sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Fortaleza


a lembrança não é precisa. não me recordo, por exemplo, do nome daquela rua, nem do que comprava ali e por quê. havia uma subida, muita gente na calçada e um tráfego grande. havia um certo tumulto interior meu, ao atravessar da Sears para a Americanas, meu pai ia sempre na frente, muito rápido, várias vezes me perdi dele e fiquei só, amedrontado. não tenho a lembrança sequer de uma vez precisa do que acontecia ali, mas a memória guardou o clima, o ambiente dos passeios que é de fato a paisagem mental que eu recolhia reiteradamente. a memória é isso muitas vezes, ou talvez sempre, o conjunto das emoções que nos sonhos e na lembrança se repetem a seu modo. não sei por que recordo aquela rua, qual sua grande significação para guardar tão bem esses momentos. talvez o que eu seja e viva hoje pertença em parte a tudo de antigo e emotivo, assim aparentemente solto mas guardado para reaparecer quando for a ocasião. minhas lembranças não são tema para nenhuma conversa. são retalhos de conversas antigas, de muitas impressões velhas, deixando-me como uma pessoa complexa, mas pouco acessível. o que vivo hoje é só um pico submerso, uma pequena ilha no tempestuoso mar. ali estão meus naufrágios, minhas impressões de viagens. sou plural, em parte inutilmente denso e mal posso dizer de mim que não tenha contrapartida em algo obscuro e remoto, que pertence só a mim e de mim fez sua fortaleza.

                                                  Igor Zanoni

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