sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Salomão


1
durante a vida uma pessoa define sem perceber muito bem certas expressões faciais, hábitos mentais, maneiras de cumprimentar, convicções que gosta de dividir porque as julga fruto de uma sabedoria adquirida pela experiência meditada, a forma como gosta de se vestir porque expressa tanto a si mesmo. assim, as pessoas ao viverem perdem progressivamente graus de liberdade, reduzem-se, esquematizam-se, caricaturam-se, pensando que se transformam em seres maduros e responsáveis, que descobriram na vida o bom combate e o bom caminho.

2
Salomão escreve nos Provérbios que não se deve ser muito frequente na casa dos amigos, para que não aconteça deles se cansarem de nós. é costume se dizer: “ apareça em casa!”, mas seria melhor recomendar: “desapareça mais!”.

3
a direção comunica e pede compreensão e colaboração, mas a chefia ordena no uso das suas atribuições regimentais. muitos dançam conforme a música, mas às vezes é melhor trocar o disco.


                                                                Igor Zanoni 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Pétala


a pétala exata há de criar para si
a textura a cor exatas
assim o céu preparava auroras
assim nos olhávamos nos olhos
a pele dolorida frente ao desejo
do mundo
à doce majestade do nosso corpo
a rosa exata tomará como princípio
esta pétala
talvez não estejamos aqui
é preciso que o mundo passe
que o céu e a terra passem
a esperança não se tornará para nós
senão esperança
mas a exatidão da pétala é exigente
a completude da rosa precisa desta exigência
a dificuldade das nossas palavras
deve ser dom paciente

                                                     Igor Zanoni


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Guadalupe


Pelo menos a alta madrugada os dois devem ter passado no terminal do Guadalupe, de onde partem os ônibus para as cidades tristes e pobres da região Metropolitana de Curitiba, bem em frente á igreja onde o padre Reginaldo Manzotti encena suas missas musicais e concorridas. Mas estavam ainda acordados de manhãzinha, talvez esperando a primeira condução. Não sei como a noite rolou, mas ainda dividiam uma garrafa de Jamel, uma das aguardentes mais em conta pelo custo-benefício. Talvez tenham dormido um pouco, a conversa aquietada como as brasas em uma fogueira, todavia ainda acesa. Mas havia ainda assunto por resolver, ou a energia precisava de um novo gás para que a noite não terminasse tão parecida com todas, e pudessem enfim se esconder em Campo Magro ou Campina Grande do Sul com certa sensação de completude na alma. Suas vozes aos poucos se alteraram, uma altercação antiga foi retomada, e se impuseram vias de fato. Levantaram-se como puderam, gritaram o que ninguém ouviu com nitidez, sequer eles, e o que estava com a garrafa quebrou-a com um gesto largo e circular no rosto do outro. A têmpora e o maxilar esquerdo deste começaram a vazar muito, mas havia tempo e disposição para mais. Lançaram-se um ao outro entre detritos de vidro, dentes, não sei o que mais, que esta estória é deles, e eu só consigo vê-la como um passante casual, mas sua sensibilidade, seu nervo, pertence a ambos.


                                                                Igor Zanoni


sábado, 23 de novembro de 2013

Céu


sempre admirei São Sebastião
crivado de flechas
Santa Luzia doando seus olhos
Santo Antão tentado nos deserto do Egito
o menino que cada vez mais pesava
no ombro de São Cristóvão
meu preferido foi sempre São Francisco
de palavras medidas exatas 
convidado a visitar a Terra Santa pelos árabes
gosto também de São Benedito
de Cosme e Damião
de Nossa Senhora Aparecida
dos santos pretos fortes
o céu deve ser sobretudo divertido
nele há de entrar os ciganos
os palhaços a bailarina
 os padres terão de tirar suas sotainas
e os cachorros ao relento
encontrarão afinal seu lar

                                                                               Igor Zanoni

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Espera


1
não esperamos o sentimento
não meditamos no que ocorre
e não relaxamos no premente tempo
antes antecipamos o que caberia fazer
as ações que de nós se esperam
os aliados que devemos mobilizar
estamos em uma guerra e um general oculto
nos dá ordem de fogo
nós obedecemos mas como não somos soldados
ficamos confusos e perdidos

2
ela diz que tem dormido sempre cedo
e que suas pernas doem
que precisaria descansar bastante
antes de tirar umas férias
que amanhã terá o dia todo
um curso de Excel
e espera o vencimento do cartão
para comprar um sapato confortável
eu escuto quieto esperando 
que ao menos essa quietude
 seja abrigo e conforto


                                                Igor Zanoni

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sabedoria



1
Na adolescência amadurece a sabedoria duramente adquirida na infância. Assim, quando cometemos uma grande bobagem nesta quadra da vida, e queremos a todo custo e sem sucesso à vista corrigi-la, os amigos logo dizem que o melhor é não mexer mais na m... feita. Isto revela um precoce ceticismo sobre a capacidade de mudar a nós mesmos e o que passou. Revela também a necessidade de às vezes engolirmos a nós mesmos com casca e tudo.

