Embora a vida seja plena de sofrimento, há épocas mais serenas, em que parecemos ter a alma calma como um lago. No início da faculdade em Campinas, eu e minha mulher alugamos de uma colega um quarto de fundos com um banheiro, e foi muito bom esse recanto onde estávamos quase sempre sós. Eu havia recebido de presente dos dezoito anos de meu pai um radio da pilhas Beira-rio, da Phillips, que pegava FM, o que foi um presentão na época. Durante estudava e trabalhava como ajudante em uma pesquisa, e à noite sobrava leitura para fazer. Às onze eu ligava na rádio Eldorado, que tocava musica clássica toda a madrugada. Em uma escrivaninha que trouxera de casa eu ouvia a rádio e estudava muito. Gostava particularmente de O Capital, que para nós parecia conter a ontogênese da vida e do mundo. Gostava muito de capítulos sobre a maquinaria e a grande indústria, o capítulo sobre a acumulação primitiva e sobre o capital a juros. Eram difíceis, mas eu chegava a copiá-los para que ficassem gravados. Talvez por isso ri tanto com meu amigo Newton que me contou que o grande Florestan Fernandes traduziu sem saber inglês, com a ajuda de um dicionário, uma versão naquela língua de Contribuição á Crítica da Economia Política. Eu entendi essa juventude desabrida do velho mestre, essa pretensão de quem descobre mundos. Para mim estudar foi uma segunda natureza, nem sempre, mas naquela época fui feliz como estudante e como um jovem esposo.
Igor Zanoni
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