percorra os segredos da arte de ganhar o jogo
Tudo isso é antigo sob o sol
Tudo isso é vão
Mas se você for calmo e profundo
Se de vez em quando rolar entre as corredeiras espumantes
Se você for uma pedra que role às vezes e não se importar
Com o cego tumulto do mundo
Se você se tornar uma ponte sobre as águas turbulentas
Feita do que em você não se esvaneceu
Sem negar sem abandonar sem trair
Sente agora o cheiro das violetas e das rosas de amanhã
Veja o reflexo da aurora no leste longínquo e escuro
Conte com a benção de contar consigo
E não deixe só quem o chamar amigo


1
Deus cuida dos que bebem e dos que não tem juízo
Logo, cuidará de mim duplamente

2
Primeiro guardei sob a escada meu estojo de pintura
Com o qual ganhei um prêmio do Mappin
(o desenho era o de uma menina doente sentada na cama
visitado por um passarinho no beiral da janela)
Depois deixei num dos primeiros degraus da escada
Meus livros prediletos: Robbin Hood, a história de Joana D´Arc,
A Cabana do Pai Tomás, Ivanhoé
Num vão acima perdi não sei como o amor de minha vida
(hoje não se usa mais essa expressão, mas se usava e eu uso)
E segui com outros amores mas  não aquele
Degraus acima quebrei o espelho no qual meu rosto formava rugas
E me escondi sob a aparência decorosa de um quarentão
Não me recordo exatamente com que intenção
(mas me recordo do ato que ela motivou)
Queimei poemas que guardava irracionalmente há décadas
E fotos antigas mechas de cabelo de namoradas
Pôsteres velhos de inúmeras formações do time do Santos
No degrau do alto deixei toda esperança
Diante de mim há apenas uma coleção de impossibilidades
Construídas e o vazio no próximo passo
3
O tema sagrado por excelência
É o par lembrança e esquecimento
Os homens se esquecem por impiedade
Ou amor a deuses menos austeros
Deus se lembra desses homens e envia seus mensageiros
E os homens lembram rasgam vestes se lamentam
Depois esquecem há outras preocupações
Que sempre crescem quando passam de pastores
A senhores ou servos
E Deus se lembra de seus servos
Envia seu próprio servo
E salva o homem do seu reiterado esquecimento
Tão reiterado que esquece a salvação à vista
E volta atrás na lembrança
nesta crítica aliança


Às vezes nos parece que um silêncio
Pede para ser rompido
Pede um golpe de sinceridade e de alívio
E aí você dá um tapa na perna
E gira a cabeça com o ar de uma cumplicidade
Finalmente encontrada
Mas ela se levanta com um jeito ofendido
E diz algo remoto e inesperado como
        desculpe, senhor, mas eu sou um mulher casada


Chove muito em Curitiba
Mas como tudo em Curitiba
Não chove mais como chovia
Antes a chuva batia na terra
Repicando gotas para o alto
Que divisávamos perfeitamente se quiséssemos
E adorávamos
Qualquer uma entre tantas
Sua floração um instante no ar retida
E logo finda
Era-nos permitido andar
Nessa usual miragem
Observar os veios de pequenas correntezas
O pingar mais denso e demorado sob as folhas
Nos riachos que caíam após percorrê-las
Juntando as vertentes que desciam das nervuras
E os cachorros molhados ah o cheiro dos cachorros molhados
A chuva já não é mais assim minuciosa

Tentemos dizer:
Por que para mim tantas coisas são superficiais
Outras incômodas e dolorosas
Outras ainda sublimes profundas maravilhas:
Por que gosto tanto por exemplo de ir ao cinema com Bruno
Por que é tão íntima e relaxante nossa cumplicidade
Nossa vontade doida de comer sushi e sashimi?
Por que me sinto na minha exata estatura
Nem excessivamente excêntrico nem superficial
Ou incomodado ou dolorido
Quando conversa com a Nádia?
Por que me lanço num abismo ao ler a folha
E fico rindo até duas ou três da manhã
Lendo (é só um bom exemplo) Ciro Alegria?
Por que meus sonhos às vezes são insuportáveis quase até à morte
Às vezes neles me abençoa o beijo de um anjo?
Por que não decido se Josilene brinca comigo
Ou me leva terrivelmente à sério
Por que nunca decido se ela é bela?
Está claro que a história geral da humanidade é impossível
É impossível a história geral de um único homem
Dizem as escrituras que Deus olha
Não o que está diante dos olhos
Mas o coração de cada um
Se Deus pode fazer isso com um único homem
É um ser informe e inconcebível
É preferível concordar com Spinoza: Deus sive natura
Mas ele poderia conceber galáxias velhas
Que gelam nos céus inúteis a zero absoluto
Pôde conceber o cheiro da manga madura
Neste específico quintal onde chove etc?


