terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Nata


eu não pertenço á nata
das pessoas ricas e influentes
impunes diante de qualquer delito
imunes à desgraça
corpo fechado pelo mundo
que elas mantém e que as criou
não sei onde moram
nunca conversei com nenhuma
não posso dizer que as entendo
que quero isto ou aquilo delas
essa intransparência esse segredo
me afeta de formas que percebo mal
sinto a ignorância que me impõem
que as protege
e às vezes não posso deixar de sentir
a ilusão de esforços
para incluir pessoas nos mercados
dar-lhes emprego e alguma renda
porque é claro que esta é uma superfície
de discursos enganosos
por serem superficiais
e os bons esforços me parece irreais
que só a irrealidade nos pertence

                                                                Igor Zanoni 

Dilúvio


à noite caiu um dos dilúvios
de Curitiba
o rio que corta o bairro transbordou
as casas vizinhas encheram d´água
pessoas perderam tudo
animais se afogaram
a luz foi cortada
as pessoas choravam a desgraça
mas eu dormia
não ouvi a chuva
nem gritos
tudo aconteceu em torno de mim
mas como uma pedra dormi
como se comigo
nada pudesse um dia acontecer

                                                              Igor Zanoni

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Beleza


há os que só apreciam um prato se for excessivamente condimentado ou preparado com maestria, assim como há os que só apreciam uma pessoa ou um trabalho se for muito distinto dos demais. isso limita muito a visão das coisas, e torna a vida um tempo em que se deve empanturrar do melhor. as pessoas que tem essa visão, mesmo que pareça justa e adequada, não deixam de ser glutões, que devoram com minúcias o que vem pela frente, distinguindo , por exemplo, entre as pessoas, não praticando a equanimidade e a capacidade de ver a natureza preciosa que há em cada uma delas.

                                                    Igor Zanoni

Coração

Coração

1
o amigo diz: você não sabe
o que quer?
siga seu coração!
mas meu coração se engana
se arrepende
que belo amigo a gente arranja!

2
a luta acabou
talvez não tenha começado
talvez o boxe esteja extinto
há éons
mas ele segue só no ringue
as luvas levantadas
o penacho de galo
e há os que aplaudem

                                            Igor Zanoni

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Revide


nosso espaço de ações felizes
e oportunas se reduz
quase não vivemos
apenas revidamos
aos danos do mundo
as perdas nos ferem
as feridas se abrem
em flores que ocupam
nossa paisagem
aos trancos seguimos
como um Diógenes
 que preferindo viver
num simples tonel
não encontrasse
nenhum disponível
na vida onde verdades
espaços claros e silentes
não são bem vindos

                                                    Igor Zanoni

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Moeda


como uma marca d´água
em uma moeda
na tua face está escrito
a quem pertences
como o valor de um selo
que se cola em um envelope
no teu corpo está escrito
até onde vais
ninguém pode ser o que não é
esta é a lógica do mundo
vendida barato a quem não tem
coragem de mudar
e busca seu livre trânsito  
no livre câmbio
dos cambistas experientes
que sabem  quanto vales
quanto deves
quanto te falta

                                           Igor Zanoni
                                          

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Escrever



talvez eu não escreva mais
por mim mas sempre
escreverei por você
quando meus olhos
 já não virem muito do dia
terei sempre visto
o dia primordial
 uma manhã e um anoitecer
quando a casa cresceu
entre suspiros e perfumes
 e um pacífico desdenhar
das notícias e tumultos vãos
em outro país
longe do nosso
deste país que quase não vivemos
mas no qual por acaso
você foi minha bandeira
eu fui teu másculo mastro

                                                Igor Zanoni

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Perdido


não há o que sendo perdido
deixe de criar uma outra forma
de pensar e sentir o que acontece
isso não depende do que se perde
mas da dificuldade de conviver com a perda
e com paciência miná-la
com os dentes as unhas
os sintomas psicossomáticos
e permitir uma pessoa mais sábia
mais acolhedora
 a dor não é sempre uma mestra
mas pode-se olhar para ela e dizer
eis uma boa chance de aprender algo

                                                         Igor Zanoni 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Rádio



os adoentados suavizam
o forçado repouso no quarto
ouvindo um velho rádio
deixado por aí não se sabe quando
se querem dormir ou estão muito cansados
ouvem Elton John Kenny Rogers Bee Gees
mas quando parecem melhor
e procuram acompanhar a marcha
da sorumbática cultura nacional
ligam a rádio educativa e estranham
o jazz doloroso de Lenny Andrade
depois da sopa ouvem a Voz do Brasil
ficam por dentro das novidades
e varam a noite que um dia há de comer-nos
em infindáveis concertos de Brahms

