quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Um bolo só

o desejo de dar ao vivido um corpo e um sentido me traz ao dia em que conheci a Confeitaria Colombo, onde comi um papo-de-anjo retirado de um grande vidro dentre outros dispostos nas prateleiras espelhadas, mas parece-me que logo adiante cruzo o Largo dos Leões para o apartamento da tia Conceição no qual a principal descoberta foi uma mala de discos de jazz intocados, aliviada por mim em um LP de Jelly Roll Morton. também sei que o Maracanã e a Praça Sans-Peña não são assim tão próximos, mas ambos reconfiguram uma geografia afetiva na qual também outros lugares, passeios e memoráveis personagens de minha vida interior vão se tocando e formando um bolo só, que até o fim dos meus dias será um alimento impossível de compartilhar.


                                         Igor Zanoni

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Apreensão

 de um lado da rua havia casas antigas, sem recuo, com cores claras que já não existem. tampouco se calçam mais ruas com paralelepípedos ou existem bondes gingando sobre eles como o que passava, a largos intervalos, nesta rua calçada com os tais paralelepípedos, rumo ao centro. aliás sem necessidade, pois o centro era próximo, mas ganhei outra noção de distância depois e o centro devia ser distante neste momento de que falo. tampouco tomei este bonde, exceto em maio de 68 com outros estudantes, sem saber o que acontecia mas por sorte informado, meio por alto, por um amigo do qual sequer era muito amigo, mas foi tão próximo por tantos anos, como tantas pessoas acabam sendo. do outro lado da rua havia o longo muro cinza do colégio, de cimento que raspava o braço, e que levava à avenida, hoje estreita e modesta mas ainda crucial à comunicação urbana, na qual tomava com colegas o ônibus para casa. ônibus também ocioso , pois dava para ir à pé para casa, mas, como disse, minha noção de distância era outra. era uma rua antiga com caminhos muito conhecidos e a mesma apreensão cotidiana, esta sim imutável, indelével como a tinta Parker.


                                                           Igor Zanoni

                                           

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Amigos

a casa muito restrita sufocava
os amigos novos buscavam o céu
ou entender melhor seu inferno particular
conheciam tantos escritores cruciais
sem os quais o mundo sempre seria opaco
agora supõe-se tão claro desvelado cru
suas roupas eram modernas
corrigiam logo tantas bobagens que dizia
amigos novos inventam
muitas e estranhas revoluções copernicanas
inventam fogueiras amam Carmen Miranda
citam Brecht e Marcel Mauss
falam palavras irônicas e obscuras
também andam sem o mesmo dom cristalino
que o pensamento e a fala sugerem
difícil amar amigos
difícil amar qualquer um
mesmo com quem se vive tão próximo
tanto tempo
por que dizem isso?
não percebem como eu me firo?
posso entender o que acontece
mas muito é vão e cansativo

                                                                       Igor Zanoni

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Religioso

a julgar pela aparência, o que, é claro, nunca se deve fazer, o professor de religião com seu jeito alto, moreno, vestido sem o esmero dos demais professores e seu sorriso um pouco sedutor, era a parte que complementava a ciência no colégio, a parte que dava sentido à vida dos que por lá circulavam . diziam que era um grande amigo e conselheiro espiritual de uma professora com câncer mas que ainda lecionava. da essência não posso saber nem isso, pois era protestante e liberado de suas aulas. mas a igreja vivia o tempo feliz dos cursilhos, livros de Michel Quoist e o compêndio de filosofia de Jacques Maritain, quase a ponto de deixar o terço como a solução para tudo. ele tinha uma pasta marrom, de couro mole, cheia de uma eventual boa nova para os novos tempos. mas eu não tive coragem de conferir. preferia gastar minha energia jogando futebol, pois eu não me sentia com idade para coisas mais complicadas.


                                                   Igor Zanoni


Oceano


lembra uma velha história indiana
que nas poças de água da chuva
brilha a imagem da única lua
esta seria nosso próprio modo
de nos tornar oceano
mas é claro que não nos basta
por demasiado sereno e reflexivo


                                                                     Igor Zanoni