segunda-feira, 25 de junho de 2012

Pobreza


Se você teve uma infância pobre como eu, precisamos tomar uma um dia e contar nossa história. Conto um pouco da minha. Papai era tenente do Exército em Cáceres, MT, nos anos cinquenta e inícios dos sessenta, fazia sempre um calor imenso, luz elétrica não havia senão duas horas por dia e quando não estudávamos, eu e meus irmãos, nadávamos no rio Paraguai
ou, se era noitinha, tomávamos sorvete na pracinha em frente á igreja. Vivia de short, sandálias havaianas, andava muito a cavalo e bebia os vidros de vinho reconstituinte Silva Araújo que o mascate deixava na farmácia do quartel para papai. Havia um refrigerante feito por um padre franciscano que morava junto com os jesuítas da missão holandesa, turvo, esquisito, acho que de tamarindo e bocaiuva. Ainda não conhecia a Coca-Cola. Esse padre que não falava português foi o primeiro empresário de sucesso que conheci ou ouvi falar. Como papai não tinha dinheiro para comprar sapatos para nós, usávamos havaianas ou sapatos todos de plástico, que davam bolhas nos pés. Papai também não havia tido infância rica, vinha do Serviço de Apoio ao Menor, que abrigava crianças órfãs. Meus avós haviam morrido quase ao mesmo tempo de difteria quando ele tinha sete anos. O Corpo de Bombeiros e o Exército salvaram-no de uma vida inútil para uma vida muito difícil. Mamãe detestava. Fazia roupas para nós, cozinhava, odiava aquele calor e maldizia toda aquela miríade de insetos em volta do lampião de querosene, no cômodo onde comíamos, aberto para o quintal. A pobreza estava em toda parte. Os caixõezinhos brancos no verão com os inocentes mortos pela diarreia falavam da pobreza, assim como os índios semiaculturados e os soldados semi-índios. Papai construiu um viveiro de cobras e aranhas junto com os freis, para trocar veneno fresco por soro no Butantã. Meu maior prazer era viajar a São Paulo no DC-3 da FAB, seguro, voando a baixa altitude, sem conforto e cheio de tudo que há no mundo, tanto o de São Paulo como o de Cáceres. Um dia visitei uma irmã do papai, também muito pobre, que passava com seus filhos a panquecas de farinha de trigo com água. Muito tempo depois, quando eu estava numa pior, minha irmã me mandou essa receita como forma de conter despesas. Descobri que a pobreza é uma tradição que perpassa as gerações.


                                                              Igor Zanoni


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