                                                      Igor Zanoni

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Florestan Fernandes


Não vou reproduzir a biografia de Florestan aqui. Apenas direi que foi o maior sociólogo brasileiro, criando com os poucos instrumentos teóricos existentes uma teoria de nossa formação e história social e política. Estudou na primeira turma da faculdade de filosofia da então recém-inventada Universidade de São Paulo, ao lado de Paulo Emílio Salles Gomes, Antonio Cândido, Décio de Almeida Prado e nosso ex-presidente sociólogo FHC. Era pobre, estudou e viveu com dificuldade, começando sua vida como engraxate. Muitas narrativas sobre o período contrastam sua pobreza com a vida de classe média alta de seus colegas, mesmo que lhes tenha dado muitas vezes lições. Morreu na fila do INSS, à espera de um transplante de fígado, recusando um transplante patrocinado por FHC. Poucos conhecem suas idéias, sua obra, sua vida de militante. Mas a todos maravilha sua pobreza, e a altura intelectual a que chegou mesmo sendo pobre. Essa pobreza é sempre realçada, sendo visto não como um de nossos maiores pensadores do Brasil, em uma obra emancipatória e fecunda. Preferiu-se ver nele o pobre. Como se pobre não pudesse ser talentoso, coerente e corajoso. O pobre é um de nossos cacifes políticos e produto de exportação e exploração na mídia. Mas ninguém o leva a sério além disso, dessa manipulação perversa.

                                                 Igor Zanoni

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Carne


mas quando preciso descansar
a irritação me indispõe com todos
quando preciso ser generoso
a avareza fecha meus dedos
a virtude vem com uma saia justa
ou um uniforme de prisioneiro
não canta o hino da liberdade
das coisas razoáveis e evidentes
meu coração é todo seu
mas minha carne pende sempre
para as correntes oceânicas
além e além e além

                                                  Igor Zanoni

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pássaro


ao entrar na sala
olhe para o retângulo negro
da televisão
não ligue o botão
imagens de alta resolução
te colocarão em mundo imaginário
saturado de mensagens políticas
de imagens que te levarão
ao amor e à morte
tais como eles devem ser percebidos
para que não cheguem
a maiores consequências
a um amor e a uma morte
que brotem da carne não da imagem
da alta voltagem em nossa mente
acostumada a perder sua direção
depois olhe para a janela
que embora seja um retângulo
aberto para o dia
é incpaz de acolher um pássaro
no limite da calçada com a sala
finja que há esse pássaro
cante o que pensa ser seu trinado
olhe para essa imagem de pássaro
até que o pássaro entre

                                                Igor Zanoni

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Orar

Orar

1
quando estiver doente
cansado de ver os outros
sem encontrar caminhos
então entre em seu quarto
ore em silencio
que ninguém veja seu estado
fique o tempo necessário
em seu quarto
em uma gruta no Himalaia
em um convento fechado
mas não faça disso sua vida
peça cura se cure
 volte para o mundo
para a ação no mundo

2
amar não pode ser uma obrigação
deixemos de sofrer se não amamos
mas quando nos sentirmos livres
e entendermos como a alma se faz
optemos por amar
esta é a gratidão da compreensão

                                                  Igor Zanoni

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Paciência



a paz e a paciência
podem não nos ajudar
a buscar o que imaginamos
portal do tempo e dos seres
podem minimizar a angústia
podem nos colocar à margem
da sorte comum
ninguém merece de nós
senão paz e paciência
mas como as faremos parte de nós?
as pessoas muitas vezes trazem para fora
nossa dor e nos fazem sorrir
não posso não quero
andar longe dessas pessoas
quero dar a elas minhas mãos
quero suspender todo julgamento
há pessoas cuja vida encanta
se as trazemos para perto da nossa
história
mais do que a reconhecemos
quero reconhecer nas pessoas
as possibilidades que antevi
mas não pude sempre cumprir

                                                       Igor Zanoni

                                                

Mudança


mesmo tendo mudado
de muitas formas e muitas vezes
na vida que cumpri
o mundo mudou mais
do que qualquer um poderia prever
mais do que eu poderia fazer a respeito
para diminuir minha pena
conseguir um princípio de ação
um pensamento menos exigente
qualquer pensar demanda muita sofisticação
e fornece poucos meios para a ação
as pessoas também se perdem
criam fantasias virtuais
sua riqueza é virtual
mas não a da internet ou do celular
sermões temos bastante
mas um dia veremos de novo
horizontes?

