nesta casa, comprada há tanto tempo em uma região
então remota da cidade, hoje um emaranhado de vias rápidas e de acidentes
cotidianos, faltou sempre e de modo crescente uma moça, que poderia ter
existido, assoviando, no quintal que não há, uma música de que eu não gosto mas
que saberia apreciar, enquanto desce a ravina com um cesto de laranja, ou de
roupa que vai lavar nas pedras do rio, rio que também nunca houve mas de cuja
falta deveria ter me ressentido muito antes, tanto quanto de ravinas, laranjas,
cestos de roupa ou pedras. a paisagem precisa incluir os cães imprudentes, que
nunca possuí , saltando sobre os vizinhos, quando lembram de quem passou tanto
tempo ao lado e quase sem conversa,
nenhuma mais próxima e confidente, as crianças, estas hoje moços e, cada
uma a seu modo, distantes, brincando com a terra de seu tempo atemporal, que
subsiste mas não se diz bem onde. essas faltas combinadas surgem entre remendos
da memória e a impossibilidade de esquecer o que tive de esquecer para viver,
faltoso, carente, espremido em tantas diárias impossibilidades e incoerências. em mim e em todos existe coerência mas esta
não é uma cidade, ou um bairro ou um mundo e uma época que permitam coerência
exceto enquanto sonho, sonambulismo, silêncios, vícios e pecados. felizmente
estas exceções foram um grande dom, sem elas enlouqueceria, como qualquer um, e
me completaram com um avesso percebido sempre na trama do vestido. e, é claro,
de muitos modos houve essa moça, essas crianças, essa casa, como pudemos.
Igor Zanoni
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