quinta-feira, 7 de julho de 2011



1
as crianças que nasciam doentes
eram batizadas ainda na primeira semana
e ganhavam nomes como Maria Auxiliadora
ou Maria de Lourdes como minha mãe
os pais mais positivistas davam aos filhos
o nome do remédio que os curou
conheci uma moça chamada Terramicina
ou um nome parecido
acho que os pais trancam-se no quarto
e conferenciam sobre o nome do nascituro
nos países ibéricos há muitos meninos Jesus
o que é bom mas no Brasil há mais José e Maria
há tempo não encontro um Joaquim
onde foram parar os Joaquins?

2
eu queria um diário de bordo
que contivesse instruções sobre o que fazer
diante de cada direção e intensidade do vento
eu que por nada estou para me atirar ao mar
gostaria de naufragar perto de uma ilha
como nos romances do tempo dos veleiros
há mais ilhas em Defoe e Stevenson
que nos mapas mundi
gostaria de um livro para toda ocasião
como a Bíblia ou O Capital
livros há mas falta fé

                                               Igor Zanoni

terça-feira, 5 de julho de 2011

Tempestade

Tempestade


meus sonhos repetidos
suas figuras antigas sempre novas
suscitando paixões mortas
os pesadelos com pessoas
que não me atemorizam
porque cumpri para com elas
 meu dever
indicam uma vida submersa
correndo no interior do corpo
e que sobrevém quando estou
mais indefeso
que vida eu vivi?
a vida de alguém
que não se conhece muito
ou se conhece tanto que abafa
o que poderia ser danoso
oh quão semelhante a mim
sou na escuridão
que luz há nas trevas!
clarões de tempestade

                                                   Igor Zanoni

De Deus e do Diabo

De Deus e do Diabo

Meu pai compensou sua intensa curiosidade intelectual em uma época na qual o conhecimento era mais difícil de obter sendo um valoroso autodidata, o que também ia ao encontro de seu individualismo. Como a maior parte das pessoas comuns, pensou que esse conhecimento deveria se amparar em uma sólida e permanente sabedoria que só as religiões têm a pretensão de dar. Estudou um pouco de tudo, da teosofia à ioga, da Bíblia como ela é a um olhar positivista até Pierre Weill. Foi uma viagem e tanto, da qual fui um copiloto ou pelo menos um atento espectador.  A geração de meu pai fez muito disso, buscando renovar o sentido prático e existencial da religiosidade. Eu fiz um percurso mais tarde, li muito Paulo VI, o Vaticano II, os teólogos da libertação e sempre estudei e pratiquei a ioga ou o budismo para corrigir minha débil firmeza interior e psicológica. Minha analista Selma Chiandotti Lamas fez essa relação entre minha vida religiosa e minha relação com meu pai de uma maneira natural e profunda. Como no início das drogas psi e do rock progressivo eu tivesse os meus dezoito ou vinte anos, aliei tudo isto à busca espiritual. Até hoje sempre ouço e me comovo com George Harrison, uma cítara indiana ou John Laughlin. Minha religiosidade nunca levou em conta a figura do Diabo. Ele nunca fez parte das minhas cogitações, eu nunca fui dualista. Deus entrou na minha infância, por minha avó e minha tia Ivone, mas ficou uma sombra de mim, como minha própria alma, com quem converso de modo permanente. Não me pune nem me faz próspero, não me recompensa o bem ou o mal. Aliás acho muito equivocada essa dicotomia. Há quem queira abolir de suas vidas Deus e o Diabo. Este último é uma bobagem, mas Deus é difícil de deixar para quem teve uma família, um “romance familiar” como o meu. Acho que é assim. Não temos autonomia para ser o que quisermos, mas eu fiquei com uma herança preciosa.

                                                   Igor Zanoni

Monastério


Monastério

quinhentas braças é o alcance
da voz humana
além dessa distância há um eremitério
em uma floresta uma gruta um cemitério
ali deve-se concentrar e meditar
deixando todo apego
filhos amigos família
não é preciso pensar na vida
a vida não tem nenhum sentido em si
exceto como suporte para a liberação
ali é possível construir
a Clara Luz o palácio de Brama
dar sete passos na sua direção
destrói o mau carma
se seus cabelos estiverem em fogo
corra para lá antes de apagá-lo

                                                        Igor Zanoni

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Mutatis mutandi

Mutatis mutandi


a única continuidade
é a permanente mudança
você acha que é assim e puf!
já tem de achar outra coisa
pois o que era já era
você pensa que não vem de você
mas então de onde vem?
você não se acha capaz de mudar
o buraquinho em que está?
pois muda e muda bastante
até que não muda mais
mas os sábios dizem que mesmo assim
quando tudo parece imutável
continua mudando

                                   Igor Zanoni

sábado, 2 de julho de 2011

Retorne

Retorne

se te passar pela cabeça
a idéia de partir
retorne
eu vou contar até três
e você estará de volta
se sair e descobrir os sete mares
saiba que já basta
e retorne
se estiver por aí meio solto
ou totalmente preso
retorne
se tiver bebido demais
ou se tornado um superzen
ainda dá tempo
retorne
se esqueceu o amor
ou seus pais que te puseram no mundo
se lembra de tudo no analista
chega
retorne
se deve dinheiro
se a consciência dói
se o azar te persegue
tudo isso tem jeito
enquanto tem tempo
retorne

                                                             Igor Zanoni

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Pessoas difíceis

Pessoas difíceis

Em Silogismos da Amargura Cioran narra que ao terminar o curso de Filosofia pediu a um professor orientação para um trabalho que denominaria Teoria Geral das Lágrimas.  O professor respondeu placidamente que julgava não haver uma grande bibliografia sobre o tema. Cioran respondeu: “Eu tenho toda a história humana à minha disposição para consulta”.
Muitas pessoas não se sentem sofrendo, ou não percebem o sofrimento que têm ou provocam. Mas penso que a maior parte tem essa queixa: “Minha vida é difícil” ou “Eu sou uma pessoa difícil”. Um dos ensinamentos básicos do budismo tibetano é exatamente a percepção do oceano de sofrimento em que está imersa a vida humana. O cristianismo também fala da salvação do nosso sofrimento, desde agora e para sempre, após a morte. A comunhão católica é a participação no sofrimento de Cristo na cruz para salvar a humanidade e o mundo todo. Se Deus é o Pai, Ele também esteve de alguma forma presente no sofrimento na cruz. O reconhecimento do sofrimento é pois o primeiro ato do ser cristão. Muitos não têm afinidade com religiões, mas mesmo assim pensam em uma utopia que elimine o sofrimento, como mudanças políticas e econômicas ou o desenvolvimento da ciência e da técnica. Toda a onda de medicamentos que ajudem a melhorar a qualidade de vida, como antidepressivos e energéticos radica aí. Pessoalmente, fiz anos e anos de psicanálise para descobrir que o sofrimento não era tão assustador e podia ser tolerado ou entendido. Mas não há quem seja fácil, ou tenha vida fácil. As minhas dificuldades eu combato trabalhando, escovando os dentes, levando meu filho com seus amigos ao cinema e assim por diante. Talvez um passo fundamental para lidar com a amargura seja não se deixar levar pelo fato de estar sofrendo, ou estar sendo feliz, por ser amado ou por não ser amado, por ser ou não elogiado e assim por diante, como ensinam os Oito versos que transformam a mente, um pequeno sutra mahayana. Isso não é indiferença, é serenidade.

                                                            Igor Zanoni