2
Conheço uma psicóloga com uma vida dedicada a pessoas humildes que precisam de uma compreensão de si mesmas e de uma orientação mínima que raro se encontram em qualquer instituição como igrejas e escolas. Trabalha em conselho tutelar no seu município, atende emergências de madrugadas, como fruto de sua vocação. Suas palavras são sempre simples e consoladoras. Quando surgem disputas sobre religião, por exemplo, afirma que o melhor é retirar de cada uma delas o que têm de bom, e que o melhor é tentar fazer o bem para você e para os outros. Com essa sabedoria, só poderia ser uma pessoa bonita e engraçada, que todos amam.

                                                                     Igor Zanoni

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Motorista


vou deixar minha barba branca por fazer
meu cabelo sem pentear
concentrar-me no que importa
a desconcentração do cotidiano
consertar isto ou aquilo
ver o que é preciso pagar
dar uma boa olhada na moça que passa
tomar uma cerveja à tarde com um amigo
não pensar em projetos ilusórios
ser sereno silencioso
atento à condição da estrada
trabalhar quando for a hora
dormir quando precisar
estar em forma para daqui a pouco


                                                              Igor Zanoni 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Coração


Conheci uma professora primária, já de alguma idade, mas bastante disposta. Gostava de dar aulas, lia Superinteressante e não perdia o Jornal Nacional. Saía no final de semana, conversava com os vizinhos, era uma pessoa com boa índole e boa formação. Um dia, porém, sofreu um pequeno enfarte, que a deixou muito deprimida e acamada por muitas semanas. Visitei-a muitas vezes, mas ela já falava pouco e, sobretudo, do que era importante no momento. Gostava de passar a madrugada, subitamente iluminada e vazia, ouvindo programas religiosos. Descobriu um outro modo de viver e novos problemas na vida, menos para serem resolvidos pela reflexão que pelo exercício paciente da atenção ao que ocorria. Descobriu aos poucos novos sentidos e novas consolações. Parece que muitos têm essa personalidade de reserva, oculta, sensível e acessível. Felizmente não somos só o que pensamos ou queremos.   


                                                                       Igor Zanoni
                                                  

domingo, 17 de novembro de 2013

Convidado


se o amor ainda existe
ele voltará como um convidado inesperado
colocaremos de novo a canção
descobrindo nela novos delicados
sentidos toques 
como sentirei seu corpo ao abraçá-lo
sempre promissor acolhedor
companheiro
as palavras pertencem ao mundo
tomamo-las daqui e dali
como parece adequado
mas se a porta volta a se abrir
as palavras devem ser caladas
ceder aos gestos a um tempo novos e cotidianos
aos nossos pequenos planos
e às nossas suaves ilusões


                                                                        Igor Zanoni

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pós-modernidade

Pós-modernidade

Eu nunca entendi muito o conceito de pós-modernidade. Lyotard, o primeiro a desenvolvê-lo, nos anos setenta, seguido de muitos, bastante diversos, que na época eram chamados apenas de “novos filósofos” e não de filósofos ou pensadores pós-modernos, ligava-o ao fim da crença no progresso e ao colapso das “grandes narrativas”. Mas a crítica e a descrença no progresso burguês e no papel civilizatório do capitalismo vêm de muito antes, remontando pelo menos a Marx, Nietzsche e Freud, três interlocutores de Foucault, a meu ver um dos mais necessários pensadores do século XX, ao lado de Deleuze, cuja compreensão demoraria muito tempo a acontecer segundo o próprio Foucault. Mas alcança toda a escola de Frankfurt e muitos pensadores atuais com raízes no marxismo, como Zizek e Meszaros, entre outros. Por outro lado, muitos regimes políticos comandam nações que tem se projetado e equilibrado os pratos do poder internacional apostando no progresso e na força da produção mercantil desenvolvida em termos de um capitalismo com centros de decisão internalizados, exemplo notório da China, e em menor medida de outros países emergentes, como o próprio Brasil. Grandes narrativas como o marxismo estão vivas pelo menos em todos os autores acima, e não deixam de inspirar, pelo menos em certa medida, estes países. O capitalismo não é uma grande narrativa morta, mas que precisa ser combatida de forma mundial e organizada para a sobrevivência da humanidade e do planeta. O socialismo ainda é seu melhor crítico, ao mostrar que o capitalismo não pode ser salvo de seu poder destrutivo. Se fosse uma narrativa morta, não haveria tanto interesse em fazer da teoria convencional sempre renovada na aparência, mas não na essência, em economia e outras ciências sociais, um modelo por exemplo para as escolas brasileiras, uma erudição copiada e socialmente inconsequente dando mais status ao status quo. Afirma-se que o pós-modernismo é diversificado, às vezes que é quase inefável, pois quem se dissesse pós-moderno já não o seria. Então do que estamos falando? David Harvey e Habermas, entre outros, falaram de um tempo pós-moderno, sem serem pensadores pós-modernos por isso, mas o precisaram nas estruturas de reprodução do capital e na sua restauração, o que é mais sério que falar da nova condição das pessoas como consumidoras e não mais produtoras, ou apostar na criatividade possibilitada pela tecnologia  e outros temas confusos, prato de resistência de tantos “pós-modernos”.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Simples de coração


