Viver a fé
Para todos os que, na nossa diversificada população, por uma ou outra razão não puseram a sua alma em um parêntese utilitarista do poder e do dinheiro e vivem além do imediato, ambíguo e espantoso do barato, da mídia e dos conluios políticos, a fé ainda é uma via para entender a si e ao mundo, para buscar o sentido das coisas no espelho do numinoso e do totalmente outro. A variedade das formas religiosas no Brasil, embora imensa, descontínua no tempo e com propósitos variados, firma-se em nosso passado colonial, na maneira como nosso povo foi se formando e desfazendo e como a lógica mercantil do ganho fácil e da aventura solda os donos do poder, os mais antigos e os novíssimos, posto que poucos. A Igreja Católica no Brasil divide-se na atualidade em três ramos maiores, o tradicionalismo carismático, o ramo ligado aos movimentos sociais e políticos e o medievalista ligado mais diretamente ao Vaticano e ao núcleo da organização eclesial. O primeiro deles apóia-se nas cidades, nas massas em apuros com a vida difícil, e advoga um pentecostalismo de raízes que revivem os rituais de cura e libertação, o exorcismo, o triunfo do alto astral em missas cantadas e novenas entusiasmadas. Tem um paralelo, mas apenas superficial, com o pentecostalismo evangélico, também muito diversificado, na medida em que a Eucaristia á o centro da sua fé, mas como este mobiliza a energia neurológica da vontade e da mudança das coisas pela fé, embora especialmente na Virgem. O segundo grupo centra-se menos na hierarquia da Igreja que no leigo e sua ação no mundo, inspira-o a ecologia, o amor ao pobre que precisa descobrir meios de se emancipar das suas situações de abandono, criado pelo pecado social que o conjunto da sociedade sofre e que tem raízes políticas e econômicas. Ele se inspira na figura de Cristo humano, que precisa descer da cruz. O terceiro grupo é vinculado sobretudo ao poder eclesial do Vaticano, inspirando-se numa religiosidade tradicional também e centrada na fé mais que em obras, ama os santos miraculosos, os padroeiros da cura, o milagre do Cristo que vive em nós mediante o sacrifício eucarístico. Suas pastorais são mais assistencialistas e convencionais, a fé é um dom que se deve mais receber e reproduzir que descobrir e recriar coletivamente. Os dois primeiros grupos não têm estímulo do Vaticano, embora revitalizem o corpo da Igreja, ao contrário do terceiro de raízes mais rurais ou da nossa urbanização inacabada porque se constitui de metrópoles com vastas periferias de migrantes ou filhos de migrantes. Nas classes médias brasileiras tão heterogêneas em que se encontram grupos ainda com patrimônio, bom emprego e renda, grupos pobres e escolarizados e remediados de toda ordem, a Igreja divida sua audiência com evangélicos, espíritas, gnósticos, grupos ligados a religiões do new age e outras, recentes no Brasil, como o budismo pregado pelo midiático e carismático Sua Santidade o Dalai Lama. Os evangélicos que mais crescem há algumas décadas, no tempo da crise que se abre nos anos oitenta, são ligados também ao pentecostalismo, privilegiam uma ligação pessoal e comunitária com Deus com menos ênfase em aspectos teológicos que os ligados à vontade, à necessidade sobrenatural de ajuda e de redescoberta do sentido da vida. Alguns são antigos e têm sólidas raízes urbanas, outros são novos, com pastores de pouca formação teológica, mas donos da arte de conjurar e conjugar os espíritos na congregação, muitas vezes reunidas no espaço de uma loja que faliu, em uma pequena rua de bairro. Há também os gigantes do ramo, com poder nos meios de comunicação, representação importante na política nacional, capazes de manipular grandes somas de capital financeiro. Seu trabalho pastoral é diferenciado, com maior importância na igrejas mais tradicionais e enraizadas, as mais novas centradas na mobilização de jovens e em rituais que imitam as encenações de Billy Graham tão bem descritas por Roland Barthes em Mitologias. Os espíritas, por sua vez, em especial os kardecistas, a maior parte dos quais concentrados no Brasil especialmente graças ao trabalho do grande médium Francisco Xavier e às nossas raízes tão próximas do espiritualismo africano e relidas pelo kardecistas, situam-se entre a fé, a explicação racional da vida e a ajuda espiritual e material a muitos grupos muito carentes, como dependentes químicos, alcoolistas, pessoas com perturbações emocionais graves, órfãos ou idosos desamparados. A audiência do espiritismo vem de suas raízes positivistas, pois é tanto religião como ciência, e tanto explica como estimula e consola. Daí o apelo a camadas cultas como médicos e profissionais liberais em geral. Todos esses grupos têm pouco em comum e competem entre si. Todos, entretanto, têm origem no desamparo e na carência, na limitação política e econômica e nos limites naturais da nossa vida. Estar em um ou outro grupo depende de muitos fatores, como a formação familiar ou a insatisfação com esta. Estão presentes no poder central, nas favelas, nos presídios, nas escolas. O que gostaria de realçar é que alguns parecem ter mais sucesso em modificar as práticas sociais e o cotidiano que outros, em transformar a visão do sujeito de si e do mundo. Alguns fazem isto, por outro lado, criando lacunas e restrições entre as camadas sociais e indivíduos, outros se abrem para a responsabilidade universal e a transformação ou a busca de transformação do espaço coletivo. Alguns grupos parecem recriar céus particulares desde já, outros não crêem talvez em um céu definido ou futuro, mas mobilizam mais a inteligência e a prática social e pessoal. Alguns não passarão do ópio que tira a dor e o efeito profundo, na carne e na alma, dos males do mundo, e mesmo os ignoram, outros os utilizam para enriquecimento e o negócio rendoso e prestigioso. Mas a época das transformações materiais com efeitos culturais profundos sobre o bem estar e a solidariedade humana parece ter menos lugar no mundo pós-totalitarismos, embora muitos grupos e pessoas creiam no poder do extermínio e da cegueira para o outro.
Igor
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