sábado, 26 de julho de 2014

Gandhi


Tornei as mais significativas pessoas de quem ouvi explicações com preciso sentido a ser descoberto. Lembro-me de Alberto Bianconi dizer com carinho: “Há coisas de que não se pode defender”. É claro, e nem sempre são sabidas. Pertencem aos nossos desvãos, aos nossos porões cheios de pólvora. Uma mulher casada com um homem que ama quebra a sala, rasga lençóis e se sufoca. A inutilidade de espantos que se seguem só indica nossa fragilidade, que nunca sabemos bem onde está. Mas as defesas podiam ter sido construídas, quem sabe. Não só por esta mulher, aliás, nunca somente por ela. Nós podemos sim entrar em crises como a desta mulher, amanhã, hoje à noite. Perceber isto lembra como é tão importante saber por quem os sinos dobram e agir de acordo com esta sabedoria. Isto eu pude entender em Gandhi, entre outros.

                                                        Igor Zanoni

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Aluísio Caropito Raposo

no edifício Castelo Branco, tão belo por fora quanto asfixiante por dentro, antes do Museu Oscar Niemeyer se instalavam diversas secretarias do governo estadual, junto com uma boa  quantidade de diversos outros ditos órgãos públicos, formando um corpo que, às vezes, depois de um longo corredor, terminava numa parede, num arquivo morto, ou em uma improvisada cozinha onde funcionários conversavam fazendo seu lanche, um famoso e disputado sanduíche de pão francês, um dia com uma fatia de queijo, outro com uma de mortadela. diante do que meu erudito amigo Demian Castro chama em sua bela tese de doutorado “a crise das finanças federativas”, pessoas do porte intelectual e compromisso com a “realidade” ( isto é, com a práxis da regeneração da cultura  dentro de uma ética pública) como Mainha, Nádia, Rosa, Clóvis, Paulinho, Maria Luiza, Mariano, Darcy e outros ( não muitos, porque se trata de tarefa exigente e delicada) foram artistas do impossível e criaram ferramentas para a ação pública como sistemas de indicadores sociais que embasaram, por exemplo, a criação no Paraná do Sistema Único de Saúde, e detectaram uma hierarquizada e clara visão espacial de inúmeras instâncias nas quais vive e morre a população. mas predominaram os tempos de tédio e inatividade para a maioria, os baixos salários, e outros aspectos dyonelescos com suas sequelas físicas e morais. porém ( sempre há um porém!), em salas enormes e silenciosas se encontravam aqui e ali funcionários que, sem entender exatamente porquês financeiros e políticos, se dedicavam a fazer o que aparecesse com grato espírito comunitário, boas opiniões e alegre companheirismo. quando não aparecia nada, estudavam e liam por sua própria conta, e com muito tempo disponível se especializaram no que supunham, com razão inclusive, o melhor e mais necessário para o mundo. assim pude conhecer intelectuais autodidatas que embasbacariam qualquer um ao falar de Shakespeare, Mozart, física moderna, filósofos como Nietzsche e Hegel, cinema europeu, o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo, enfim, tudo o que se precisava para colocar em outros trilhos suas vidas e as vidas que se passavam  fora daquele estranho edifício, parece que com o maior vão livre da América Latina. Mas nenhum possuiu o calibre de Aluísio Caropito Raposo, sugerindo a conclusão de que o estado se vê obrigado por diversas razões a poupar “recursos” e aumentar a “eficiência” de sua administração, mas não tem tantas vezes muito claro os recursos que possui ou como poderiam transformar a vida de cada um de nós.


                                                              Igor Zanoni

terça-feira, 22 de julho de 2014

Doçura

talvez eu esteja ali já há algum tempo, mas ela me olha sem surpresa e serena, coisa que entretanto me espanta um pouco. talvez ela tenha começado a pensar em mim como alguém que está sempre por perto e de quem não é preciso esperar nada em especial.  talvez deva cair a ficha que não é necessário algo especial, o que parece mesmo estranho em um mundo que demanda sempre isto ou aquilo da gente.  as pessoas que nos amam fazem isto sempre, um pacto que nos inclui sem perguntarem nada. as pessoas doces relaxam, nos encontram se estamos perdidos. eu queria ser informado do que está acontecendo mas não é preciso, aos poucos percebo. entre uma pessoa deslumbrante e desejável, e uma pessoa doce, seja ou não esta o que outros desejariam e achariam deslumbrante, você não pode escolher. a escolha é uma estranha ideia, uma estranha ilusão. apenas a doçura te escolhe. ela é mais fundamental à vida. o cérebro só funciona com glicose, o coração não bate sem açúcar, o corpo precisa de doçura para viver. não é muito clara a importância de desejos ou de satisfazê-los. mais claro é estarmos entre nós, serenos, escolhidos, agradecidos.