1
a conquista da paz interior
a busca de Deus
o desejo de fazer o bem aos outros
o amor ao próximo
o cultivo da virtude
a sagacidade da sabedoria
a integridade pessoal
a coerência de propósitos
são todos desejos confusos
derrotas na história dos homens
que nem sabem lamentá-las

2
nada mais difícil de amar
que os simples de coração

                                                                Igor Zanoni

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Descrença


quisera crer nas auras e nas vibrações
no poder dos fluidos no magnetismo
na cura pela água nos mantras e nos tantras
no alinhamento dos chacras
e na influência benigna dos planetas
no pensamento positivo na neolinguística
no equilíbrio como tendência inerente á natureza
nas plantas medicinais na cura pela prece
quisera crer na santidade dos santos
e na benevolência de todas as Marias
quisera crer nas inteligências extraterrestres
na progressiva revelação de Deus
quisera crer na crença como método
no ômega-3 no óleo de peixe
quisera comer abobrinha como quem reza

                                                          Igor Zanoni

domingo, 10 de novembro de 2013

Dona Judith e dona Anair


1
Aos quinze anos ganhei de minha professora na escola sabatina, dona Judith Emma Schuck, um exemplar de “Entre a água e a selva”, de Albert Schweitzer, contando sua experiência como médico no Congo Francês. Muito mais tarde pude indagar o significado desse gesto. Como adventista, Dona Judith dificilmente poderia avaliar a singular e importante teologia que o autor desenvolveu, ou seus escritos sobre a civilização moderna e a ética. Talvez, como alemã, tivesse orgulho daquele que foi um dia considerado “o maior homem do mundo”. Talvez tivesse orgulho semelhante ao que tinha por Bach, cujas árias entoava em cultivado soprano na pequena igreja da rua Joaquim Novaes em Campinas, para pessoas que não podiam agradecer seu dom. Talvez se julgasse uma desbravadora da cultura em nossa latitude, o que não poderia evitar dado o esmerado apreço pela cultura da Europa central. Muito mais tarde, em outro contexto na vida, pude perceber como fui feliz em conhecer dona Judith.

2
Dona Anair, como todos nós, pode ser vista sob vários prismas, mas me alegro sobretudo com a resignação, que é um talento estóico e epicurista, como assinala Albert Schweitzer em Cultura e Ética, com que cuidou sempre da casa, do marido, dos filhos e dos netos tendo como apoio algumas qualidades nem sempre fáceis de encontrar, como uma fé cega, um grande interesse pelo que pode lhe cair ás mãos, como um prêmio pela entrega do dízimo na paróquia, e sobretudo seu humor malicioso. Esse humor lhe permitiu dar dois reais ao seu José, pedindo que jogasse nas cobras e lagartos.