Iluminura

No claustro do teu coração
Que o medo e a solidão fazem menor
A liturgia das horas tange
O tempo do coração
Que oh Deus não passa
Enquanto uma pomba canta em meio ao pátio
E não por ser virtuosa canta
Mas por ser pomba
Como você sabe só um salmo
E o repete
Mas sozinha não está só
Nem sente o medo e o tempo
No amplo céu que é seu e nosso
É por demais acessível a arte
De saber por onde o outro sangra
E mais fácil ainda utilizá-la
Basta a perspicácia natural
De uma criança
Aperfeiçoada ao longo dos anos
Pela natureza intrinsecamente má do homem
Certamente uma dose menor de privação
Um grau mais adequado de liberdade
Face à opressão
Bem como uma menor necessidade
Do homem sentir medo
E sentir-se frágil
Poderiam diminuir o uso quase ilimitado
dessa arte que faz eqüivaler
A palavra vida à aparentemente incongruente
Palavra tragédia
Todavia, esses itens
Nunca são previstos no orçamento
E aqui o raciocínio na verdade
Conclui-se de forma circular


Eu me aproximo para conversar
Mas você quer ouvir a música
Quieta
Eu insinuo um gesto turvo
De sede e de desejo
mass você se cola ao dia
Busca uma claridade
Que ele não tem
Então eu abro um vinho
Mas você teme que eu me torne
Inconveniente
Eu que tenho sido
Quase um gentleman












Os profissionais do copo têm sempre
Na boca amarga
Um riso inesperado e generoso
Um jeito de quem já viveu
Com exatidão indizível
As cento e oito contas
Que formam o universo
O modo de vomitar cortesmente
Sem perder o fio da conversa
Sem deixar de amar trabalhar
Tomar banho
Cuspir no sapato de manhã
Para dar brilho
E raro perdem hora
Quem encontra na vida o gosto
(inda que o último se você insiste)
E consolo (o que não é pouco)
Dorme trabalha poupa
E dá tanto duro quanto um puritano


Ela não tem margens
Nem calçadas para frágeis pedestres
Nem tem propriamente um chão
Onde se pouse os pés doloridos
Generosa abriga a todos
Cruel cada um a seu gosto
Aqui as geometrias falham
Esqueça os cálculos
Nada dá conta da incerteza
Se vale a pena é uma pergunta sem resposta
Se não vale é uma reposta para uma amargura
Às vezes curável com os remédios mais caseiros
Ela não reconhece reis e senhores
Sorri dos espíritos
Dá osteosporose em quem só come salada
Ela é uma mulher que se deseja ardentemente
Mesmo quando você não te ama










Apertando-me nestes ônibus
Rápidos como os pés de Aquiles
(se não me falha a cultura)
Entre o bairro dito Alto
Embora de mais alto haja
Fileiras de sobrados
Colados um ao lado do outro
E coloridos, feito peças de lego,
Até Santa Felicidade
Das pipas de mau vinho
E pior polenta
Embora a cerque arco alto
E preços para todos os gostos
Pois, numa depressão,
Lembremos que o preço permite o gosto
Não digo que sou feliz
Que ninguém é
Mas que vou levando


Subindo a Deodoro até a altura da casa da Anna
Percebo as rachas na parede das lojas
Bem abaixo da propaganda de suas promoções
A encardida chaminé de uma lanchonete
Onde famílias a passeio descansam tomando refri + salgado por dois reais
Sem o brilho dos DVD´s e dos ferros a vapor
Sem a dúbia ânsia que provocam
Suas condições de pagamento
A rua central de minha cidade é melancólica
Se você tiver dinheiro para querer algo no domingo
Ou tiver cartão, vá a um dos shoppings
Lá também há o último filme perfeito sobre nossa imperfeição
Nossos caricaturais maneirismos
Ou jeitos que se dá nas coisas e há outro jeito?
O homem sozinho espanta as moscas
A cerveja é um luxo a que se entrega
Horas a fio na muda contemplação do bar
Do domingo da cidade
Do seu cheiro de mijo e gordura
Sua falta do que não se compreende
Não se busca
Na cidade moderna que se arrancha
E se pensa m sonhos
Almoça antes no Gaúcho por 1,99
Arroz feijão ovo bife e salada
Que nunca falta nada
No prato do previdente ativo
Ou ainda melhor aposentado
Para Anna

