Vida plena
Desejamos para nós a vida mais plena, ou seja, não perturbada por emoções ligadas a sofrimento, velhice ou morte. O móvel da indústria, além da exploração e acumulação de dinheiro, é precisamente assegurar tanto quanto possível a satisfação desse desejo. A fome deve ser saciada da forma mais apetitosa, as doenças prevenidas por pesquisas e prescrições baseadas na mais venerável ciência, a cura de alguma que sobrevenha oportunista pode ser curada se diagnosticada a tempo, daí a contínua necessidade de médicos e de exames os mais tecnologicamente sensíveis. A morte tem sido cada vez mais adiada, até um tempo em que percamos um pouco a consciência dos dias correntes, seu esquecimento, e nos afundemos como um navio no Alzheimer. Mas as pesquisas avançam também aí, com medicamentos que nos recordam a nós mesmos o maior tempo possível, num prolongamento não se sabe o quão aprazível é. A indústria luta contra a antiga sabedoria do tempo e da experiência cíclica, que via a nossa vida entrelaçada pela dor, a impermanência, a insatisfatoriedade mesclada a todo desejo prazeroso. A lógica industrial é a da postergação da nossa ontologia: não somos um corpo, uma mente, uma energia, vivendo em uma paisagem emocional. A lógica que vale é a da vontade e do poder, amparada pela ciência e o capital. Para o mal-estar que esta perspectiva necessariamente provoca- estar vigilante, no peso, na conta do banco, no amor (que deve ser como imaginamos) – é preciso estar sobretudo como um ser satisfeito, que sabe enfrentar com liderança e carisma as dificuldades do trabalho, que gasta o tempo livre em ambientes seguros, sem estranhos, com as drogas que se queira comprar, em qualquer lugar onde chegue a cobertura da assistência médica e bancária, e que tem um batalhão de especialistas em marketing, RH, gerentes financeiros, segurança pessoal, enfim, tudo que o dinheiro inventa para quem pode comprar. A felicidade não é uma conquista pessoal baseada em conhecimento e experiência pacientemente adquiridos, é um artigo de luxo, com imitações acessíveis para os mais desafortunados. Depressão? Meu amigo, você está carente de serotonina, tome esta última pílula da alegria. Esqueça gente problemática como Buda, Freud ou Gandhi. Ouça a música da Beyoncé, a melhor da década. O resto nós cuidamos desde que passe o número de seu cartão de crédito.
Igor.
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