                                                                           Igor Zanoni

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Metafísica


a angústia a solidão o abandono
alguns dos temas considerados por Heidegger
entre os fundamentais da metafísica
não pertencem à natureza humana
nem a nenhuma desordem pessoal
diante das quais psiquiatras solícitos aviam receitas
iludidos de que podem resolvê-la
antes são requisitos para que nossas sociedades
divididas  fascistas destrutivas
criem indivíduos com os quais possam contar
ou punam aqueles com os quais não podem
esses sentimentos são inerentes
à lógica do poder e do dinheiro
à aceleração do tempo que exige 
de um jovem de vinte anos estar atento
 para um adequado e promissor futuro
que não perca um ano da vida
que não se perca entre os fracassados
que aprenda a sabedoria exigida
e tenha sem pausa para pensar
o pensamento voltado para quanto precisa ganhar
o que deve ter e onde deve morar
o que deve desprezar e o que deve admirar
este é um projeto pessoal que se constrói
para raramente dar certo
há também as histórias que nem podem começar
a fábula já falou de todas elas
da ralé dos marginais do zé povinho da malta
proletários internacionalizados
da história nada edificante do século
todos farinha do mesmo saco
angustiados solitários abandonados
que não precisam ler sobre Sócrates
para examinar sua vida
eles sabem o que vivem
a seu modo caótico e subterrâneo

                                                    Igor Zanoni

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Parábolas


muitos sentem suas dificuldades
e mal sabem falar sobre elas
aliás falam e não compreendemos 
falam por parábolas e línguas de anjos
mas há muito os anjos deixaram este mundo
e nosso entendimento a cada dia
é mais turvo e confuso
talvez nos reste paciência para fazer-lhes
companhia sem julgamentos
 talvez aos poucos com isso venha
o sentimento de nossas próprias dificuldades
de como nos compreendemos 
do mesmo modo turvo e confuso 
de como todos nos tornamos 
para nós e para os outros
tristemente misteriosos 

                                                                  Igor Zanoni

domingo, 3 de novembro de 2013

Do nada para o nada


tomemos não por acaso
esse objeto arquetípico o automóvel
ele se liga ao aquecimento da Terra
ao poder global à violência envolvendo
as fontes de petróleo espionagens sofisticadas
à concorrência entre firmas e nações
liga-se também a inúmeros aspectos da vida das cidades
ao cotidiano dos pobres sua perda de tempo no trânsito   
aos latifúndios de combustíveis alternativos
à criação do desejo de possuir um automóvel
ter para isso renda poder fazer um financiamento
transformar seu itinerário sua concepção de lazer
de poder e de autoestima
aos prédios que buscam as nuvens
metade dos andares compostos por garagens
do tamanho dos apartamentos 
  a partir do automóvel criam-se zonas deterioradas
nas quais o Estado não gasta pois seus moradores
são só um problema e para esse tipo de problema
e muitos outros envolvendo o interesse público
existem outros procedimentos
tudo isso se envolve em nuvens
em imagens falsificadas do mundo
em imposições sobre o que ser e o que não ser
esta é uma questão já resolvida não por nós nem por Hamlet
o automóvel se transforma a cada momento é outro
como ele se move tudo se move e se repõe
refazendo todos os gestos mínimos toda intenção
nossa possibilidade de refletir e sentir
a vida nessa forma tornou-se há muito
uma contradição em processo
abrangente totalitária 
alegremente nos inserimos nos seus campos de concentração
o problema não é o automóvel como objeto
nem nenhum outro objeto
mas o poder que eles mobilizam
através do qual se extingue é claro nosso velho planeta
e com ele nossas perspectivas como espécie
já dilacerada violentada na qual poucos contam
o problema mora sobretudo no refazimento
dos seres humanos sua dispersão 
seu rosto vulgar e insensível
sua distância de si sua brutalidade
exceto quando se deprimem e se tocam atônitos
sem compreender o que ocorre
e obsessivos perguntam o que fazer
quais teriam sido ou são as opções
se é que chegam a perguntar sobre isso
ou antes se jogam do alto
do nada para o nada

                                                   Igor Zanoni

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Esotérico


1
abrem-se as cortinas do espetáculo divino
os anjos rufam as asas
para os améns as aleluias os dons
para o pastor eloquente que conduz
seu rebanho esperançoso de tantas graças
que a vida não pôde conceder
a casa própria a cura do filho um emprego
agora chegou o tempo do porvir
o homem que há vinte anos não falava
já começa a balbuciar como mais um renascido
e a velhinha que há cinquenta estava em uma cadeira
eis que se levanta pois afinal encontrou
o seu caminho

2
os que afirmam a existência dos discos voadores
veem-nos quase sempre ao pôr-do-sol
na brisa alaranjada da praia
comendo um sanduiche natural
ou no quintal de um sítio após o trabalho diário
passam em uma larga espiral como dizendo
nós estamos aqui
porém sempre me esqueceram
ou não sou um dos escolhidos para sua aparição
talvez porque deseje um disco voador redondo
com luzes à sua volta
o metal brilhante como carro zero
abrindo uma porta larga
 e estendendo uma rampa perguntando:
também tu queres ser um abduzido?

                                                        Igor Zanoni