                                                             Igor Zanoni     

domingo, 20 de julho de 2014

Paisagem

Paisagem

no domingo quente o doutor saiu para andar pelo campo na borda da cidade e esquecer um pouco o trabalho que recomeçaria já bem cedo no posto de saúde. o tempo limpo de primavera logo reavivou sua disposição e o espírito do médico voltou a ser o de sua amada juventude, quando conheceu sua esposa. lembrou o rosto moreno, o cabelo enrolado, longo, o corpo forte que o deixara fascinado. percebeu pouco depois, bem entre umas moitas de flores , uma mocinha, bastante jovem, também morena, pulando e arrancando hortênsias e sempre-vivas. parava às vezes, margaridas nas mãos, brincando de malmequer, depois recomeçava aos saltos sua brincadeira. o doutor esqueceu sua caminhada para olhar longamente a menina, cuidando para não ser percebido. não pôde deixar de observar ao voltar-se para a cidade : -que linda moça! como brinca e ama as flores! talvez ame demais as margaridas, até de modo obsessivo. amanhã vou imprimir para ela uma receita de topiramato.  


                                                        Igor Zanoni


sexta-feira, 18 de julho de 2014

Tiago Maximiliano Bevilácqua


O nome que dá título a esta breve memória é o de uma pessoa tão significativa na minha vida que posso dividir com ele meus acertos tardios e jamais meus deslizes e bobagens. Conheci Tiago como meu professor de Microeconomia no segundo ano da graduação em economia no antigo Departamento de Economia e Planejamento Econômico da Unicamp. Seu curso baseou-se em texto escrito por ele mesmo, longamente acompanhado por reflexões metodológicas e de valor. Uma de suas conclusões li mais tarde em pensadores como Feyerabend e Furtado, a fragilidade do conceito de ciência social, ou de ciência mais amplamente, vista como algo nascido independentemente de escolhas prévias e como  produtora de “realidade”. Num momento em que me propunha estudar por vocação e opção política, Tiago ensinou-me a duvidar dos que se propunham ser “intelectuais” e via o futuro de forma dramática, jamais redutível a previsões científicas ou a correções de rota. Não se dizia pessimista, antes se considerava otimista, mas havia compreendido o suficiente do mundo para pensar que o homem comum teria muita chance nele. Detestava particularmente a epígrafe dos Princípios de Economia de Marshall, “a natureza não realiza saltos”. Sua tese de doutorado, defendida após hesitações que eu não compreendia, era uma arguta crítica do pensamento de Fernand Braudel e de seu conceito de capitalismo, amplamente baseada em profundo conhecimento dos textos de Marx e de historiadores instigantes como Hobsbawm, do qual se conhecem em geral as suas “Eras...” e entrevistas e nada mais. Apanhou na defesa por “bater em monumento”, e depois me perguntou se eu havia aprendido que não se deve bater em monumentos. Tiago odiava o corporativismo e o comodismo. Culto e refinado, era um professor “esquisitão”, que fez coisas maravilhosas com seu espírito de amizade e associação, como trabalhar anos a fio e empenhar seu futuro financeiro criando uma máquina de cortar granito para um grupo de indústrias no Espírito Santo, uma vez que além de economista era excelente engenheiro elétrico. Digo era porque hoje se recolheu a uma bem-aventurada distância, com sua família de origem, suas filhas e amigos do Rio, onde nasceu. Sempre adorou amigos. Passava uma noite tomando vinho e enrolando cigarros de palha enquanto conversava. Certa vez, visitando a Festa de São Francisco no Largo da Ordem em Curitiba, tentou defender delicadamente algumas crianças de agressão policial. É claro que apanhou e foi preso, mas aproveitou a ocasião para conhecer muitos outros em igual condição, ignorados, tomando seus nomes, telefones e nomes de familiares. Voltando para São Paulo, deixou-me a tarefa de telefonar a todos estes.    


                                                        Igor Zanoni