Bendita a ordem dos pombos mendicantes

Entre sua sarna e jejum saltam
Atrás de miríficas pipocas
Que o moço no banco
Aquele de camisa branca e calça tropical
Joga entre bocejos

Bendita a ordem dos ordinários saltitantes

Neste domingo ferrenho
Que o sino da igreja matriz tange
Uns tomam éter outros cocaína
O moço pobre joga um real de pipoca para os pombos
Mas poupa os bacons


Nós, velhos, gostamos de amigos velhos
Como gatos que não saem mais de casa
E que não mais descem escada
Como o parceiro que sabe reinventar nosso passado
Adivinhando o que nele mais nos agrada
O que gostaríamos de eternizar
E temos saudades dos remédios antigos
Para os males antigos que tínhamos
Pyramidon para febres benignas
Gelol para entorces contusões que
Como nós sobrevivem nos balcões de farmácias
Buscando as novidades dos vizinhos
E as escondidas bebendo vinho doce
Que o padre, exagerando nossa velhice,
Bebe só servindo-nos a santa comunhão
Seca e sem açúcar


Para Osny

Perdoe-me se falei tanto
Coisas que não lhe diziam nada de importante
Eu sou só um cigarro no quarto escuro
Fazendo relações
Ora divertidas
Ora dolorosas
Ora calmas e cálidas como uma mão amiga
Que ajeita meu corpo no cobertor
E acerta o despertador para as seis
Nossas conversas intermináveis
São conduzidas nesta noite
Pelo maestro Fulanovski
Uma emissão internacional da radio de Moscou
Com as variações singelas
De um compositor
Às vezes com senso de humor
Com as variações sinfônicas
De um compositor singelo
Porém a seu modo


Haverá uma noite abafada
Por exemplo em meio a janeiro
Em que você abrirá a janela buscando ar
E se sentará na poltrona que preferiu por sua longa vida
Embora houvesse sempre mais poltronas disponíveis
Na sala que aos poucos se esvaziava
Você saberia não de uma vez
Perceberá que guardou por tantos e tantos anos
A imagem do tremeluzir do sol
O exato sol amarelo nas calçadas
Digamos de basalto e diabase
Das hoje estreitas ruas do Castelo
Não lembrará o nome das ruas
Você as percorreu um dia
Hoje elas o percorrem
Provocando caimbras que o fazem mais quieto
E o anel de cabelos da amiga na caixinha inalterável
Já não se parecerá com os cabelos que ainda possua
Se é que vive
Mas o rosto de Célia você lembra pouco
É ele que olha o seu
Nos copos sobre a pia
Na água da privada
Na saliva engrossada pelo creme dental
No vôo do avião noturno
Seu refúgio de pulso
Cortando seu pulso









Nossa senhora do destino
A vós é impossível pedir
Que do meu próprio o curso mudes
Que aceitaste o teu disseste sim
Com a paciência a que os pobres são obrigados
Esse orgulho de linhas cruzadas
Que um de nós sempre anteviu
Na dor dos homens e da terra
No barro desse Deus apaixonado
Que desde a primeira saliva
Humana se foi fazendo
Com o amor possível
O ódio santo ou logo cedendo
À graça
Nossa senhora do destino
A Ti consagramos
Frente ao nosso destino
O dom do seu sentido
E da irreprimível esperança


The Swan desliza como pode
Num ebonite de 78 rpm
Em instantes que bastam para o menino
Entrever esses homens
Em perene estado de apaixonamento


Como se não existisse
O que não pudesse ser expressado
A dor cedeu
A febre baixou
A paz se fez
Na alma no corpo no espírito
Amém
Quando você passou levinha
A mão sobre meu rosto