                                                                           Igor Zanoni

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Rua XV


no calçadão da rua XV, centro de Curitiba, ao meio dia abrem-se centenas de pequenos restaurantes que um ticket refeição pode pagar, destinados a toda essa gente que lota os prédios em milhares de funções. lojistas, atendentes de call centers, vendedores em todos os ramos do comércio popular, muitos em financeiras, as moças que trabalham na farmácia, no sacolão e verduras, nos sebos, nos supermercados, compõem uma classe dos que ganha mil até mil e quinhentos por mês. um pouco mal vestidos, mas não miseráveis, feios, deselegantes, um pouco, sem muita escolaridade, sem muito futuro. um futuro atado ao do país, do seu grosso populacional, não de suas elites que sempre é lógico irão estar muitíssimo bem. amontoam-se em restaurantes pequenos, combinam se encontrar, estão conversando, alguns namoram. há restaurantes bem mais modestos, pela metade do preço, nos quais crianças até três anos não pagam, e os chineses de todo os tipos. no fundo há as pastelarias com fanta. em meio ao meio dia há moças mais bem ajeitadas, com óculos escuros, os cabelos ajeitados, que andam devagar, como se coubessem e não coubessem em Curitiba ao meio dia no centro. ou moços que vem de empregos nos buracos da prefeitura ou do estado, essas instituições que nos moem junto com os bancos e os jornais, com a televisão e outras coisas que sabemos por alto. mas Curitiba se mistura pouco. é altamente segregada. quando vejo uma moça fora dos padrões, com um digamos estudado bom gosto, pergunto quantos dentes ela arma ao andar pela rua XV no calçadão onde também estou.

                                                           Igor Zanoni

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Subjectum


sejamos insistentes
mesmo quando sem dentes
sejamos irreverentes
sejamos avidamente
sejamos imanentes
e transcendentes
sejamos mais o alfa que o ômega
um alfa inteiramente novo
sejamos um ovo
da história cósmica nascente

                                                     Igor Zanoni

Segundo


entre um segundo e outro
há uma decisão incalculável
é preciso dar a resposta conveniente
para não sair do jogo
entre um pensamento e outro
há uma lógica que age
um cálculo instantâneo
para preservar o que desejamos
enquanto relaxamos na vida
vendo Django ou lavando louça
como um sensei ela aprimora
sua técnicas e seus objetivos
é preciso decidir entre ficar no jogo
ou abrir mão
não estamos jogados na vida
tecemos com ela um duelo
enquanto nos preservamos
até que algo nos abandone
e sejamos livres

                                                     Igor Zanoni

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Mundo


por que nós que nos amamos tanto
saímos por aí no mundo
para manter relações tensas à distância
mas que como as ondas
viemos dar às mesmas praias
catando cocos para sobreviver
e enviando mensagens em garrafas
de volta para o mar
por que não viramos para nós mesmos
vendemos o que temos
como os primeiros cristãos
e compramos um terreno para fundar
uma cópia de um mundo
mais próximo de nós
e menos perecível?

                                                       Igor Zanoni

Morte e vida severina



Hoje assisti no canal Futura um desenho encenando o poema Morte e vida severina de João Cabral de Mello Neto, um dos mais importantes do autor e da literatura brasileira. O desenho segue com fidelidade todos os diálogos do poema, através da viagem que Severino faz por Pernambuco desde o agreste até os mangues de Recife, procurando em cada lugar um trabalho, para descobrir que os trabalhos disponíveis eram ligados à morte, carpir por um morto, ser coveiro (há aí uma bela imagem de como os canteiros dos cemitérios reproduzem as divisões sociais) até chegar á pergunta se não era melhor desistir da vida já que a morte impregna a paisagem. A resposta obtém de um Severino como ele, isto é, pobre e diluído na multidão até ter apenas um nome genérico que designa a própria dimensão existencial do nordestino pobre. Ela vem ensejada pelo nascimento de um menino, também pobre e com a condição humana já marcada, mas que é um homem e que é expressão da vida. O sentido de uma vida severina é afirmar a vida em toda circunstância, sobretudo quando a circunstância torna o afirmar mais necessário. O desenho é em preto e branco, criando sobre a forma gráfica dos poemas de cordel. Não vi o nome do autor do desenho, que vale conferir de tão dramático e intenso, mais do que a leitura individual pode ser.

                                                    Igor Zanoni