Não vou dizer quem eu amo
Quem eu amo sabe bem
Quantas estrelas cabem no mar Mariano
Nas Minas não tem mar
Quanto mar cabe no céu
Antes que Deus  dividisse o mar
e dividisse o homem em dois
Adão e Eva
Adão que sozinho estava só
Então a sagrada companhia da Trindade
Não bastava?
Os ascetas erraram o alto?
Quantos peixinhos cabem no mar
Nádia de olhos verdes
Para nós fomos pai filhos irmãos
Sem tanta santidade
Para nós fomos pão abrigo e às vezes paixão


Eu vinha amassando no bolso do paletó
Tão útil em Curitiba
Uma pasta oitocentista de cigarros e chocolate
Ébrio de vinho e de amor
Uma flor preferida das flores do mal
Entre as páginas de um caderno
Pleno de poemas juvenis
Sem identificar interesses e argumentos
Caminhando meticuloso
Em busca da essência
Do que não sei
Não saberei
Nisto consiste o humano
Quando, diga o professor de economia,
Se consegue ser humano?














Interpretando Tiago

Para Osny

Tiago tenta encontrar Tiago
E para isso se fecha numa casinha em Atibaia
De onde de si não fuja
Como consumado pesquisador
Descreve em ilegível para os outros relatório
Todos os indícios que possam levá-lo a Tiago
E se alegra quanto pode confirmar
Os que julga decisivos na sua fisionomia
Emagrece empalidece cansa-se bravamente
Como implacável funcionário que terá de por na rua
(quando!) Tiago a fazer com acerto tudo o que Tiago quer
Mas todo mundo tem prazos finda o ano fiscal
E de modo aparentemente contraditório
Tiago descansava passando horas cozinhando (bem)
E tomando um vinho francês para ele o melhor
(ele sabe o que diz) congratulando-se pela exitosa faina
que para trazê-lo a si quase o consome
na minha muito menos exigente visão e cosmovisão
quem não tem em si algo de Tiago é um ser absurdo e perigoso
mas Tiago poderia ter um pouco mais de nós
que não lhe faria mal
que é possível ser mais contraditório
e mesmo assim beber vinho francês
e sorrir com todos os dentes


Sandra

Se digo que vou ficar velho
Exatos vinte anos antes de você
Há nisso a dolorosa evidência
Do seu impossivelmente amor
Mas também dogposto de viver
Que possivelmente às vezes
Com carinho terei de passar-lhe









Pinhais
1
No Templo das Águias
Os espíritos sobrevoavam o monte Ebal
Nesta terra de baixios
E de bananais

2
De repente você quer um vinho doce
Que vai fazer frango com nhoque no domingo
E percebo que você envelhece
E que há muito gosto dos seus almoços

3
Como uma pétala cai inutilmente
Como uma pétala cai sobre nossa perplexidade
E nossa inutilidade
Em Hiroshima

4
Um beija – flor bebeu um gole
Da caninha Sapupara que a Anna me trouxe de Fortaleza
Eu sabia que a Anna e eu gostamos de cachaça
Mas beija – flor? que bicho fino

5
Ande sempre certo na contra – mão
E deixe que papai se perca na multidão

6
Você sabe, os psicanalistas gostam de polemizar





A poeira suspensa no raio de luz
Que da janela pousa na cama
Onde agora abres os olhos
Participa da compenetração da infância
Que por favor não percas


No  numeroso silêncio do shopping
Onde você passeia seu laissez – faire
O branco luz em cúpulas sem luz
Escadas rolam
Com fast – foods de tudo
O amor escorre entre os dedos
Volta ao profundo mar
De onde por um minuto veio
O amor é sempre exato
Como dois são um e um separados
Até a próxima onda















Quando tento viver
A vida me falseia
Eu sou eu que me traio
E vivo uma vida paralela
Ignorante do turvo curvo
Do rio entre as suas margens
Me quero lago profundo
Fincado em vale imemorial
Me quero nuvem peixes silêncio
Entre gerações que refletirão
Seu rosto em minhas águas
Mas enquanto rio estou aqui
E logo adiante
E sem conformar-me a mim
Nunca estou comigo
Nunca estou contente


para Nádia

Duas ou três coisas falamos
Duas ou três calamos
Às vezes bebendo um vinho
No centro da nossa aldeia
Nos limites tribais
Dos nossos espíritos e dos nossos cultos
Das nossas paixões e das nossas acomodações
Do que veio e do que passou








                                                                   Curitiba,julho de 2006-07-28

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